“Porque o nome da vítima tinha que estar na matéria?? Achei de muito mau gosto. Jurei que havia sido escrita por um homem, mas não, foi uma mulher que estampou o nome da vítima. Porr@, Fabiana, quanta falta de sensibilidade!!!!!”
Na última coluna que escrevi para o Intercept, abordei como o uso de um deep fake causou dor e constrangimentos vários na vida de Severina Maria Silva, agricultora pernambucana. Um perfil “motivacional” usou uma foto da senhora de 57 anos para, através de uma voz gerada por inteligência artificial, contar sua história profundamente violenta. A voz falsa contava detalhes da tragédia vivida por Severina, estuprada durante décadas por Severino, seu pai. A agricultora – que hoje não cita o nome da mãe ao falar da própria história, ao contrário do que acontece no deep fake – foi até a polícia fazer um registro de ocorrência, e o caso foi exposto por ela nas redes sociais.
O texto saiu em 21 de junho e, logo depois, foi divulgado nas redes sociais do Intercept. Em uma delas, o Instagram, o propósito maior da coluna – reverberar a denúncia de Severina e exemplificar como a inteligência artificial pode atravessar de maneira particularmente cruel o cotidiano de pessoas mais vulneráveis – foi para o brejo.
Estava na sala de espera de um consultório médico quando parei para ler os comentários nas redes do Intercept, cerca de uma hora após a publicação ir ao ar. Para minha surpresa (e já falo que a surpresa não é por acreditar que o jornalismo não erra, pelo contrário), havia uma chuva de comentários criticando a mim e ao veículo.
“Precisa colocar o nome completo da vítima mesmo? Qual a necessidade disso? Melhorem!”
“Apaga o nome da vítima pelo amor de Deus, que pohha de jornalismo machista é esse?”
Enquanto outra chuva acontecia – a de likes em comentários como os trazidos acima –, eu tentava entender o que estava acontecendo. Era, de novo, o já comum espetáculo do desentendimento nas redes, provocado principalmente pela lógica do atiro primeiro, pergunto depois.
É verdade que os nomes das vítimas de estupro e violências congêneres devem ser preservados – a não ser que a pessoa, sendo maior de idade, autorize e deseje a divulgação. Era justamente o caso de Severina. Há muito, ela não é somente uma vítima, mas também uma agente autônoma que decidiu e conseguiu ter um papel ativo não apenas para ajudar outras mulheres do agreste de Pernambuco, mas para narrar a própria história. É por isso que o “roubo” de sua fala é tão simbólico.
No processo de apuração para a coluna, nós conversamos durante uma hora por telefone, trocamos diversas mensagens, relembramos questões presentes em nossas vidas há mais de 10 anos. Estava evidente que ela já não era a mulher que havia me recebido em sua casa em 2012.
Severina conseguiu se emancipar. E a questão é que essa emancipação a tira do lugar único de vítima e, assim, diminui o poder heróico de quem pretende salvá-la.
Esse fenômeno da redução da pessoa ao papel de fraco ou mesmo incapaz se dá especialmente sobre populações vulneráveis: mulheres negras como Severina, mulheres pobres como Severina, mulheres nordestinas como Severina, etc. Me interesso por ele há tempos, justamente porque sei como os jornalistas e o jornalismo, se colocando como salvadores eternos, se capitalizaram com essa operação. São estratégias, conscientes ou não, de manutenção de poder: é preciso mostrar a debilidade de uma pessoa ou população para poder afirmar continuamente quem serão as superpessoas a salvá-las.
Isso acontece, por exemplo, na relação geral entre Nordeste e imprensa, uma vez que a última dá atenção preferencial a elementos como a miséria, a seca e a pobreza, deixando de expor outras camadas de uma região também marcada por variadas tecnologias, inovações e vanguardas. Dizer isso não é negar o balaio de desigualdades que existem neste pedaço de Brasil, mas afirmar que não podemos ser definidos apenas por elas. O nome disso é estereótipo.
Tem um vídeo (e um livro) muito famoso da escritora nigeriana Chimamanda Adichie falando a respeito de questões como essas. É bem pedagógico e nos obriga a fazer nossas fundamentais autocríticas. Mas será que estamos realmente dispostos a fazê-las ou é mais confortável apontar o dedo para o outro e mostrar ao mundo o quanto somos corretos, impolutos e moralmente superiores?
Precisei entrar na consulta médica e só depois de uns 40 minutos voltei ao post. Quase nenhum comentário falava sobre a violência que Severina procurou expor, apesar de o texto no site ter o link para um vídeo no qual a agricultora aparece na frente de uma delegacia após fazer o registro de ocorrência sobre o uso indevido da sua imagem. Está aqui. Algumas pessoas, ainda no Instagram do Intercept, já chamavam atenção para o fato de a própria agricultora contar sua história publicamente, há tempos. Mas essa informação não era levada em consideração, uma vez que ela desvalorizava as intenções salvadoras.
“Eu entendo perfeitamente a matéria, mas qual a necessidade de colocar o nome completo da vítima? Gente, bastava as iniciais, qual a necessidade de expor assim a mulher? @theinterceptbrasil”
“Apaga o nome da vítima que ainda dá tempo @theinterceptbrasil”
Quando percebi que o esforço para refletir sobre o deep fake no cotidiano de Severina já tinha sido engolido pelo discurso que nos reduzia a um bando de descuidadas com uma vítima, com as pessoas lendo somente o post e não a coluna, chamei a atenção do coletivo Marias Também Têm Força, criado pela advogada Karinny Oliveira em parceria com Severina, para o fato.
