O Joio e O Trigo e o Intercept obtiveram áudios inéditos de reuniões internas do Plano Amazônia, uma iniciativa conjunta criada em 2020 por Bradesco, Itaú e Santander com o objetivo de “contribuir para o desenvolvimento sustentável da Amazônia”.
Nas gravações, os executivos dos três maiores bancos privados do país alegam ter sido eles os criadores de uma normativa da Federação Brasileira de Bancos sobre concessão de crédito a frigoríficos, publicada em maio. Em um dos áudios, o líder de inovação sustentável do Santander, Leonardo Fleck, também promete “pedir ajuda” ao então presidente do BNDES, Gustavo Montezano, para embolsar R$ 15 milhões em um edital do banco.
A reunião ocorreu em maio de 2022. Fleck primeiro sugeriu que os bancos integrantes do Plano Amazônia participassem de um edital de blended finance – financiamento não reembolsável de iniciativas com impacto social ou ambiental positivo – do BNDES, em conjunto com a Fundação CERTI, uma organização catarinense de pesquisa e desenvolvimento tecnológico.
A proposta que seria submetida pedia R$ 15 milhões ao banco. Para obter resultado favorável, o executivo do Santander disse que pediria ajuda ao presidente do banco estatal: “Eu estou interagindo bastante com o BNDES, com o Léo Ceron [então consultor da presidência do banco estatal], com as equipes deles lá que estão tocando isso. Até tive uma interação com o Montezano [então presidente do BNDES], e a gente vai ter uma agenda com ele em Brasília, nós Santander institucional. E, se a gente concordar em entrar, eu vou dizer: ‘Olha, estamos com uma proposta com os três bancos, ajuda a gente aí’. [Vou] usar a nossa influência. Vocês também, os contatos que vocês [têm]”.
Quem responde é Fabiana Costa, gerente de sustentabilidade do Bradesco: “Com certeza, os nossos COs [diretores] têm um relacionamento ótimo com eles [BNDES], então dá até para puxar uma agenda depois”.
“Com essas duas entregas, essa e a da [normativa da] Febraban, eu se fosse conselheiro do plano estaria super satisfeito”, arrematou Fleck. “Acho que [são] dois golaços de nível estrutural setorial, saindo fora do bowl [escopo], digamos assim, do que a gente costuma fazer”.
O BNDES afirmou em nota que sua diretoria de conformidade solicitará a abertura de uma auditoria interna para apurar se houve irregularidade ou favorecimento no edital, embora os bancos do Plano Amazônia não tenham sido contemplados. “Caso a auditoria constate algum tipo de ilegalidade, o banco tomará as medidas legais cabíveis de responsabilização contra eventuais envolvidos”, disse.
Procurado, Leonardo Ceron afirmou que nunca recebeu qualquer pedido de favorecimento de Leonardo Fleck. Já Gustavo Montezano não respondeu aos questionamentos encaminhados pela reportagem.
‘Quase um copia e cola’
Nos áudios, Oos executivos do Santander, Itaú e Bradesco afirmam também que uma normativa da Federação Brasileira de Bancos publicada em maio deste ano teria sido criada por eles. A regra sobre restrição da concessão de crédito para frigoríficos ligados ao desmatamento ilegal na Amazônia teria sido copiada de uma súmula desenvolvida no Grupo de Trabalho Medida 1: Indústria da Carne e Frigoríficos do Plano Amazônia.
As gravações obtidas pela reportagem têm origem nas reuniões do GT, que era responsável por pesquisar potenciais medidas do setor bancário com relação à concessão de crédito para frigoríficos e organizá-las num documento de estratégia comum, a ser seguido pelos três bancos.
Os integrantes do GT Carnes se preocupavam que, ao estabelecer condições de mercado apenas entre si, pudessem acabar enquadrados por formação de cartel. Ao mesmo tempo, era importante manter as conversas com a Febraban em sigilo para evitar resistências de outros atores do setor.
“A gente não quer ser visto no mercado […] como os impulsionadores, apesar de a gente saber que a gente é, do que está acontecendo na Febraban”, disse também Leonardo Fleck em uma reunião de agosto do ano passado. “Mas o ideal é que a gente não seja percebido dessa forma, para não chamar muita atenção negativa para nós. […] Tem que ter esse cuidado”.
A redução do desmatamento na cadeia da carne era uma das 10 medidas do Plano Amazônia. Segundo a plataforma Map Biomas, o agronegócio foi responsável por 96% da supressão de vegetação no Brasil em 2022.
A Febraban é a entidade responsável por representar os bancos a nível nacional. Entre suas atribuições, está a autorregulação do sistema bancário, com a instituição de normas que devem ser seguidas por todas as empresas aderentes. Em teoria, normativas de autorregulação devem ser primeiro discutidas no Comitê Executivo de Autorregulação da Febraban, em que estão representados 18 bancos, e depois no Conselho de Autorregulação da associação, que tem caráter mais restrito.
Além de apontar para uma possível permeabilidade da Febrabran aos interesses do Bradesco, Itaú e Santander, a adoção da norma pode ser entendida como uma vitória para os bancos porque permitiu que critérios mais duros, que antes seriam adotados apenas pelas três empresas, fossem compartilhados com quase todo o setor bancário – evitando uma fuga de clientes.
Ao Joio e ao Intercept, a Febraban enviou uma nota em que admite que a súmula do Plano Amazônia foi “uma das referências consideradas para a elaboração do normativo”, assim como outros protocolos voltados ao setor da pecuária, mas disse que a norma seguiu o rito previsto no estatuto da entidade.
