Em um dos teasers do filme “Barbie”, vemos um lugar deserto, meio pré-civilizatório, no qual vive um grupo de meninas. Elas cuidam tranquilamente de suas bonecas gorduchas, quase tão bochechudas quanto elas, até que surge no céu uma sombra enorme e longilínea. É de uma loira fatal, de maiô listrado preto e branco, batom vermelho e sorriso sedutor. A gigante baixa os óculos escuros, ri e pisca para as meninas, que a olham boquiabertas. Uma delas segura as pernas de sua boneca-bebê e começa a destruí-la. A outra descarta seu objeto e joga-o para o espaço. É uma referência ao clássico filme “2001: Uma Odisseia no Espaço“, de Stanley Kubrick (de “Laranja Mecânica“), cujo perfil no Twitter postou a cena-homenagem.
Colocar a Barbie no lugar do monolito que aparece na Terra na cena original foi uma excelente ideia e nos dá uma ótima ilustração. Se, no filme de 1968, os primatas são apresentados a um monumento que demarca uma nova ordem chamada de “civilização”, no teaser as crianças são convidadas a deixarem de ser mini-donas de casa e a se lançarem no brilhante mundo do mercado de trabalho.
Nele, elas podem se deslocar do papel único de mãe e virarem médicas, astronautas, empresárias, etc. Saiam do espaço privado e ocupem os espaços públicos, sugere o monolito loiro de plástico. Inaugurava-se a nova ordem do “tudo o que você quer ser”, como diz o famoso slogan da Mattel, empresa que produz a boneca.
Desde seu nascimento, em 1959, Barbie procura assimilar, sempre com algum delay, o “espírito do tempo”, sendo há mais de seis décadas uma espécie de tradução de ideais de sucesso na vida (algo como não envelheça, tenha um par romântico e compre um carro). Nessa operação, ela não só assimila quanto também reforça socialmente modos de estar no mundo, e é por isso que, goste você ou não da boneca ou do filme, Barbie vale muito a nossa atenção: a sua sombra enorme e longilínea paira não só sobre as crianças, mas sobre todos e todas nós.
Reparem como ela está majestosa sobre nossa cabeça agora, a despeito de todas as discussões travadas nos últimos anos sobre corpos mais livres e “positivos”, sobre racismo, hierarquias de classe, meritocracia, misoginia, etc.
Nas farmácias, as vendas do Ozempic, remédio recomendado para o tratamento de diabetes, mas usado há anos para o emagrecimento rápido, cresceram 127% no ano passado, tornando o medicamento o campeão de vendas em 2022. No Google, uma das buscas campeãs de 2022 foi “como ser padrão“ (isso mesmo, COMO SER PADRÃO). Nas passarelas de Milão, Nova Iorque, Paris e Londres, as modelos supermagras voltaram a desfilar este ano, acompanhando a “moda” das mulheres anoréxicas – conhecida como heroin chic, numa alusão à magreza dos usuários de heroína – que marcaram o fim dos anos 1990 e início dos anos 2000. A última década passou a servir de “nova” referência estética, com a supervalorização da magreza como uma moeda cultural a ser conquistada. TikTok e Instagram já estão empestados.
A sombra da Barbie ainda paira, coquete, sobre nossas cabeças enquanto milhares de pessoas buscam técnicas perigosíssimas como o “bleaching” para clarear a pele, usando produtos extremamente danosos para a saúde (volto a falar a respeito). Ela paira – e nunca deixou de estar lá, nós sabemos –enquanto criam-se centenas de filtros digitais moderninhos que afinam narizes, esticam e embranquecem faces e redesenham contornos, grande parte deles usados por grupos e gerações que, vejam só, adoram falar sobre liberdade e quebra de padrões.
“Ah, mas o filme tem Barbie gorda e Barbie preta”. Pois é, tem. A gente já chega nesse ponto.
