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Cinco fatos para você não falar besteira sobre a Cracolândia

Doutora em Antropologia Social tira dúvidas comuns sobre a Cracolândia, mudando o foco dado pela mídia à violência para as dinâmicas dessa população.

Cinco fatos para você não falar besteira sobre a Cracolândia

O noticiário dos últimos dias voltou a dar destaque à Cracolândia, em São Paulo, pela mesma ótica reducionista de sempre: a da violência. A grande imprensa não parece muito interessada em entender as dinâmicas desse espaço que diferentes governos têm fracassado sistematicamente em desfazer.

Como pesquisadora do Núcleo de Etnografias Urbanas do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, o Cebrap, eu fiz pesquisa de campo sistemática na região entre 2011 e 2017. Nesse texto, vou tirar algumas dúvidas comuns sobre a Cracolândia. Para isso, me apoio também na vasta produção acadêmica sobre o tema – que, infelizmente, tem sido ignorada pelos órgãos públicos competentes. 

Vamos lá.

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1) A Cracolândia é isolada da cidade?

A Cracolândia não é uma ilha cercada pela cidade. Ela não está desconectada de processos e políticas postas em prática pelo estado, por entes privados ou por facções criminais em outros cantos da cidade de São Paulo, do estado ou do país. Ela acolhe os fluxos marginais provindos de diferentes partes e precisa ser pensada enquanto “conector urbano” de populações marginalizadas — um refúgio urbano para ex-presidiários, pessoas em situação de rua, trabalhadores, migrantes, prostitutas, usuários de drogas e portadores de problemas psiquiátricos, por exemplo, que não têm para onde ir. 

Por isso, a Cracolândia não pode ser isolada de dinâmicas urbanas mais amplas e das estruturas de desigualdade. Nem pode ser resumida à questão do consumo e venda de crack. Vou te dar alguns exemplos bem concretos para mostrar como a Cracolândia está completamente imbricada nas lógicas dos mercados populares.

a) As políticas de despejo realizadas em outras partes da cidade e a questão da moradia de forma geral implicam diretamente no número de frequentadores da região;

b) A expulsão de usuários de drogas de seus bairros origem pelo PCC ou por moradores acaba os levando para o centro;

c) As prefeituras de diferentes cidades do estado pagam passagens para pessoas em situação de rua irem para capital, ao invés de lidarem com esse problema social localmente; 

d) É comum que encarcerados de São Paulo, quando libertos, precisem conseguir dinheiro para voltar para suas longínquas casas e acabem se refugiando na Cracolândia;

e) Os trabalhadores precários que recebem semanalmente costumam frequentar mais o local aos finais de semana para relaxar e consumir a droga, deixando o “fluxo” mais cheio nesses dias.

2) Falta estado na Cracolândia?


Muito pelo contrário. A presença estatal é, na verdade, parte do problema e da amplificação dos conflitos na região. Duas características têm marcado as intervenções estatais ali, nas últimas duas décadas. 

A primeira é a lógica de operações policiais repressivas, com o objetivo de dispersar o “fluxo”. Isso é notoriamente ineficaz, tanto do ponto de vista humanitário quanto do mais simplista, de “sufocar” o tráfico de drogas na região. As operações parecem responder muito mais às dinâmicas de “acertos” – ou seja, dos acordos financeiros entre traficantes e agentes das forças da ordem – e de corrupção policial do que às demandas de segurança pública de fato.

Sabemos que as quantidades mais significativas de drogas não estão nas ruas ou nos bolsos dos frequentadores da Cracolândia, mas sim estocadas dentro de casas, prédios, cortiços e apartamentos – muitas vezes, de classe média alta – localizados perto da região e em outras partes da cidade. 

A segunda característica é a instabilidade dos programas sociais e de tratamento ofertados a essa população. O que se vê é que eles respondem muito mais a dinâmicas partidárias e eleitorais do que a critérios baseados em políticas que deram certo em outros lugares do mundo. Isso cria um cenário de incerteza tanto para as pessoas atendidas, quanto para a rede de trabalhadores sociais. Pior: impossibilita a construção de projetos de vida de longo prazo.

A tendência que emerge, como resultado, é a radicalização do conflito na Cracolândia e o questionamento da legitimidade do estado enquanto ator bem capacitado para administrar as adversidades do local.

3) A Cracolândia é sinônimo de caos?

Quando olhada a partir da sua dinâmica e de seus valores internos, existe a produção de ordem, hierarquias, vínculos sociais e regimes de poder. A Cracolândia só é o caos para quem nunca passou um dia no “fluxo” e não conhece as suas formas próprias de controle e de regulação de conflitos.

Inúmeras vezes, ao longo da minha pesquisa de campo, eu ouvi: “Aqui todo mundo se conhece”. Isso também quer dizer que pessoas “estrangeiras” a esse mundo, quando chegam, precisam explicar o que fazem ali, qual a sua história, a sua “caminhada”, e estabelecer um comportamento adequado em relação aos pares. 

A Cracolândia não é terra de ninguém em que reina a irracionalidade e a desumanidade. Uma visão puramente externa não é suficiente para a construção de caminhos viáveis para as questões que ela apresenta.

4) A Cracolândia é o fim da linha?

Quando acompanhamos as trajetórias dos frequentadores da Cracolândia, vemos que ficar ali é considerado “menos pior” do que outros lugares pelos quais eles já passaram. Estamos falando de pessoas cujas histórias de vida são marcadas pela tortura, a violência doméstica, a humilhação e a privação de recursos e serviços. 

A vida de um usuário de crack assíduo que fica na periferia tende a ser muito pior e menos livre do que a de um que vai para o centro da cidade. Ali, eles estão entre pares. Não é necessário se esconder em locais escuros e insalubres para consumir, há mais circulação de pessoas e pequenas ajudas no dia a dia. 

Há, também, uma maior oferta de serviços assistenciais e de bicos, além de uma maior possibilidade de anonimato. Quando aglomerados, um protege mais o outro.

5) A Cracolândia é um território fixo?

A Cracolândia é itinerante, mas se move para permanecer no mesmo lugar. O que isso significa? Que a Cracolândia está onde os usuários estão, impondo desafios à governança urbana da territorialidade do momento e às práticas policiais de dispersão.

A capacidade de fazer-se e desfazer-se, de dispersar-se e aglomerar-se é uma marca da Cracolândia, que também desafia políticas institucionais pautadas por uma racionalidade sedentária e de reprodução do modelo casa, família e trabalho.

 

Caso você queira continuar aprendendo sobre a Cracolândia, sugiro a leitura desse dossiê, em que parte das ideias apresentadas aqui são trabalhadas.

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