No dia 7 de abril, Raimundo Esmeraldino deixou a ilha de Boipeba, no litoral sul da Bahia. Foi a primeira vez em 60 anos que, mesmo considerando pequenos passeios ou visitas rápidas para resolver problemas pessoais, o pescador ficou tanto tempo longe do lugar onde nasceu. E diferente das outras saídas, dessa vez a motivação não alternou entre lazer ou adiantamento de tarefas cotidianas. Foi uma fuga durante a madrugada.
Siri, como é mais conhecido na comunidade tradicional Cova da Onça, é uma das principais lideranças populares em Boipeba e tem se posicionado abertamente contrário ao complexo hoteleiro Ponta dos Castelhanos. Em razão disso, tem sido ameaçado de morte em mensagens de texto, áudios e vídeos que circulam em grupos de WhatsApp dos moradores da ilha.
“Nós temos que esperar esse Siri aqui. Esse vagabundo. Temos que pegar esse descarado aqui, em cima da ponte, rapaz. Você é um canalha, um cachorro. Em Cova da Onça aqui, esse homem não tem valor nenhum. Meu cachorro rottweiler, Ave Maria, tem mais valor que esse homem mil vezes. Esse é um safado, descarado. Quando ele chegar aqui, [vou] jogar ele da ponte de baixo, porque ele não quer o bem da comunidade não. Esse canalha”, diz uma das gravações que tive acesso.
O empreendimento que Siri se opõe é a sociedade Mangaba Cultivo de Coco LTDA, formada por empresários poderosos. Entre eles, estão José Roberto Marinho, dono da Rede Globo, Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, além de outros quatro sócios endinheirados: Clóvis Macedo, Marcelo Stallone, Antonio Carlos de Freitas Valle e Arthur Baer Bahia.
A construção luxuosa vai ser levantada em uma Área de Proteção Ambiental e deve ocupar 1.651 hectares de extensão – o que corresponde a quase 20% de todo território da ilha. O Intercept mostrou que, embora o governo da Bahia tenha concedido uma licença para início das obras, o terreno é uma área pública federal e os sócios da Mangaba não detêm a posse definitiva desta enorme propriedade.
Para completar, a compra da área foi feita das mãos de um empresário, ex-prefeito de uma cidade vizinha, que responde a um processo na justiça baiana por tomada de terra.
Cooptação e ameaça
Em uma audiência pública na Assembleia Legislativa da Bahia para tratar da questão, um dos procuradores do Ministério Público Federal à frente do caso, Ramiro Rockenbach, chegou a afirmar durante a sessão que a compra desse terreno deveria seguir procedimentos técnicos regidos pela administração pública, como a concorrência, e que “fora disso, é fraude de grilagem”.
Desde o dia 7 de abril, a obra está suspensa, após a Secretaria de Patrimônio da União, a SPU, acatar pedido do MPF. O prazo inicial foi de 90 dias.
“Muita gente ficou irritada com essa decisão de embargar [a obra], pois foi cooptada e defende o empreendimento com unhas e dentes. Eles não entendem os prejuízos que isso vai trazer para nossa comunidade e que, uma vez feito, será irreversível”, diz Siri, que deixou a ilha de barco exatamente no dia do embargo.
As ameaças contra ele, entretanto, se intensificaram um pouco antes. Mais precisamente, depois de uma visita coordenada entre as Defensorias Públicas do Estado da Bahia e da União, que foram até as comunidades tradicionais e quilombolas para ouvir os moradores sobre os possíveis impactos do empreendimento. Siri participou da atividade guiando os defensores até as áreas potencialmente afetadas. Depois, foi aberto um espaço para que várias pessoas pudessem falar sobre o projeto. Cercada de polêmica, essa ação ocorreu no dia 4 de abril.
Houve discussão, vaias, tentativa de boicote e uma providencial mudança de cenário – inicialmente a reunião deveria ocorrer em Cova da Onça, comunidade vizinha à Ponta dos Castelhanos e, portanto, mais afetada pelo empreendimento. Os defensores, no entanto, percebendo os ânimos exaltados, transferiram o encontro para a própria sede de Boipeba. Lá, Raimundo Siri foi criticado algumas vezes pelos entusiastas do projeto e teve o direito de resposta concedido para se defender e também se opor ao complexo hoteleiro – uma luta que vem travando de forma incansável desde 2008, quando os sócios da Mangaba iniciaram as tratativas para compra do terreno.
“Ele tem que se ligar que a maioria não aguenta nem mais ouvir a voz dele. A voz dele aqui hoje é um nojo. A voz dele aqui hoje em São Sebastião ou Cova da Onça é um nojo. Esse é um canalhocrata. Tem que empurrar ele da ponte de baixo”, ouve-se em outro áudio.
