A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito dos atos terroristas do 8 de Janeiro em Brasília não parece estar disposta a se aprofundar no papel cumprido pelas bigtechs na tentativa de golpe de estado no país – pelo menos até agora. Um levantamento do Intercept, com base no site do Senado Federal, aponta a ausência de menção ao YouTube e a escassa referência a outras plataformas nos requerimentos de informação e convocação apresentados por congressistas da CPMI.
Dos 827 requerimentos protocolados até o momento, nenhum faz referência ao papel do YouTube, do Google, que permitiu a monetização de transmissões ao vivo durante os atos de violência. Canais bolsonaristas no YouTube, como Política Sem Curva, Didi Red Pill e Eu&Ela Curiosa, transmitiram ao vivo as invasões, alguns deles divulgando clubes de assinatura para financiamento de suas produções. O YouTube tem sido uma fonte de renda para esses criadores de conteúdo extremista, mesmo quando propagam a violência, como foi no caso dos ataques aos prédios públicos e a tentativa de golpe.
Enquanto Google e YouTube passaram batido na primeira leva de requerimentos da CPMI, o Twitter e Facebook quase tiveram a mesma sorte. As empresas foram mencionadas apenas em um requerimento de informações apresentado pelo deputado federal Duarte, do PSB maranhense. Duarte, por sinal, é o integrante da CPMI que mais tem se debruçado sobre o tema: ele também protocolou requerimentos de informações pedindo dados a plataformas que são conhecidas pela disseminação de conteúdo violento, como Telegram, TikTok, Kwai e Discord – além de Instagram e Facebook, da Meta.
O Intercept conversou sobre o tema com integrantes das equipes de deputados e senadores que integram a CPMI. Apesar de admitirem que trataram superficialmente o papel das big techs na primeira leva de requerimentos, os congressistas aliados ao governo têm enxergado a possibilidade de convocação do ministro da Justiça Flávio Dino como uma oportunidade para trazer o tema da regulação das plataformas digitais à tona. Com uma assessoria dedicada ao tema dos direitos digitais, o Ministério da Justiça tem tentado liderar o debate sobre o tema no governo federal.
Golpe monetizado
No dia 12 de janeiro, o Intercept revelou um relatório da ONG SumOfUs (hoje chamada Ekō), que monitora big techs, mostrando que as plataformas de redes sociais facilitaram a distribuição de conteúdo sobre os ataques de 8 de Janeiro. Segundo a pesquisa, influenciadores golpistas chegaram a transmitir os ataques e o vandalismo por horas – alcançando uma audiência de milhões de visualizações em apenas um dia.
Um dos canais, mostra o relatório, transmitiu os atos terroristas por cinco horas, chegando a 600 mil visualizações em um único dia, se espalhando pelo Facebook, Instagram e também no Twitter, TikTok e Telegram. Os conteúdos golpistas só começaram a ser derrubados pelas plataformas depois da decisão do ministro do STF Alexandre de Moraes que obrigou as empresas a removerem os conteúdos golpistas, com multa de R$ 100 mil em caso de descumprimento.
Moraes, por sinal, é quem mais tem ressaltado o papel das big techs no ataque à democracia brasileira. Em março, o ministro disse que todas as plataformas de redes sociais foram “instrumentalizadas” para os atos de 8 de janeiro. Na ocasião, em referência ao debate sobre a regulação das plataformas digitais no Brasil, o magistrado considerou como “falido” e “absolutamente ineficiente” o atual modelo de regulação de conteúdos na internet.
“O modelo atual, por mais que alguns queiram defender, é absolutamente ineficiente, destrói reputação, destrói dignidades, faz e fez com que houvesse aumento no número de depressão em adolescentes, suicídio de adolescentes”, declarou. “Sem contar a instrumentalização que houve em todas as plataformas, de todas as big techs, em 8 de janeiro. O atual modelo é falido, no Brasil e no mundo”.