Dirigido por Greta Gerwig (conhecida por “Francis Ha“), que também assina o roteiro ao lado de Noah Baumbach, “Barbie” apresenta 12 versões da famosa boneca criada por Ruth Handler, uma das fundadoras da Mattel. Além da Barbie protagonista (a atriz Margot Robbie), estão na película também a Barbie presidente, a Barbie grávida, a Barbie médica, a Barbie sereia, a Barbie diplomata, a Barbie juíza, a Barbie prêmio Nobel etc. São atrizes e cantoras negras, pardas e brancas, magras e gordas, indicando que há diversidade de existências ali.
Mas esse show de “diversidade”, palavra danada que há muito serve não para mudar as coisas, mas para deixá-las como estão (como aconteceu também com empoderamento), tem uma razão de ser. A Mattel ligou o alerta vermelho no ano passado, após registrar uma queda de 93% no lucro líquido da empresa no quarto trimestre. Em vez dos 225,8 milhões de dólares do ano anterior, foram 16,1 milhões. No total, houve uma queda de 56% no lucro líquido de 2022, e a baixa na venda da Barbie, carro-chefe da companhia, tem total relação com isso: também no quarto trimestre do ano passado, a procura pela boneca caiu 33% em relação ao ano anterior.
Assim, a captação de “novos” corpos, uma demanda caríssima ao liberalismo atual, foi uma excelente forma de reabilitar os lucros da empresa e a reposicioná-la no mercado. A criação do Barbieverso, com a adesão de milhares de influencers ao redor do mundo, caiu como uma luva para fazer os bilionários continuarem sendo bilionários enquanto performam inclusão e responsabilidade social.
Em “Barbie: apocalíptica ou integrada?”, a pesquisadora Rosângela Barbosa da Silva identificou justamente como o “brinquedo” sempre seguiu tendências culturais se pautando em um feminismo (liberal). Ela analisou os lançamentos da boneca desde o final da década de 1950 até 2009, tempo no qual a Barbie chegou até mesmo a ser hippie, pediu a paz mundial e deixou os cabelos crescerem. Em 1968, com o Black Power a mil, ela ganhou uma amiga negra, a boneca Christie.
Agora, estamos frente a uma “nova onda”, na qual a moda é a presença de Barbies supostamente dissidentes, aquelas que saíram de nosso mundo de pixels e plástico para habitar o Barbieverso, e não o contrário. São pessoas negras, gordas, PCDs, transgêneras que, no longa e fora dele, orbitam em torno de um monolito – justamente o corpo branco, o corpo magro, o corpo buscado quando milhões digitam “como ser padrão” no Google, ou o corpo que a indústria da moda, que até ontem dizia “basta” para a anorexia, voltou a cortejar.
Das 12 Barbies do filme, sabemos que uma delas é a que vai repercutir sua sombra gigante nas salas dos cirurgiões plásticos: aliás, as Barbies e Kens que “brotam no chão” em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, são uma boa ilustração disso. O barbeiro Marcelo Bergmann, o “Ken humano” da cidade, disse que “tomou banho de lua” e parou de pegar sol para se parecer com o boneco. O resultado está abaixo: é um modelo de existir.
Raça, corpo e modos de existir nunca foram e nunca serão assuntos laterais: hoje, mais do que nunca, eles também ajudam a derrubar ou a eleger presidentes, a fortalecer ou não bancadas no Congresso Nacional, a definir políticas públicas que têm parte com a sobrevivência de muitas. Nos EUA, a Suprema Corte acabou de derrubar as cotas raciais nas universidades. A mesma corte dificultou o direito ao aborto no país em decisão tomada em junho do ano passado.
Aqui, a discussão sobre aborto segue semi-interditada, enquanto as mais pobres morrem sem poder recorrer a métodos mais seguros de interrupção da gravidez.
O que a Barbie monolito, a Barbie presidente, a Barbie grávida, a Barbie médica, a Barbie sereia, a Barbie diplomata, a Barbie juíza, a Barbie Prêmio Nobel, aquelas que hoje estão no mercado da moda, no mercado afetivo, no mercado de trabalho, têm a dizer sobre isso? O que as Barbies que sofreram os impactos da reforma trabalhista de 2017 (que elevou o número de assédios morais e sexuais no trabalho) podem dizer, também? O que as milhares de influencers que aderiram às campanhas publicitárias do filme podem falar a respeito dessas questões que também são motivos de disputas no Brasil?
