As histórias humanas, seus dramas, suas conquistas, suas tragédias, seus amores, sempre provocaram – e sempre provocarão – nossa curiosidade e atenção. Lembro-me de uma sessão no programa de rádio comandado por um famoso comunicador local, Samir Abou Hana, na qual ele lia, ao meio-dia, uma carta enviada por ouvintes. Havia uma música tocante ao fundo enquanto ele narrava as histórias, geralmente cheias de dor e lágrimas. Eu ficava completamente absorvida, impressionada com os tantos possíveis universos que cabiam em uma simples casa, em uma simples pessoa.
A multiplataformização das mídias e o estrondoso aumento de espectadoras e espectadores das multitelas, no entanto, nos trouxe a um outro patamar do consumo da vida alheia. Nele, veracidade, falsificação, deep fake, monetização do sofrimento e questões éticas estão ainda mais presentes e fragmentadas, todas servindo de termômetro de nossos caminhos enquanto sociedade. Me perguntei várias vezes para onde diabos estamos indo quando me deparei com um vídeo meio tosco no qual vemos a figura de Severina Maria da Silva, de 57 anos, narrando sua história de vida. A peça circulou pelo Instagram, TikTok e Kwai.
Eu conheço Severina há mais de uma década. Fui até sua casa, em Itaúna, zona rural de Caruaru, Pernambuco, no primeiro semestre de 2012, quando trabalhava como repórter especial do Jornal do Commercio. Meses antes, eu ouvi falarem no rádio a respeito do seu julgamento e absolvição. Uma notícia rápida, como várias outras que eu iria encontrar depois sobre ela. A maioria não informava nos títulos que aquela mulher de pele escura e traços indígenas era vítima de mais de 5 mil crimes, como pontuou a justiça. Que ela foi estuprada a partir dos 9 anos de idade, durante quase três décadas, pelo pai, Severino Silva. Que Zé da Fuba, como era conhecido, a engravidou 12 vezes e que cinco filhos se criaram. Os outros sete morreram meses após nascer ou mesmo na barriga de Severina: um, após a então adolescente ser espancada pelo homem que deveria protegê-la. O jornalismo também feriu Severina: naquele momento e até agora, muitas vezes o que sabemos sobre ela vem a partir desse tipo de título irresponsável e machista:
Noticiar que uma mulher estuprada desde os 9 anos pelo pai, espancada diversas vezes, grávida 12 vezes do seu próprio genitor sem que o seu sofrimento seja o destaque é cretino demais. Anunciar que Severina “encomendou a morte do pai” em um título é jogá-la, de novo, em um julgamento social no qual ela obviamente sai perdendo.
O vídeo tosco sobre o qual falei dobra a aposta na irresponsabilidade: nele, uma foto da agricultora é manipulada e, sobre seu rosto, é justaposta parte de outra face que se movimenta. Ela conta, com uma voz gerada por inteligência artificial, a história de vida de Severina, cuja cabeça se movimenta um pouco, sincopada com palavras e entonações. A manipulação da imagem é perceptível para algumas pessoas, mas muitas não perceberam o artifício do deep fake. Foi o caso de uma parte da família da agricultora, que teve acesso ao vídeo pelo TikTok e Kwai.
“Minhas irmãs ficaram revoltadas, porque a voz que se passa por mim fala sobre a minha mãe. Eu prometi que não tocaria mais no seu nome quando falasse sobre o que aconteceu comigo e há tempos faço isso. Como pegam um problema meu e se passam assim por mim? Até palavras que eu não uso colocaram na minha fala. Eu nem sabia o que era ‘coça’, eu nunca falaria assim”, me disse Severina.
O deep fake fez com que ela buscasse justiça: registrou, no dia 6 deste mês, um boletim de ocorrência na delegacia do bairro Salgado, em Caruaru. Um post no coletivo Marias Também Têm Força mostra a agricultora falando sobre o caso – nos comentários, o dono da página na qual o vídeo manipulado foi divulgado pede desculpas e informa que deletou a peça. Mas o estrago estava feito: foram mais de 900 mil visualizações na peça fake.
“Severina vinha sendo repreendida por parte da família, que afirmava que ela estava ofendendo a memória da mãe e do pai. Em uma conversa, ficou acertado que ela não faria mais menção a ela”, comentou Karinny Oliveira, coordenadora do Marias Também Têm Força. Ela acrescentou que, atualmente, existe uma mobilização para que a agricultora se aposente de acordo com o que é previsto na lei para mulheres com sua profissão, já que passou dos 55 anos.
