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Homens gays e misoginia: chega de ignorarmos esse problema

'Não fala de vagina perto de mim': por muito tempo, relevamos as desqualificações das mulheres e do feminino feitas por parte dos homens gays. Não mais.

Por muito tempo se relevou as desqualificações das mulheres e do feminino feitas por parte dos homens gays. É hora de dar um basta. Ilustração: Intercept Brasil

Bandeira do movimento LGBTQIAP+   que representa simbolicamente a diversidade de orientações sexuais, identidades de gênero e culturas dentro com a silhueta de mulheres.
Por muito tempo se relevou as desqualificações das mulheres e do feminino feitas por parte dos homens gays. É hora de dar um basta. Ilustração: Intercept Brasil

Se eu gostasse de mulher, tinha virado ginecologista.

A lei da gravidade é um crime contra a mulher.

Os caras gays “engraçados”, geralmente brancos que demonstram uma certa ojeriza ao sexo feminino, são um tipo social muito comum na cultura pop contemporânea. O personagem Felix “Bicha Má” (interpretado por Mateus Solano), da novela “Amor à Vida”, é um exemplo fácil em terras brasileiras – são dele as frases que abrem esse texto. Mas esse rapaz de língua afiada que endereça boa parte de sua acidez às mulheres, incluindo amigas e parentes, nunca habitou somente as telas: ele é uma presença comum em nosso cotidiano. 

Ai, não fala em vagina perto de mim, fico todo empelotado. 

Minha nossa, essa cantora era linda, mas envelheceu e embarangou.

Sai daqui, que nem de racha eu gosto.

Não posso precisar quantas vezes ouvi frases desse naipe vindas de colegas homens gays. Durante muito tempo, essas maneiras de desqualificar mulheres – em que se pese o certo desconforto sentido por toda pessoa que é reiteradamente alvo de preconceito –, foi endossada e repercutida por nós mesmas. As ofensas revestidas de “eu estava só brincando” naturalizaram largamente essas formas de desqualificação, mas a boa notícia é que, em um ambiente no qual o feminismo ganhou espaço, o que parecia ser apenas uma gongação é hoje nomeado pela palavra certa: misoginia.

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Esse é um assunto delicado, uma vez que estamos falando de pessoas – majoritariamente homens cisgêneros gays – que foram e ainda são vítimas de uma série de violências, seja dentro de casa, no trabalho, nas ruas. Talvez tenha sido justamente isso o que fez com que nós, mulheres cisgêneras ou transgêneras, tenhamos deixado o desconforto de sermos chacota em segundo plano. Afinal, enfrentar a homofobia em um país machista como o Brasil não é tarefa simples. Mas se esse machismo atinge homens homossexuais, o que dizer de sua presença no cotidiano das mulheres? E o que dizer também da homofobia dirigida às mulheres cis/trans homossexuais e bissexuais, especialmente invisibilizadas e também alvos de “brincadeiras” dos homens gays? 

“Tive um amigo gay muito íntimo, irmão mesmo. Saíamos juntos para as festas e várias vezes dormíamos na mesma cama, na minha casa ou na dele. Várias vezes, como se estivesse brincando, ele dizia que tinha horror a vagina, que tinha nascido em uma cesariana para não ter que passar por uma. Se benzia e dizia ‘Deus me livre’, sorrindo”, conta Adriana Conceição, de 47 anos. Uma operadora de telemarketing recifense que, como diversas outras mulheres, demorou a classificar com a palavra certa as atitudes do rapaz.

Já a desenvolvedora de games Renata Gomes, também de 47 anos, se viu no centro de um achaque virtual depois de ter questionado uma postagem de um crítico de cinema brasileiro gay e radicado nos Estados Unidos. No post, ele falava sobre sentir saudades do Brasil, uma vez que nos EUA se trabalhava muito mais. Confrontado com a possibilidade de sua fala ser redutora e estereotipada, ele passou a tratar Renata como “fia”, “militante”, “frustrada”. Além disso, diversos amigos do crítico entraram nos comentários para reiterar a deslegitimação da fala de Renata.

Pessoas mais jovens também identificam o problema: atenta à questão, a universitária curitibana Nicoly Grevetti, de 24 anos, ouviu várias pessoas que circulam em espaços LGBTQIA+ sobre o assunto e escreveu um texto a respeito. Nele, ela ainda identifica como as culturas pop e queer, supostamente mais seguras e “modernas”, também apresentam elementos misóginos. 