“Siri, aceite, meu preto, a comunidade hoje… Você bate nessa tecla há 12 anos. Hoje [na Ponta dos] Castelhanos todo mundo tem seus poços lá, Siri. Graças a Deus todos os barraqueiros têm seus poços. Deixe de ser descarado, rapaz. Mentiroso! Aceite que 100% nem quer mais ouvir sua voz em Cova de Onça. Tá arriscado você chegar em cima da ponte e voltar em cima da ponte. Você procurou uma briga grande contra a comunidade. A comunidade hoje é toda contra você”, diz outro trecho, gravado pelo mesmo autor.
Com forte propaganda na mídia baiana, o negócio tem sido vendido como um “vetor de desenvolvimento sustentável” e fala em “capacitação de mão de obra” e outras condicionantes para atender as comunidades locais, como campo de futebol, instalação de equipamento esportivo, plano gestão de resíduos sólidos, gestão urbana e melhorias no saneamento básico, além de uma estação de tratamento de resíduos.
Esse discurso tem reverberado com força entre os moradores. Em um dos áudios, um homem alerta para “ficar ligado em Siri, por ele tá querendo destruir a comunidade”. E prossegue dizendo que “tem muito menino novo estudando para arrumar emprego. A gente tem nossos filhos, a gente vai ver nossos filhos fazendo o pior trabalho em Cova de Onça… Eu não quero meu filho tirando caranguejo ou armando ratoeira. Isso é vida de ninguém”.
Sobre as ameaças a Raimundo Siri, a empresa Mangaba disse que desconhece os fatos relatados. A empresa afirma ainda que “repudia todo e qualquer tipo de violência, e sempre pautou sua atuação na legalidade e no diálogo com a comunidade”.
‘Vamos comer siri assado na brasa’
Um dos ataques mais diretos veio em forma de dois vídeos, um com sete e outro com 18 segundos de duração. Em ambas as imagens, que também circularam em grupos de WhatsApp, é possível ver carnes sendo assadas em uma churrasqueira e um pequeno siri, o animal, também na grelha em meio às brasas. “Hoje é dia de churrasco e seu sirigueijo está aqui na churrasqueira”, diz uma mulher, sem mostrar o rosto, no primeiro vídeo.
No segundo, um homem, sem também revelar a identidade, aponta a faca diretamente para o siri e bate no pescado repetidas vezes. “Aqui, óh. Depois de um dia de carne, vamos botar o sirigueijo para assar na churrasqueira. Vamos comer siri assado na brasa. Quebrar as pernas do siri”, diz. Ao fundo, um outro grita: “Siri, porra. Vamos comer siri”.
Embora as pessoas não mostrem os rostos, Raimundo Siri afirmou saber quem são os responsáveis pelas ameaças, tanto nesses dois vídeos, quanto nas mensagens de texto e na maioria dos áudios. Como as comunidades são pequenas – em Cova da Onça, por exemplo, vivem cerca de 700 habitantes – não é difícil identificar os autores pelas vozes.
“Eu sei quem são. Mas essas pessoas também sabem tudo sobre minha vida, onde moro, meus hábitos e o nome da minha esposa. Saí de Boipeba por isso. Mas, por outro lado, não posso ficar muito tempo longe porque vivo da pesca. Não tenho outro meio de sustento e preciso trabalhar para sobreviver”, disse.
‘Nós temos que esperar esse Siri aqui. Esse vagabundo. Temos que pegar esse descarado aqui, em cima da ponte, rapaz.’
Siri preferiu não registrar um boletim de ocorrência na polícia sobre as ameaças. Questionei a razão dessa escolha e ele me disse que estaria se “expondo mais” se assim o fizesse, além de que, segundo ele, “não daria a solução necessária”. Sua providência foi deixar a ilha o mais rápido possível.
Para Gabriel César, defensor regional de Direitos Humanos da Defensoria Pública da União, “os órgãos de segurança pública, historicamente, não atuam com o mesmo vigor quando as vítimas são pessoas hipervulneráveis, em decorrência do manifesto racismo estrutural que acomete as instituições brasileiras. Esse cenário de descrédito nas instituições pode ter desestimulado Raimundo Siri a registrar formalmente as ameaças e, em vez disso, fazer a opção por prover pessoalmente a sua proteção”.
Um dos integrantes do Conselho Pastoral dos Pescadores, Solano Miranda, contou que o grupo tem se organizado para tentar custear a permanência do pescador enquanto ele se mantém distante de Boipeba – por segurança, o Intercept optou por não revelar o local onde ele tem ficado para se manter longe de casa.
“Alguns companheiros de luta tem emprestado moradia, levantando dinheiro tanto para ele quanto para a esposa. A gente não quer que eles voltem agora porque o risco existe. Não vamos esperar acontecer o pior para tomar alguma providência”, afirmou Miranda.
Defensoria acompanha o caso
Em um grupo de WhatsApp chamado “Informação Projeto Castelhano”, que abriga os moradores das comunidades de Boipeba e do qual Siri não participa, as ameaças também aconteceram por escrito. Algumas mensagens atacam-o diretamente, chamando o pescador de “indigente”, “doença pra comunidade” e “o culpado de todas as coisas… de todas as desgraças que vem acontecendo” – em uma referência direta ao embargo da obra.