Severina tornou-se bastante conhecida nas páginas “motivacionais” das redes sociais principalmente depois que o perfil Razões Para Acreditar, com mais de 5 milhões de seguidoras e seguidores no Instagram e 1 milhão no Facebook, postou sua história. A partir do relato, aconteceu uma mobilização para que uma casa nova fosse construída para ela. Foram arrecadados R$116.000,00 e o novo lar da agricultora foi erguido, embora não o do projeto inicial, que seria o dobro do valor. São atos que, sem dúvida, nos comovem e conseguem muitas vezes melhorar a vida de muita gente.
Mas tem uma questão: a crença na caridade como solução para a violência, a pobreza, o desamparo, muitas vezes esvazia o sentido de políticas públicas e tornam individuais problemas que são coletivos, assunto sobre o qual eu escrevi aqui.
Há ainda outro elemento, este totalmente arraigado à cultura das redes: as histórias pessoais e “motivacionais” de superação do sofrimento causam enorme engajamento. E, quanto mais engajamento, mais monetização. Não importa muito se o conteúdo envolver falsificações, deep fake ou erros graves: há vídeos informando que Caruaru é na Paraíba, há textos dizendo que Severina teve 12 filhos, o que leva a crer que todos estão vivos. Também há uso de imagens sem crédito e sem autorização, como a que está abaixo, feita justamente para a reportagem na qual abordei a história da agricultora. A foto é de Heudes Régis.
“Histórias como essas nos motiva[m] e nos emociona[m]?”, pergunta a legenda que induz a um erro: crer que Severina ergueu a casa do projeto original.
“Os piores momentos da vida alheia acabam virando entretenimento nas redes. O modelo de negócio delas depende de conteúdo em abundância, 24 horas por dia. Para explorar esse aspecto econômico, foram criados sites sensacionalistas que industrializaram a fofoca com fins de lucro”, explicou Marcelo Soares, jornalista, professor e criador da Lagom Data. “Agora, a vida de qualquer desconhecido, vivendo em qualquer lugar do mundo pode ser objeto de maledicência. Se antigamente ser mal falado por desconhecidos era um dúbio privilégio de autoridades e celebridades, hoje isso passa a atingir gente que não tem como se defender. É uma dinâmica destruidora”.
Essa percepção da superexploração do sofrimento alheio como objeto de lazer fez com que o jornalista criasse uma mini campanha na qual sugere que as pessoas não usem as redes sociais para multiplicar momentos embaraçosos da vida de conhecidos e desconhecidos. “É importante ter responsabilidade ética com o conteúdo com que se passa tempo e se indica aos amigos. Fake news é um problema, mas histórias reais com tratamento sensacionalista poluem o ambiente de informação tanto quanto a mentira. O modelo de negócio das redes, que industrializa a fofoca como conteúdo de entretenimento, é muito propício a isso. No caso específico dessa senhora, a Severina, a industrialização veio de um jeito tão desumanizante que sequer a voz do testemunho no vídeo é dela, e sim uma voz sintetizada eletronicamente. É feito apenas para caçar engajamento, clique, receita de anúncio”.
Na sua nova casa em Caruaru – um novo lar que alivia muito a vida dura da agricultora, mas não resolve os múltiplos problemas causados pela tragédia que lhe foi imposta –, Severina disse que precisa somente seguir em frente, descansar, cuidar de si. Com a indenização que recebe da prefeitura local, algo diminuto frente ao desamparo também governamental que enfrentou – ela foi presa no próprio velório do pai, após denúncia da mãe, e ficou um ano e um mês na cadeia –, conseguiu construir pequenas casas para cada filha e filho.
‘Histórias reais com tratamento sensacionalista poluem o ambiente da informação tanto quanto a mentira’.
Em 2018, a então prefeita de Caruaru e atual governadora de Pernambuco, Raquel Lyra, sancionou a lei 6074, também chamada Lei Dona Severina. Nela, por exemplo, o artigo dois informa que toda mulher vítima de violência doméstica tem preferência na matrícula de seus filhos (ou crianças de que tem a guarda) nas escolas de Caruaru.
Atualmente, a agricultora, que é cofundadora do coletivo Marias Também Têm Força, faz um trabalho de acolhimento e conversas com mulheres da sua mesma região, percorrendo municípios e povoados. Ela fala sobre o que viveu e sobre uma violência que jamais pode ser naturalizada. “Eu já pensei várias vezes em acabar com a minha vida. Mas hoje não. Eu quero viver. Eu quero muito viver”.
Deixar Severina seguir seu projeto em paz não é bondade. É obrigação.
Para saber mais: Deepfake e as consequências sociais da mecanização da desconfiança, de Lucia Santaella e Marcelo de Mattos Salgado.
Atualização: 21 de junho, 11h01
O texto foi atualizado para constar o nome do estuprador de Severina.
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