No inquérito dos atos antidemocráticos no STF – aberto em 2020 para investigar atos golpistas na época – uma investigação da Polícia Federal já havia apontado que 12 canais bolsonaristas receberam quase R$ 7 milhões em monetização do Youtube. Os canais formavam uma rede coordenada, mostrou a PF, que havia recomendado o aprofundamento das investigações. O inquérito original foi arquivado por Moraes em julho de 2021. Depois, outra investigação foi aberta no STF para averiguar a existência de uma organização criminosa digital contra a democracia.
Em 2021, Google, Twitter e Meta também foram alvo de destaque da CPI da Covid. Os deputados convocaram executivos das empresas para que explicassem por que, a despeito da situação calamitosa de saúde pública, as plataformas mantinham conteúdo negacionista no ar. Bolsonaro havia insinuado, em uma live, que pegar covid-19 poderia ser até “mais eficaz” do que a vacinação.
Na época, as big techs fizeram lobby para driblar a CPI, reportou o site Metrópoles. Apesar de convocados, os presidentes do Google e do Facebook no Brasil não prestaram depoimentos na CPI. Nunca houve acordo entre os senadores para que fosse definida uma data para ouvir os executivos. As big techs, no entanto, não se livraram de dezenas de páginas dedicadas a detalhar o papel delas na disseminação do coronavírus no relatório final. O relator, senador Renan Calheiros, apontou que era necessário “endurecer as regras de publicação de conteúdo e monetização”. E ficou por isso mesmo.
Dever cumprido
Na terça, por 18 votos contra 12, a CPMI aprovou plano de trabalho apresentado pela relatora, a senadora Eliziane Gama, do PSD do Maranhão. As mais de quatro horas de sessão não foram suficientes, no entanto, para a votação dos requerimentos com os pedidos de oitivas e de acesso a informações – o que acabou adiado para próxima semana. Mesmo sem conseguir votar os requerimentos, a relatora avaliou que o resultado foi positivo. “Saímos dessa comissão com dever cumprido”, conclui a senadora, no fim da sessão. Segundo ela, o plano de trabalho prevê análise desde o processo eleitoral, até atos relevantes para o tema.
O plano de trabalho aprovado prevê que a investigação comece pela atuação da Polícia Rodoviária Federal, quando organizou bloqueios em rodovias federais durante a votação no segundo turno. Foi dado destaque também aos acontecimentos dos dias 12 e 24 de dezembro, quando houve, por parte de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, a invasão a uma delegacia da Polícia Federal no centro de Brasília e a tentativa de detonar uma bomba próxima ao aeroporto da capital federal.
Logo depois da sessão de terça, o deputado Arthur Maia, do União Brasil da Bahia, presidente da CPMI, também avaliou como positiva a segunda reunião da CMPI. “Conseguimos aprovar o plano de trabalho e, num acordo entre governo e oposição, conseguimos fazer essa combinação de que, na terça e quinta da semana que vem, nós apreciaremos mais de 200 requerimentos com pedidos de informação (…) e também a convocação ou convite de cerca de mais de 40 pessoas e isso, sem dúvida, dará o pontapé inicial nas investigações”, disse o congressista baiano. Por enquanto, as big techs passaram ilesas.
Você sabia que...
O Intercept é quase inteiramente movido por seus leitores?
E quase todo esse financiamento vem de doadores mensais?
Isso nos torna completamente diferentes de todas as outras redações que você conhece. O apoio de pessoas como você nos dá a independência de que precisamos para investigar qualquer pessoa, em qualquer lugar, sem medo e sem rabo preso.
E o resultado? Centenas de investigações importantes que mudam a sociedade e as leis e impedem que abusadores poderosos continuem impunes. Impacto que chama!
O Intercept é pequeno, mas poderoso. No entanto, o número de apoiadores mensais caiu 15% este ano e isso está ameaçando nossa capacidade de fazer o trabalho importante que você espera – como o que você acabou de ler.
Precisamos de 1.000 novos doadores mensais até o final do mês para manter nossa operação sustentável.
Podemos contar com você por R$ 20 por mês?