Um exemplo é o uso do termo “fishy”, do inglês fish (peixe), constantemente evocado para definir drag queens que se assemelham muito a mulheres cisgêneras (ou seja, que têm um alto grau de “passabilidade”). A expressão remete ao odor que a vagina destas mulheres supostamente teria. “Mulheres [cisgêneras] crescem acreditando que suas partes íntimas são nojentas e passam a vida toda utilizando produtos para diminuírem seus odores naturais, o que pode acarretar em diversas doenças. Ter a genitália feminina como algo nojento é tão comum para esse grupo, que você encontra inúmeros relatos de mulheres falando sobre isso na internet”, escreveu. O tema foi alvo de discussão na famosa série RuPaul’s Drag Race, gerando trabalhos acadêmicos como esse aqui. A drag cisgênera Victoria Scone, ex-participante do show, também tocou no assunto.

Há alguns meses, vivi um episódio significativo desse machismo e dessa misoginia que foram durante muito tempo atenuados em relação aos homens gays. Estava em um consultório médico muito próximo a um centro de compras na zona sul de Recife. Após o fim da consulta, o dermatologista – homossexual, branco, trinta e tantos anos e anti-Bolsonaro nas últimas eleições – deu uma leve batida em minha mão e disparou: “Pronto, agora você já pode ir passear no shopping”.

Especialmente naquele dia, eu estava apressada para finalizar a apresentação de uma palestra que daria no dia seguinte, online, na Universidade de Coimbra. Obviamente, se eu quisesse olhar vitrines ou passar a tarde lendo revistas de celebridades, não seria um problema (aliás, adoro). O ponto aqui era a óbvia intenção do médico de me encaixar no clichê da mulher fútil e consumista, uma forma machista e anacrônica de desqualificar o gênero feminino. Cereja do bolo: enquanto eu saía, o rapaz gay avisou que eu não esquecesse de levar “o patrão” na próxima consulta. Ele se referia ao meu companheiro.

Se é feminino, é menor

A misoginia presente nas práticas de parte dessa população é tão evidente que ultrapassa as bordas do gênero e vai se dar entre iguais: é comum vê-la operar mesmo entre os próprios homens gays. Uma pesquisa que realizei em parceria com o professor Ricardo Sabóia, da Universidade Federal de Pernambuco, analisou a relação entre corpo e celebridade no aplicativo Grindr. Me causou espanto tanto a ojeriza ao que é visto socialmente como feminino quanto o altíssimo índice de normatividade, padronização e mesmo elitismo. “Não curto afeminados” é uma constante, assim como “não curto gordos”. 

Nesse ambiente de altíssima valorização de bíceps e abdomens sarados, o ser macho – e parecer muito macho – é a moeda mais forte. Assim, homens vistos como “mulherzinhas” são desqualificados. É o que o pesquisador Carlos Alberto de Carvalho chama de “heteronormatividade misógina”, em que o masculino e as masculinidades são colocados como positivos – por outro lado, as feminilidades e o feminino são valorados negativamente. É, portanto, um ambiente de uma masculinidade hegemônica e de masculinidades subalternas. 

A novela global “Terra e Paixão” traz atualmente uma ilustração que remete a esse cenário, com o personagem Kelvin (o ator Diego Martins), gay “afeminado” apaixonado por Ramiro (Amaury Lorenzo), o homem másculo, declaradamente heterossexual, que sente desejo pelo outro, mas ainda não sabe lidar com a situação. O que diminui o poder do primeiro é justamente sua aproximação com aquilo considerado “de mulher”. Mas, observando o Grindr, mesmo o “brucutu” desejável tem seus limites: questões como grau de escolaridade têm peso no aplicativo usado majoritariamente por homens gays e bissexuais em que é comum ler “analfabetos, não”. 

A cultura LGBTQIA+, na qual homens homossexuais brancos ricos e de classe média aparecem reiteradamente discriminando outros pares da mesma comunidade, é uma questão sociológica central para discutirmos desigualdades sociais não só no Brasil, mas no mundo. “A produção cultural queer tem ajudado a reproduzir distinções de classe a partir da hegemonia de representações dos gays de classe média”, escreve Lisa Henderson no artigo “Não sou/ não curto: sentidos circulantes nos discursos de apresentação do aplicativo Grindr”, de Rafael Grohmann. No mesmo texto, Juan Marsiaj sintetiza: “Tal estratégia pode levar à aceitação de um tipo de gay (branco, de classe média), visto como um modelo de cidadão-consumidor e uma maior marginalização de todos os outros ‘devassos’ que não se encaixam nessa forma. Em termos mais brasileiros: corre-se o risco de aceitar o gay rico e marginalizar ainda mais a bicha pobre“.