Se a Mattel segue mesmo tendências sociais e leva para o Barbieverso o mundo de carne, osso e plástico que vivemos aqui, vale perguntar: Quem fica com os filhos da Barbie juíza e da Barbie médica quando elas saem para trabalhar? Com que acessórios vem a Barbie diarista ou a Barbie entregadora do Ifood? Como é a dreamhouse da Barbie que mora na periferia de Recife? Quantas horas no ônibus passa a Barbie que trabalha no centro do Rio e mora em Jacarepaguá?
Se as Barbies são reais, vamos convidar essas, que estão fora dos modelos liberais de sucesso, para conversar?
A crítica já está contratada
“Ah, mas o filme da Barbie é justamente uma crítica à vida perfeita da Barbie”. Tá bom, e eu sou aquele emoji derretendo toda vez que escuto isso. Nossa distração é pura gasolina para o esperto: faz tempo que o setor corporativo percebeu que, para sobreviver, é preciso abrir espaço para quase toda dissidência que possa arranhar campanhas perfeitas e produtos reluzentes.
A crítica negativa já está contratada e sua “participação” faz parte do pacote de vendas do combo. Assim, o tensionamento que poderia produzir alguma mudança e quebra no status quo já faz parte da campanha. A da Barbie está devidamente protegida por influencers de diferentes cores, corpos e nacionalidades, conferindo o esperto selinho “identitário” no filme.
Com que acessórios vem a Barbie diarista ou a Barbie entregadora do Ifood?
É algo parecido com o que vimos no filme “Não olhe para cima“, uma “crítica social foda” tão contundente quanto uma pedra de gelo, uma sátira inofensiva sobre o sistema hollywoodiano vendida como se fosse uma lapada da indústria no proprio rosto. É o tipo de contradição com a qual passamos a nos acostumar e acontece frequentemente também entre nós, jornalistas, que organizamos congressos e seminários para discutir temas como desinformação e democracia enquanto somos patrocinados pelo Google e pela Meta.
Derrete, carinha feliz de emoji.
Faça a pipoca, junte o povo, vá ver o filme, se divirta: nesse mundo que mói a gente, nós que já passamos a comer plástico nas refeições, aliviar o juízo é urgente. Mas entender e preconizar que Barbie se trata de disrupção, “representatividade” e “empoderamento” – enquanto fora do Barbieverso as pessoas tomam “banho de lua” para clarear a pele e voltam a procurar calças 36 – só sinaliza que há um monolito sobre nossas formas de compreensão da política.
Não é possível falar da Barbie sem observar como estamos, mais do que nunca, dispostos e dispostas a nos engajar, individualmente e em rede, em produtos cujos conteúdos são tomados pela mescla de nossas expectativas e sentimentos, nossos desejos, raivas e projeções. Nesse engajamento, os objetos assumem uma outra face: eles se tornam eu e você.
Seja embalada com emoção, com história de vida ou com reconhecimento de si, as Barbies da Mattel, no final, apenas “seguem tendências” – o que é bem diferente de reconhecer nossa humanidade.
Para saber mais: leia o artigo “Ciladas do novo estilo barbie: subserviência e hegemonia na constituição da identidade das meninas”, de Sheila dos Santos (análise das páginas oficiais que a Barbie mantém nas mídias digitais: Youtube, Facebook e Instagram).
P.S.: Na música “Barbie Girl“, a banda Aqua não celebra a boneca, mas tece uma crítica sobre o machismo e domínio sobre o corpo da mulher: “Você pode tirar minha roupa em qualquer lugar/Me faça andar e falar como você quiser. O mesmo vale para a versão de Kelly Key, que subverte a letra da canção original: “Você pode me ganhar/É só fazer/O que eu mandar”. Repito: nossa distração é gasolina para o esperto.
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