Isso porque, somente após passar pelo Marias, a coluna foi ao ar. O coletivo acompanhou o processo do texto, foi entrevistado e deu ok final na redação. O comentário realizado pelo grupo foi fixado no post do Intercept como forma de evidenciar o lugar de autonomia de Severina e reduzir o ruído desnorteador.
Mas mesmo com essa última estratégia e com muita gente avisando que Severina é uma ativista, as chamadas iradas sobre o “problema” da divulgação do nome da agricultora continuaram. Isso me fez pensar no quanto a participação no debate social nas redes pode ser perversa quando essa participação só pressupõe o grito, mas não a escuta. Perversa ainda, no caso de Severina, porque ocorria ali tanto a insistência na manutenção de sua imagem como uma mulher supostamente sem ação e desejos próprios quanto a invisibilização da denúncia da agricultora sobre o deep fake.
Isso por quem, teoricamente, estava agindo em sua defesa.
O jornalismo errou e ainda erra um bocado, e boa parte das mudanças positivas na área vêm justamente de pressões externas, como escrevi no livro “A pauta é uma arma de combate“. Sem uma sociedade que se redesenhou e está mais atenta a questões como a misoginia e o machismo, o racismo, o capacitismo, a xenofobia, a transfobia e outras formas de desumanização, teríamos caminhado a passos ainda mais lentos nas redações.
Mas o jornalismo, uma das instituições mais atacadas no governo Bolsonaro, também faz parte dessa sociedade – não é somente atravessado por ela. Existem nele, hoje, muito mais profissionais e veículos, dos mais jovens aos mais experientes, dispostos a ajudar em uma real reconfiguração democrática do Brasil. Esse não é um trabalho fácil por uma série de motivos que perpassam resistências internas, precarização de trabalho, falta de empregos e recursos, descrédito da sociedade, etc.
Erramos – e aprendemos
“Não entendi porque informou o nome da vítima (que devia ser preservado) e omitiu o do estuprador e do perfil ‘motivacional’? Faltou um texto mais coerente”, escreveu alguém nas redes.
Alguns dos comentários do post chamaram atenção também para o fato de o nome do estuprador não constar no texto, e ainda por termos omitido o perfil que usou indevidamente a imagem de Severina. A chamada sobre a primeira questão está absolutamente certa, e nos levou a corrigir o erro: o nome de Severino, ou Zé da Fuba, como era conhecido, foi colocado tanto no texto quanto no post do Instagram por volta das 11h da manhã. Essa edição está sinalizada no site. Inserir o nome do agressor é uma forma de tática de desestabilização da cultura do estupro. Quando escrevi a reportagem com Severina em 2012, com bem menos consciência de questões de gênero e raça, expus o nome de Zé. Desta vez, por um esquecimento que não deve se repetir, não.
Já a inserção do perfil do criador do deep fake não aconteceu por uma escolha pertinente: não darmos mais visibilidade a alguém que está justamente em busca de acessos e likes. Seria uma forma de premiarmos o rapaz (cujo perfil a aparece no Instagram do Marias Também Têm Força, aliás).
Esse caso demonstrou para mim o quanto nós, jornalistas, professoras e profissionais da comunicação, temos um enorme desafio pela frente: informar e contribuir com um debate social de qualidade em um momento de desatenção, sofrimento social e gritaria.
Conversei com várias preciosas colegas a respeito e todas concordaram que nossos textos mais elaborados não recebem 10% da atenção dos posts feitos nas redes para tentar chamar o público para eles (redes que possuem diversas limitações e propósitos). É definitivamente o momento de trazer, já para este ambiente, textos que não podem ser concebidos apenas como chamarizes, mas sim confeccioná-los aliando síntese e complexidade. Entendê-los como o primeiro e único contato sobre determinada informação.
Por outro lado, é necessário que usuárias e usuários da internet, ou seja, quase todas e todos nós, compreendam que quase nenhum post jornalístico vai dar conta da profundidade dos temas cotidianos que nos atravessam. Por mais que a lógica das redes virtuais nos levem a achar que existem soluções simples para fenômenos complexos, o riscado da vida nos mostra que a coisa não é bem assim.
É necessária, ainda que haja muita pressa ou muita vontade de mostrar-se moralmente superior e infalível, a compreensão de que um mergulho mais profundo e transformador precisa ir além das chamadas, chegando ao material jornalístico completo. Mas nada disso adianta se não fizermos parte, de maneira honesta, desse processo – afinal, a compreensão das coisas não acontece sem uma revisão constante de si.
Afinal, o que sobra vivo quando atiramos primeiro e só perguntamos depois?
P.S. Pensei muito em Severina e nas razões de sua fala ativa quando li, recentemente, a entrevista com a ativista iraquiana Nadia Murad (Nobel da Paz em 2018 ao lado do ginecologista congolês Denis Mukwege), que passou meses sendo escravizada sexualmente. “Não compartilhar sua história protege os criminosos”, disse ela. A entrevista, para a Folha de S.Paulo, está aqui.
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