Procurados, Itaú, Bradesco e Santander não se manifestaram. Os citados Leonardo Fleck, Christopher Wells e Silvia Chicarino do Santander; Guilherme Treu, do Itaú; Fabiana Costa e Gustavo Acra do Bradesco; e Aline Aguiar, do Rabobank, tampouco responderam aos pedidos de comentários enviados por e-mail e LinkedIn.
Segundo dizem os executivos nos áudios obtidos pela reportagem, a normativa teria “nascido” no Plano Amazônia e era considerada uma entrega do grupo. É o que explicou Guilherme Treu, coordenador de estratégia ESG do Itaú, em uma reunião de maio de 2022, quando as tratativas com a Febraban já tinham começado e, a súmula, se transformado em uma minuta consultiva enviada pela federação aos demais bancos.
“A Febraban já está discutindo a autorregulação. Vocês devem ter recebido a consulta, que foi baseada na nossa súmula”, afirmou. “Aí eu acho que a gente meio que fecha essa evolução, vamos dizer assim, essa maturidade da medida 1 [do plano], porque ela passa a ser algo mais nível da Febraban. Ela nasce aqui, mas a gente leva o crivo para todo mundo adotar a nível Febraban. Eu, Guilherme, pessoalmente, encerraria o papo ali. A gente nasceu [a medida] e entregou”.
A súmula elaborada por Itaú, Bradesco e Santander previa que, até 2025, os frigoríficos atendidos pelos bancos na Amazônia Legal deveriam implementar sistemas de rastreamento de gado que permitissem zerar a aquisição de animais criados em áreas de desmatamento ilegal. Antes disso, em 2023, deveriam publicar compromissos públicos nesse sentido.
É exatamente o que define a normativa SARB 26/2023, da Febraban, de maio deste ano – ainda que sem prever consequências em caso de descumprimento.
A semelhança entre os dois documentos foi ressaltada em um diálogo entre Christopher Wells e Silvia Chicarino, respectivamente líder global e superintendente de risco socioambiental do Santander.
Àquela altura, em agosto, a normativa já estava sendo pautada nas instâncias deliberativas na Febraban e sofria resistências do Banco do Brasil – instituição com a maior carteira de clientes no agronegócio brasileiro.
Os executivos do Plano Amazônia especulavam que, além do medo de perder clientes, o banco resistia por motivos políticos, uma vez que o governo de Jair Bolsonaro era avesso a qualquer medida de contenção do desmatamento. A resistência do banco estatal poderia, então, resultar no afrouxamento de medidas previstas na súmula do Plano Amazônia.
“Vou falar uma coisa perigosa”, disse Wells em uma reunião em agosto. “Se a gente pegar o texto da Febraban, adaptar ele para a nossa súmula, que é quase um copia e cola, e divulgar como do Plano Amazônia, [a gente] mostra que o que vier da Febraban veio depois. E, se houver algum afrouxamento […], fica bom para nós”.
Chicarino então responde: “Eu não vejo problema algum, porque isso aqui, antes de ser da Febraban, é desse grupo aqui. A gente tem um compromisso com isso. Com ou sem Febraban”.
‘Não tem nenhum holofote sobre nós’
As gravações mostram que os integrantes do plano também discutiram o vazamento de um rascunho da normativa da Febraban pelo jornal Valor Econômico, em julho do ano passado, e se preocupavam com possíveis repercussões negativas à imagem dos bancos envolvidos.
Silvia Chicarino, superintendente de risco socioambiental do Santander: Nessa linha, vou fazer uma pergunta: aquela notícia no Valor, ela ecoou, deu algum ruído interno?
Christopher Wells, líder global de risco socioambiental do Santander: Para os nossos detectores, não. E vocês, Itaú, Bradesco, viram alguma repercussão?
Gustavo Acra, analista de ESG do Bradesco: Daqui do nosso lado, a gente também sentiu que não, não teve tanto prejuízo quanto no primeiro momento a gente achou, né? Não nos procuraram. Até acho que alguém foi procurado, mas o posicionamento foi que, como não é o Plano Amazônia, qualquer posicionamento deveria vir da Febraban. Porque não tem nenhum holofote sobre nós. Querendo ou não, foi sobre a Febraban e todos os bancos de uma forma geral. Então a gente não teve nada aqui do nosso lado, não.
‘Aí é Cade na hora’
Uma preocupação dos bancos era que o plano não fosse caracterizado como cartel. Isso foi discutido em uma conversa de junho de 2022 com uma representante do banco holandês Rabobank, para prospecção de boas práticas no financiamento de frigoríficos.
Christopher Wells: Mas aí que tá. Nós não podemos atuar como cartel.
Aline Aguiar, representante do Rabobank: Na hora de abordar o cliente?
Christopher Wells: Exatamente. A gente conversa aqui… E, na verdade, Aline, essa conversa que a gente está tendo, você está chegando no limite das coisas que podemos conversar. Os detalhes do que o Bradesco, Itaú, Santander… nós não compartilhamos, nós não alinhamos. Então, assim, nós não podemos ligar… Vamos supor, se a gente souber de um cliente pequeno [frigorífico] que trabalha com nós três, se nós três marcamos um call [chamada de vídeo], aí é Cade na hora [Conselho Administrativo de Defesa Econômica, responsável por fiscalizar formação de cartéis].
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