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Fundos do agro fazem Faria Lima investir em escravidão, desmatamento e grilagem

Criados com a falsa promessa de apoiar pequenos agricultores, os Fiagro já têm R$ 13 bilhões em patrimônio. De olho no agro, mercado ignora crimes.

Fundos do agro fazem Faria Lima investir em escravidão, desmatamento e grilagem

Aprovados a toque de caixa em março de 2021, os fundos de investimento do agronegócio, chamados de Fiagro, foram a promessa da bancada ruralista para “democratizar” o acesso dos pequenos agricultores ao crédito. Mas, até aqui, o que se vê é um impulso ainda maior dado a grandes empresas envolvidas em crimes e fraudes fiscais – algumas delas são, inclusive, o terror dos pequenos agricultores.  

Entre tantos movimentos possibilitados pelo Fiagro, alguns resvalam em uma série de práticas criminosas. A Agropecuária Schio, por exemplo, foi denunciada por escravização de indígenas. Em setembro de 2022, ela foi incorporada ao portfólio do fundo KNCA 11, com perspectiva de arrecadar R$ 100 milhões. 

Dois meses antes, uma fazenda fornecedora da empresa havia sido flagrada em uma operação de combate ao trabalho análogo à escravidão. Oitenta trabalhadores eram mantidos nessa condição. “Não víamos essas condições de degradância na região há muito tempo”, afirmou o procurador do Ministério Público do Trabalho de Caxias do Sul, Rodrigo Maffei, à Repórter Brasil. 

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Já a empresa de investimentos Riza se interessou por um grupo de fazendeiros do Matopiba – região agrícola que se estende pelos estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia –, entre os quais há investigados por um escândalo de grilagem em 380 mil hectares, tamanho equivalente a cinco vezes a cidade de Salvador.

A criação dos fundos foi parte de uma ofensiva da bancada ruralista para ampliar as possibilidades de atrelamento entre mercado financeiro e agronegócio com base na ideia de que “o agro não cabe mais dentro do governo”. Seria necessário criar fontes de financiamento privadas que em pouco tempo superariam, com sobra, os recursos públicos, dos quais o agro inclusive prescindiria – uma promessa que ainda não se concretizou, nem parece em vias de se concretizar. 

No caso dos Fiagro, a ideia é copiar o modelo dos fundos imobiliários urbanos, que detêm um patrimônio de mais de R$ 250 bilhões. Esse tipo de investimento é uma maneira de “facilitar o acesso” de investidores e pessoas físicas interessados nos lucros do setor, que gosta de se apresentar como “a indústria-riqueza do Brasil”. 

Os Fiagro têm seguido o padrão de outros instrumentos do mercado financeiro relacionados ao agronegócio: o passado de grilagem, desmatamento e trabalho análogo à escravidão não parece ter peso algum nas decisões de investimento. E, assim como outros instrumentos, os Fiagro se baseiam na falsa premissa de que o agro alimenta o mundo – o que justificaria, e até daria um ar nobre, aos bilhões despejados no setor. 

“O Fiagro beneficiará os pequenos e médios produtores e agricultores familiares”, jurou o então senador Carlos Fávaro. Ele foi designado em 9 de fevereiro de 2021 como relator do projeto de lei sobre os novos fundos — no mesmo dia entregou um relatório, aprovado já na noite seguinte. Um ano e meio depois, o parlamentar do Mato Grosso ascendeu a ministro da Agricultura. Quem não ascendeu junto foram os pequenos e médios produtores, que seguem a ver navios em termos de Fiagro. 

Pouco mais de dois anos depois de sua aprovação, em maio de 2023, os fundos já tinham um estoque de R$ 13,1 bilhões, um crescimento de 255% em 12 meses. Mas as apostas do mercado financeiro vão longe: falam em se igualar aos fundos imobiliários urbanos.

“A gente está trazendo a Faria Lima para dentro do agro, e a gente está trazendo o varejo para dentro do agro”, resumiu Leonardo Sologuren, presidente do Comitê Estratégico Soja Brasil e fundador da Zeus AgroTech. Durante uma live da XP, ele falou que o agro está entrando no mercado de capital “mais democratizado”: se antes os produtores precisavam recorrer a contratos de financiamento com as tradings responsáveis pela compra de grãos, por exemplo, agora podem apelar diretamente ao mercado financeiro.