Na sequência, aparecem metáforas com referências alimentares para indicar uma possível intimidação. “A pipoca dele está esquentando”, “a pamonha dele tá esquentando”. Em uma gravação nesta mesma linha, um morador se dirige diretamente a Siri e diz que “sua batata tá cozinhando. Na hora vocês vão comer a batata cozidinha…”
Um outro morador, também em áudio, fala abertamente em mandar recado para o pescador por meio de outros membros do grupo do WhatsApp. “É a gente arrochar ele. A comunidade… Ou ele vai ceder ou ele sai fora de Cova da Onça. Nós temos que fazer isso. Eu nem vou tirar aqui do grupo, cheio de puxa-saco dele, para passar isso diretamente para ele. A gente não quer violência, não…”
Uma mulher, também em uma gravação, diz que “uma hora dessa agora, pegar uma lancha, botar Siri dentro, e levar uma canoa reboque a pano e deixar ele em alto-mar”.
Sem citar o nome da liderança de Boipeba, um outro chega a planejar uma emboscada. “O certo é marcar uma reunião aqui na ilha, quando eles vierem aqui para reunião, soltar quatro quinas nesses caras aí tudo, rapaz. Soltar o barrote em cima. Os caras só vêm para atrasar a ilha. Marcar uma reunião aí, meu irmão, e deixar gente roxa (risos)”.
Neste mesmo grupo, quem também faz parte é o arquiteto Manoel Altivo, um “ativista” ou “entusiasta” do projeto da Ponta dos Castelhanos, como ele mesmo se definiu durante entrevista. Ele já participou de palestras em Boipeba e até da audiência pública na Assembleia Legislativa da Bahia para divulgar o complexo hoteleiro.
Apesar das defesas constantes, Altivo diz não possuir qualquer tipo vínculo empregatício, temporário ou institucional com a empresa Mangaba e que age voluntariamente em favor o projeto por, como profissional liberal, liderar o comitê “Cairu 2030” – organizado pela sociedade civil e a prefeitura para desenvolver a cidade da qual Boipeba faz parte.
“Recentemente, eu nem estou acompanhando esse grupo direito. Esse grupo do WhatsApp foi criado por dois amigos de Boipeba no sentido de gerar esclarecimentos [aos moradores] antes da reunião com as Defensorias. Agora, deve ter tido algumas mensagens contra Siri, mas isso porque o nível de indignação contra ele lá [em Cova da Onça], aliás, não só lá, como em muitos lugares, é alto. E porque é alto? Porque ele usa da mentira. Ele se vitimiza, fala de invisibilidade, e tenta desestabilizar qualquer projeto, qualquer pessoa”, disse o arquiteto.
Outro que também está nesse grupo é Aurelino José dos Santos, assessor técnico da secretaria municipal de pesca de Cairu e que, desde 2000, está à frente da colônia de pesca do município, sendo inclusive o atual presidente.
‘Vamos comer siri assado na brasa. Quebrar as pernas do siri.’
Não há registros que nenhum dos dois tenha feito ameaças diretas a Siri dentro do grupo, mas questionei ambos por não terem repreendido esse tipo de conduta em um espaço que deveria ser de discussão de propostas. “Eu estou nesse grupo, mas não cheguei a ver os ataques contra Siri porque tem muita mensagem. Tem 194 pessoas inscritas lá. Em algum momento, eu cheguei a participar de forma ativa, mas depois me perdi. Eu, por sinal, admiro muito Siri pela forma que defende as posições dele e sou contra a violência. Não compactuo com isso”, pontuou Santos.
“Eu cheguei a ver alguns áudios falando dele [Siri], mas a minha leitura era de uma indignação do pessoal de Cova da Onça contra ele, diante do que ele estava fazendo”, disse Altivo.
Sobre as ameaças que Siri vem sofrendo, em nota, a Defensoria Pública da União afirmou que apenas informalmente tomou conhecimento das ameaças, uma vez que ele não as registrou oficialmente nos órgãos competentes. E também que repudia os “episódios de coação e ameaças sofridas por pessoas que se colocam contra o avanço de empreendimentos incompatíveis com o modo de vida de comunidades tradicionais”.
A Defensoria Pública do Estado disse que está acompanhando atentamente a situação no sul da Bahia e existe um grupo de trabalho “visando frear as violações de direitos e que está ciente das ameaças, que ocorrem há algum tempo”. A DPE disse ainda que “órgãos de segurança pública já estão a par do que ocorre com as lideranças e moradores de Cova da Onça, Boipeba entre outras comunidades”.
O órgão disse ainda que vai entrar em contato com o líder Raimundo Siri para “recepcionar as novas denúncias e tomar providências, com encaminhamentos aos responsáveis pela proteção e segurança da população local”. O Ministério Público Federal também foi procurado, mas não enviou uma resposta até o fechamento desta reportagem.
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