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As discriminações por parte dessa parcela da comunidade queer foram evidenciadas em um episódio histórico já na década de 1970, na super liberal Nova York. Em junho de 1973, acontecia na cidade a Christopher Street Liberation Day Rally, manifestação realizada em prol dos direitos da população queer – que, naquele momento, como veremos, na verdade se resumia basicamente a mulheres e homens gays brancos de classe média.

Mas, entre o público, estava a ativista Sylvia Rivera, travesti que em 1971 havia criado a Ação Revolucionária de Travestis de Rua, a STAR. Rivera tentava há tempos subir no palco, mas Jean O’Leary, lésbica, branca e feminista radical, agia para impedir sua participação. Uma amostra de como, diversas vezes, mulheres cisgêneras homossexuais/bissexuais também operam as mesmas discriminações dos homens homossexuais/bissexuais.

Quando finalmente conseguiu pegar o microfone, Rivera mirou nas centenas de homens e mulheres gays, de maioria branca, ali presentes. Sua fala é uma síntese das violências vividas por queers afeminadas demais, pobres demais, pretas ou latinas demais.

“Eu tentei falar aqui o dia todo pelos seus irmãos e irmãs gays que estão nas cadeias. Eles me escrevem todas as malditas semanas pedindo por socorro – e vocês não fazem porra nenhuma por eles. Eu perdi meu emprego e meu apartamento pela liberação gay… e vocês me tratam dessa maneira?”, gritou. 

A raiva tinha ainda outro peso e sentido: ao lado de outro nome importante, a travesti Marsha P. Johnson, Rivera entrou para a história como uma das primeiras a enfrentar a repressão policial no bar nova-iorquino Stonewall Inn, em 28 de junho de 1969. O conflito foi o estopim de um movimento civil fundamental pelos direitos humanos – tanto que a data acabou se transformando no então chamado Dia Internacional do Orgulho LGBT.

Ficava a pergunta: como aquela engajada plateia podia repudiar a pessoa que, com apenas 18 anos, se insurgiu contra uma violência que não era direcionada apenas a ela? Como podia recriminar alguém que apertou o gatilho que viria a beneficiar em peso justamente aquela população homossexual branca? 

Rivera e Johnson, que moravam em um abrigo, se diferenciavam profundamente da maioria do público que voltaria para as suas casas confortáveis após a manifestação. Ao contrário de Rivera, filha de uma venezuelana e um porto-riquenho, a maioria não havia passado noites na cadeia ou sofrido estupro policial. A ativista morreu em situação de rua, sozinha, sem o cuidado que deveria ter tido. Marsha P. Johnson, a travesti decorada, maquiada, sorridente, super queer, foi assassinada e seu corpo lançado ao rio.

Pensar historicamente e humanamente nas duas é uma questão central no debate do ódio ao “feminino” e de outras diversas discriminações presentes entre a população LGBTQIA+. A direita há muito abriu uma guerra contra mulheres, e o crescimento dos babacas red pills é só um dos fenômenos dessa realidade. Dela, ainda fazem parte nomes como o do ex-deputado federal Daniel Silveira, que quebrou a placa com o nome de Marielle ao lado de Rodrigo Amorim. 

Mas, como se vê, a misoginia não é uma exclusividade de radicais de direita e conservadores. E se Sylvia e Marsha estiveram na linha de frente para assegurar direitos de milhões de pessoas, sem distinção de credos, raça, gêneros e graus de “feminilidade”, cabe perguntar: quando homens gays cisgêneros, majoritariamente brancos e de classe média, irão se juntar, com ênfase e força, a debates como o direito ao aborto, emprego e salários, questões de vida e morte para a maioria das mulheres negras brasileiras? Quando a maioria deste mesmo grupo vai se posicionar sobre os milhares de estupros que vitimam principalmente meninas e adolescentes? De que coletividades, afinal, estamos falando?Como diria Jorge Ben na música Zumbi: eu quero ver. Estamos aqui.

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