Os investimentos privados no agronegócio tiveram forte expansão durante o governo Bolsonaro. Regulamentados no primeiro mandato de Lula, os Certificados de Recebíveis do Agronegócio, os CRA, eram uma das pontas de lança, junto com as Letras de Crédito do Agronegócio, as LCAs. Os CRAs são títulos de renda fixa que podem ser usados para uma empresa ou um produtor rural conseguir atrair investimentos. Em abril de 2023, o estoque de CRAs bateu R$ 103,6 bilhões, mais que o dobro da marca obtida apenas dois anos antes e 30 vezes mais que o valor registrado em 2015. 

Verdes novidades

A sustentabilidade está no centro do discurso da UISA, antiga Usina Itamarati, que entre 2017 e 2018 trocou o nome e garantiu ter mudado de rumos. Em sua página, afirma: “Valorizamos a preservação ambiental e entendemos que as nossas operações devem gerar impactos positivos para o planeta, assim, assumimos o papel de agente transformador em toda nossa cadeia de valor, por isso, nossos produtos são produzidos com energia limpa e renovável”. 

Criada nos anos 1980 pelo rei da soja Olacyr de Moraes, a Usina Itamarati amealhou R$ 94 milhões do BNDES. As duas maiores linhas de financiamento se deram justamente após a transição na estrutura da empresa. Desse total, R$ 50 milhões eram um estímulo do banco, sob a gestão Jair Bolsonaro, para a “descarbonização do setor de combustíveis”. Nos dizeres da instituição financeira pública, o empréstimo integra a carteira de ASG ou ESG, sigla do mercado para transmitir a ideia de um capitalismo responsável do ponto de vista ambiental, social e de governança. 

Mas a UISA entendia ser preciso garantir mais dinheiro e encontrou nos investimentos privados do agronegócio as portas abertas. Em comunicado ao mercado em janeiro de 2022, a usina anunciou a intenção de captar R$ 344 milhões com a emissão de um CRA. Além disso, foi pioneira no mercado de “CRA verde” – operação que, em tese, financiaria projetos voltados à redução de emissões de poluentes e à construção de um agro sustentável. Nesse caso, obteve R$ 150 milhões na operação encerrada em maio de 2023. Em paralelo, a empresa integra a nova leva de corporações do agro que almejam abrir o capital na bolsa de valores, uma maneira de alavancar ainda mais os negócios.

A aura verde parece ter conquistado também duas gestoras de fundos do agronegócio. A UISA passou a representar a maior fatia dos Fiagro da Kinea, com R$ 180 milhões investidos – mais de 10% de um portfólio que cresce rapidamente e já bate quase R$ 1,5 bilhão. A proposta de investimento da empresa atraiu outros R$ 50 milhões do BTG Pactual. 

Talvez as duas gestoras tenham se esquecido de checar os autos de infrações aplicados nos últimos anos, depois que a UISA diz ter se tornado “verde”. O Joio encontrou quatro autuações nesse período. Na primeira, em 2019, por uma queimada de 1.722 hectares. Na última, depois que a empresa já havia ingressado nos fundos do agro, pelo desmatamento de 12 hectares. 

No histórico da empresa, há ainda infrações por captação de águas superficiais acima do volume permitido; derramamento de vinhaça, um subproduto altamente poluente do processamento da cana; e não atendimento de exigências legais de órgãos ambientais.

Mais distante no tempo, e nem por isso menos relevante, é que a empresa já foi flagrada por trabalho análogo à escravidão. O fato se deu em 2008 em Nova Olímpia, no Mato Grosso do Sul, quando 67 funcionários foram resgatados.

Procurada, a UISA decidiu não comentar os questionamentos a respeito de financiamento e as autuações ambientais registradas nos últimos anos.

Confortável e satisfatório

Além de incorporar ao seu fundo a Agropecuária Schio, a Kinea decidiu aportar R$ 61,8 milhões na Frigol. Uma investigação publicada em 2022 pela Repórter Brasil mostra como o frigorífico e a JBS compraram gado de pecuaristas que atuam de forma ilegal dentro da Terra Indígena Apyterewa, em São Félix do Xingu, no Pará. No local, há muito mais invasores do que indígenas – 3 mil famílias praticam atividade ilegal na área pública, tendo sido responsáveis por 98% do desmatamento. 

