No dia 27 de abril deste ano, o Intercept publicou a primeira reportagem da série “Em nome dos pais”. Um material jornalístico cuidadoso assinado por mim, Nayara Felizardo, e que resultou em quatro matérias e um minidocumentário sobre o tema da alienação parental.
Um mês e três dias depois da primeira matéria ir ao ar, a juíza Flávia Gonçalves Moraes Bruno, da 14ª Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro, ordenou que todo o material fosse retirado do nosso site e também das redes sociais, sob multa de R$ 30 mil em caso de descumprimento.
A ação foi movida por um homem que nem sequer foi citado em nenhuma das nossas reportagens. Ele alegou que nosso documentário exibe documentos sigilosos que expõem uma criança – o que, de maneira alguma, é verdade.
Por isso, eu resolvi abrir aqui como foi o processo de produção, investigação e escrita desta série, mostrando todo o rigor, cuidado, preocupação e quantidade de pessoas envolvidas numa investigação tão importante como essa – que se dispôs a revelar nomes de juízes, desembargadores promotores, psicólogos e assistentes sociais que aplicaram a Lei de Alienação Parental para, em alguns casos, livrar acusados de estupro de vulnerável ou violência doméstica. Ainda por cima tiraram de mães a guarda dos filhos para entregá-los justamente aos pais denunciados por estes crimes.
Comecei a investigação como todas as outras que já fiz: estudando muito o assunto. Um ano depois, tenho mais de 200 arquivos salvos. Recebi a pauta da editora Bruna de Lara. Inicialmente, era para ser uma reportagem simples sobre o lobby que alguns homens fizeram no Senado para retirar artigos de um projeto de lei que modificaria a Lei de Alienação Parental e poderia prejudicá-los nos processos judiciais que enfrentavam.
Depois de estudar o assunto, vi que tinha uma história bem maior diante de mim. A Lei de Alienação Parental tem como base a pseudoteoria de um médico que fazia laudos para defender pedófilos. Voltei à minha editora e pedi mais tempo.
Já tinha feito algumas entrevistas quando outra editora, Tatiana Dias, me encaminhou um e-mail. Ela nem sabia, mas aquela história repetia praticamente o mesmo script das outras que eu estava ouvindo: uma mãe é acusada de alienação parental depois de denunciar o ex-marido.
A partir de então, as informações chegaram como uma enxurrada. Percebi que uma reportagem não daria conta de todas as denúncias. Entrevistei cerca de 30 pessoas diferentes. Com algumas delas, conversei por vários dias. Por último, me debrucei sobre os processos.
Apenas um deles tinha mais de três mil páginas e eu o li na íntegra. Os outros também eram bem longos. As disputas judiciais levam anos e tudo fica arquivado. Eu precisava ver tudo para entender muito bem o que tinha acontecido em cada caso.
De 18 casos que investiguei, utilizei 11 na série “Em nome dos Pais”. Decidi que só escreveria sobre o que tivesse exames, laudos e depoimentos das crianças, sobretudo se a acusação fosse de abuso infantil.
Se fosse outro tipo de acusação, isso também ficaria muito claro na reportagem. Só fazia sentido tratar de um assunto tão sensível se eu tivesse provas de que uma grande injustiça estava sendo praticada.
Depois da investigação e do extenuante trabalho de escrita, que envolveu uma filtragem especial para evitar exposição das crianças e adolescentes, começou o trabalho de edição. Minha investigação foi detalhadamente escrutinada por, ao menos, dez pessoas diferentes – a quem tive que mostrar os documentos e provas que usei para embasar o que estava escrevendo.
Primeiro, três editores se debruçaram sobre a apuração, questionando cada detalhe do que eu tinha escrito. Vencida essa etapa, foi a vez de ser sabatinada pela checagem.
Poucos veículos têm um procedimento tão rigoroso. Nós, repórteres do Intercept, precisamos mostrar para os checadores de onde tiramos até as vírgulas do nosso texto. Ter feito o fichamento dos processos, marcando as páginas em que estava cada informação, fez toda diferença nessa etapa.
Os checadores conferiram os documentos e ainda fizeram pesquisas complementares para ter certeza de que não havia qualquer sinal de viés de confirmação – ou seja, evitar de toda forma que eu estivesse interpretando, apurando ou escrevendo com base em hipóteses estabelecidas inicialmente.
Por fim, nossos advogados também analisaram detalhes dos processos, sempre respeitando nossa liberdade editorial. No entanto, quando eles identificam imprecisões, são enfáticos pedindo alterações para evitar que erros sejam veiculados nas reportagens.
É por tudo isso que a censura imposta às reportagens e ao documentário é inaceitável. Nenhuma linha dessa série seria publicada sem que seu conteúdo fosse aprovado em todas as minuciosas etapas que envolvem uma grande investigação do Intercept.
Jornalismo investigativo, que afronta poderosos e traz à tona verdades inconvenientes, se faz com coragem, mas sobretudo com método e seguindo critérios estabelecidos, além de um esmero obstinado em cada etapa de trabalho.
Nessa série, por tratar de conflitos envolvendo crianças e adolescentes, os níveis de exigência de toda a equipe foram elevados à máxima potência. É por isso que nós, do Intercept, entendemos que essa é uma decisão judicial absurda e abre precedentes para censurar outros materiais jornalísticos de igual relevância e fundamental interesse público.
Não nos calamos e nem vamos nos calar. Nosso trabalho é sério e respeitoso. E precisa ser respeitado!
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