Chacina no Guarujá: Sem investigação, boletins de ocorrência feitos por policiais já registraram ‘legítima defesa’

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Chacina no Guarujá: Sem investigação, boletins de ocorrência feitos por policiais já registraram ‘legítima defesa’

Tarcísio de Freitas age como ‘advogado’ da polícia, diz Condepe. Registros das ocorrências da Operação Escudo já têm as conclusões que respaldam a versão do governo.

Chacina no Guarujá: Sem investigação, boletins de ocorrência feitos por policiais já registraram ‘legítima defesa’

Nos últimos seis dias, ao menos 16 pessoas foram mortas pela Polícia Militar de São Paulo no Guarujá, município da Baixada Santista, em operação iniciada após a morte de um soldado da Rota, força de elite da PM paulista. A PM alega que as mortes são decorrentes de embates entre policiais e criminosos, mas a população e familiares das vítimas afirmam que se tratam de execuções sumárias – e denunciam uso de tortura pelos policiais. Para o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, o Condepe, a ação tem nome: chacina.

O Intercept teve acesso a nove boletins de ocorrência sobre ocorrências. Em oito deles, mesmo sem investigação, a Polícia Civil registrou que os policiais agiram em legítima defesa, contra “injusta agressão”, isentando-os de culpa pelos homicídios. Em todos os BOs, a narrativa é a mesma: forças policiais estavam realizando patrulhamento e sofreram “injusta agressão”, o que os levou a revidar. A única evidência da Polícia Civil no momento da lavratura dos boletins de ocorrência é o depoimento dos policiais. 

A estratégia respalda a postura do governador Tarcísio de Freitas, do Republicanos, que disse que “não houve excessos” e que a PM teve uma “atuação profissional”.

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Todos os depoimentos policiais apontam reação dos suspeitos, com relatos de tiros por parte dos supostos criminosos em cinco dos nove casos. Nenhum policial, no entanto, foi ferido.

Em um dos BOs, três policiais militares deram relatos sutilmente diferentes sobre uma incursão realizada na noite de 28 de julho. Segundo eles, enquanto se aproximam a pé de um local de venda de drogas, diversas pessoas foram vistas e uma delas, em vez de fugir, se aproximou da equipe e disparou em direção aos policiais. Na versão de um deles, a PM foi se aproximando do indivíduo. Na versão de outro, o suspeito se aproximava da PM. Já o terceiro disse que o suspeito se escondeu atrás de uma árvore e tinha uma lanterna em mãos, o que não foi citado por nenhum dos outros dois policiais. Todos os policiais afirmaram terem atirado no suspeito.

A polícia está agindo de forma orquestrada.

Apesar da incongruência das versões e do pedido, pela Polícia Civil, de exame residuográfico e instauração de Inquérito Policial, o boletim de ocorrência já termina com uma conclusão: “vale ressaltar que [o depoimento] mostra claramente que os policiais agiram em legítima defesa, pois repeliram a agressão injusta por meio proporcional e moderado imediatamente”, escreveu a equipe chefiada pelo delegado Wagner Camargo Gouveia.

Dois dias depois, outro boletim de ocorrência relata a morte de Evandro da Silva Belem. Segundo a versão oficial, a vítima foi atingida por três tiros após ter disparado contra três policiais que haviam o encontrado durante uma incursão a pé – guiados pelo som de um radiotransmissor. Um familiar de Evandro nega as acusações registradas no boletim de ocorrência e afirma que ele foi morto enquanto trabalhava pegando entulhos. A família não teve acesso ao laudo necroscópico feito no IML.

A Polícia Civil também requisitou perícia no local dos fatos. Mas, antes disso, ainda no boletim de ocorrência, afirmou que “o cenário do crime indica que o autor, ao perceber que os policiais se aproximavam, decidiu posicionar-se de maneira a surpreendê-los, porém, em virtude do barulho do rádio de transmissão fora localizado, momento que passou a atirar contra os policiais, os quais reagiram para afastar injusta agressão”. 

O documento também registra, com base apenas na versão dos três policiais envolvidos, que “após análise técnico-jurídico, embasada em elementos preliminares, concluo que a conduta dos policiais militares fora acobertada por excludente de ilicitude em face de intervenção policial no legítimo exercício da função pública”.

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Governador bolsonarista Tarcísio de Freitas defendeu a operação dos policiais durante a chacina no Guarujá.

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

‘Legítima defesa não é direito’

Para o presidente do Condepe, Dimitri Sales, os boletins de ocorrência não são um retrato fiel da realidade, especialmente por conterem as mesmas informações. “A polícia está agindo de forma orquestrada. Os boletins de ocorrência mostram que há um relato similar em todos os casos, o que é impossível de acontecer, todos os casos serem iguais, todos os casos serem ‘revide à injusta agressão’”.

O Condepe foi ao Guarujá com deputados estaduais e organizações da sociedade civil, mas não conseguiu falar com familiares das vítimas ou com as comunidades locais. Segundo Sales, as pessoas estão amedrontadas e há dificuldade em ouvir testemunhas até sob proteção. 

Para Sales, a responsabilidade de cessar o terror na Baixada Santista é do governador, Tarcísio de Freitas. “É uma irresponsabilidade, diante de denúncias de execução sumária e de tortura, sem que tenham laudos e sem que tenham documentos comprovatórios de que não houve execução sumária, o governador sair de pronto, como um advogado dos policiais, descendo da sua condição de governador do estado, para poder legitimar a operação”, ele diz.

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Em entrevista coletiva, Tarcísio de Freitas anunciou que a operação policial, chamada de Escudo, deve continuar na região da Baixada Santista. Também chamou a matança de “efeito colateral”, classificou as críticas à ação de “narrativas”, e afirmou que irá investigar os “excessos”. E garantiu que a operação foi feita “com responsabilidade”.

“O Tarcísio não tem base em nenhum laudo. Ele não tem base em nenhuma comprovação técnica. Ele apenas está se valendo da opinião dos policiais. Ocorre que a gente tem denúncias de tortura. A gente tem denúncias de execução sumária. O governador poderia ter o mínimo de cautela, porque, ao legitimar a operação policial, ele autoriza que essa onda de violência continue”.

Da forma como o governo está lidando com a situação, Sales ressalta, há a possibilidade de que as forças policiais não sejam responsabilizadas pelas execuções sumárias e torturas realizadas, que são as denúncias recebidas pelo Condepe. “Legítima defesa não é direito, isso tem que ser atestado no curso do processo. Eu pessoalmente entendo que é um exagero, por parte da autoridade que registra o boletim de ocorrência, ratificar aquela conduta brutal. Com isso, se corre o risco de ter uma chacina no estado de São Paulo sem que seja elucidado os seus responsáveis diretos”.

Em 31 de julho, o Condepe pediu à Procuradoria-Geral de Justiça do Estado de São Paulo que tomasse para si a responsabilidade de tocar “as devidas investigações e consequente responsabilização dos agentes envolvidos na prática dos crimes denunciados”. O pedido não foi aceito pelo procurador-geral, mas serviu de base para a criação de uma força-tarefa envolvendo membros do Ministério Público de São Paulo, que acompanharão as investigações das mortes. “O mais importante agora é que a gente possa acompanhar essas apurações, para que se garanta que sejam feitos laudos cadavéricos fidedignos, para que se garanta que não se destrua provas”, disse Sales.

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