Em 2021, a Usina Rio Amambaí Agroenergia, situada em Naviraí, Mato Grosso do Sul, da gestora americana Amerra, também captou R$ 320 milhões em CRAS, e mais 60 milhões em “CRA verde”, com critérios sustentáveis internacionais. A empresa, antes chamada Usinavi, foi comprada em 2016, na época em parceria com o fundo CarVal.

Embora seu desempenho ESG seja avaliado como “confortável” para a parte ambiental e “satisfatório” para as áreas social e de governança pela organização Sitawi, pode ser que tenham esquecido de checar as autuações no Ibama e as dezenas de ações trabalhistas movidas contra a empresa.  

Em 2019, a empresa foi investigada pelo Ministério Público de Mato Grosso do Sul por despejar resíduos de cana em uma lagoa, causando a poluição de um rio, com morte de peixes – a questão foi encerrada com a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta, ou TAC

O Joio e O Trigo e o Intercept apuraram que, em novembro de 2020, a empresa foi autuada pelo Ibama no valor de R$ 77 mil por crimes ambientais. Em 2022, foi novamente autuada por crimes ambientais, nos valores de R$ 154 mil e R$ 20 mil.

O nome pode ter mudado, mas o passado vem junto: na Justiça do Trabalho, seguem em tramitação diversas ações por dano e pensão vitalícia, dano moral coletivo, doença ocupacional, adicional de insalubridade, acidente de trabalho e demissão por hanseníase.

Especulação fundiária

Em uma transmissão organizada pela XP, o gestor do fundo da Riza, Paulo Mesquita explicou por que tem priorizado somar ao fundo fazendeiros, e não empresas. “Grosso modo, ele tem terras atualmente, quando teve um boom de valorização de terras acima de bilhões, que talvez tenham valor de mercado acima do valor de empresas listadas [na bolsa]”, contou. 

Apesar de dono de terras que valem milhões ou bilhão, esse fazendeiro segue com dificuldades na captação de recursos, então, é possível firmar com ele contratos a juros mais altos. “Existe uma assimetria de informação no mercado que faz com que a gente consiga ter um spread numa operação com esse cliente, com risco muito mais baixo do que eventualmente uma emissão ao mercado de uma outra empresa. Então a gente até olha mais esse tipo de operação.”

Lançado em outubro de 2021, o fundo da gestora Riza chegou em maio de 2023 a um valor de R$ 647 milhões, mais que o dobro do registrado apenas um ano antes. As maiores operações, num total de R$ 84,2 milhões, são quatro CRAs divididos entre grupos de fazendeiros que atuam no Matopiba – justamente exemplos do que Paulo Mesquita havia classificado como a jogada mais valiosa desse Fiagro. 

Os relatórios entregues mensalmente ao mercado não fazem qualquer menção ao histórico dos fazendeiros. Um deles, controlador do Grupo Horita, atua no oeste da Bahia, com uma trajetória de autuações por desmatamento e grilagem. Em apenas um dos casos, o mais famoso deles, Walter Horita integra a lista de proprietários investigados por uma mega grilagem na fazenda Estrondo, em Formosa do Rio Preto. 

Mas há mais. No dia 3 de maio, o Tribunal de Justiça da Bahia emitiu decisão para congelar 19 fazendas que atingem a comunidade tradicional de Capão do Modesto, no município de Correntina. Novamente, o Grupo Horita figura como réu.

Por meio da assessoria de imprensa, a XP informou que não comentará a questão. A Riza e a Kinea não responderam. 

Perguntada sobre a denúncia feita pela Repórter Brasil sobre compra de gado ilegal na Amazônia e sobre o que tem feito para ampliar os mecanismos de controle, a Frigol respondeu, por meio de nota: “Monitoramos 100% dos fornecedores diretos, em todos os biomas onde atuamos, e levamos até consumidores e clientes a rastreabilidade socioambiental em 100% dos nossos produtos in-natura que chegam ao mercado, tanto nacional quanto nas exportações, através de um QRcode inserido em nossos rótulos e em vários idiomas”. 

Questionada se o monitoramento dos fornecedores foi levado em conta pelos atores do mercado financeiro, a Frigol disse que sim. A inclusão do CRA no fundo da Kinea, segundo a empresa, respeitou “todos os trâmites padrões”. 

As demais empresas mencionadas não responderam até a publicação desta reportagem. 

Colaboraram Tatiana Merlino e Larissa Linder.

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