O que as operadoras de planos de saúde, a indústria farmacêutica e as grandes redes hospitalares têm em comum, além de muito dinheiro? O poder de influenciar decisões políticas, principalmente por meio de lobby junto a deputados e senadores. Neste texto, vamos te contar o que está em jogo em três projetos de lei que os empresários da saúde têm tentado tornar melhores para seus negócios nos bastidores. Para isso, fizemos pesquisas e consultamos especialistas, entre elas a coordenadora do Programa de Saúde do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, Ana Carolina Navarrete.
A princípio, a ideia do projeto era obrigar as operadoras de planos de saúde a custear as despesas com os acompanhantes dos pacientes. Mas nesses 17 anos de tramitação, outros 270 projetos de lei foram anexados a ele, adicionando outros temas à proposta original. Juntos, eles são analisados por uma Comissão Especial na Câmara dos Deputados.
O então deputado federal e hoje senador Rogério Marinho, do PL, assumiu a relatoria da proposta em 2016. O primeiro relatório foi apresentado no ano seguinte e propunha, entre outras medidas, a oferta de planos de saúde com cobertura reduzida. A ideia só não avançou devido à reação da sociedade civil.
O debate foi retomado em 2021, desta vez sob a relatoria do então deputado federal, hoje senador, Hiran Gonçalves, do PP. Ele apresentou um relatório preliminar, que foi apelidado de Pacote de Maldades contra usuários de planos de saúde. Entre as propostas, estava a oferta de planos sem cobertura para serviços importantes, como as 12 primeiras horas de atendimento de urgência e emergência em pronto socorro. Atualmente, a Agência Nacional de Saúde Suplementar obriga os planos de cobertura ambulatorial – ou seja, que abrangem apenas exames, consultas, terapias e alguns tratamentos – a cobrir os custos com atendimento de até 12 horas em pronto-socorro, mesmo que o paciente não tenha cobertura hospitalar.
O PL agora está nas mãos de um novo relator, o deputado federal Duarte Júnior, do PSB, que tem feito declarações contrárias aos interesses dos empresários do setor. Ele defende, por exemplo, limitação do reajuste em planos corporativos e familiares, como já ocorre nos planos individuais. Já as empresas pressionam por maior flexibilidade e pela volta da proposta de cobertura reduzida. Além das operadoras de planos de saúde, hospitais, clínicas e profissionais do ramo têm interesse nas discussões desse projeto de lei.
Importante! Acompanhar as movimentações do deputado Duarte Júnior em relação à proposta é o essencial no momento. Se ela for aprovada de acordo com os interesses das empresas, os usuários de convênios serão impactados, pois terão mais serviços negados. O SUS também terá mais demandas, porque boa parte dos atendimentos recusados na saúde privada acabam sendo feitos no sistema público.
Para favorecer a população, o projeto deveria, segundo a especialista Navarrete, reforçar o pagamento de indenização quando o plano negar cobertura de forma indevida; endurecer as normas para descredenciamento e redução de rede assistencial, evitando assim mudanças no contrato e interrupção de tratamentos; ampliar as competências da Agência Nacional de Saúde Suplementar para abarcar a fiscalização de prestadores de serviços de saúde; regular os planos coletivos para evitar problemas como reajustes abusivos e rescisão unilateral das operadoras e proibir planos de cobertura reduzida. E tudo isso depende do relatório que ainda será feito pelo novo relator.
Empresas de gestão da informação, desenvolvedoras de software, healthtechs, planos de saúde, hospitais privados, laboratórios, big pharmas, gestores públicos e profissionais de saúde têm interesse nesse projeto, que está sob a relatoria da deputada federal Jandira Feghali, do PCdoB. Seu objetivo original era tornar obrigatória a oferta do cartão único de identificação dos usuários do SUS. A ele foi anexado o PL 3814, de 2020, que pretende obrigar o sistema público a manter uma plataforma digital com o histórico de saúde de qualquer pessoa atendida em serviços públicos ou privados – uma espécie de prontuário único. Parece bom, mas só até a página 2.
O PL 3814 determina que a plataforma siga a Lei Geral de Proteção de Dados, a LGPD. Também define que as informações só possam ser acessadas em situações de urgência, por profissionais diretamente envolvidos com o atendimento, mediante a concordância expressa dos pacientes. Mas isso não é o bastante.
De acordo com uma carta aberta de várias entidades que atuam na defesa dos direitos digitais e da saúde pública, os agentes privados podem usar os dados para traçar perfis dos usuários e aumentar seus lucros. Na prática, os planos de saúde, por exemplo, podem ampliar a seleção de risco. Isso significa que, a depender do histórico de cada pessoa, ela poderia ser excluída do serviço, caso a cobertura para ela seja considerada cara demais.
O problema fica ainda mais acentuado ao se considerar que, atualmente, diversas operadoras são também donas de hospitais, clínicas e laboratórios. Nesses casos, é preciso incluir previsões especiais que impeçam o vazamento dos dados para o braço administrativo das empresas.
Além disso, é necessário garantir protocolos de segurança para impedir o acesso a mais de uma ficha por vez. A plataforma do SUS também deve ser desenvolvida em software livre e hospedada em servidores públicos, diferente do que acontece atualmente – o Ministério da Saúde tem um contrato com a Amazon para hospedar a Rede Nacional de Dados em Saúde.
O PL 3814/20 foi anexado ao PL 5875/06 em 2021, mesmo ano em que aconteceu a CPI da Covid. Nessa época, o lobby das operadoras de planos de saúde atuou com muita força, por meio do Conselho de Saúde Suplementar, para conseguir a desregulamentação do setor. O então ministro da Economia, Paulo Guedes, chegou a dizer que o sistema público não daria conta de todas as demandas. “O setor privado é a solução”, cravou.
O terceiro projeto que merece atenção busca dar maior transparência aos preços de medicamentos nas farmácias. A proposta que está sob a relatoria do senador do Centrão Ciro Nogueira, do PP, é avaliada como uma iniciativa inovadora em prol do interesse público, do SUS e dos usuários de medicamentos. Porém, pode ser um calo no pé da indústria farmacêutica, que precisaria justificar seus preços e conceder informações que não gostaria de compartilhar.
Atualmente, a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos, a Cmed, é responsável por estabelecer o valor máximo de venda. Esse preço-teto é definido de acordo com diferentes critérios e utiliza nove países referência. Ele é atualizado todo ano, de acordo com uma fórmula matemática, que é pública. Embora tenha sido um avanço, tal modelo de regulação não consegue proteger o mercado interno e o consumidor de grandes oscilações de preços. Na pandemia, os remédios de uso hospitalar dobraram de valor e ainda assim permaneceram dentro do preço-teto.O PL visa ampliar e fortalecer as competências da Cmed. Uma das medidas é trocar os países referência para a definição do preço-teto. Hoje, eles são Estados Unidos, Canadá, Nova Zelândia, Austrália, França, Portugal, Espanha, Grécia e Itália. Mas esses países têm características muito distintas do mercado brasileiro, sobretudo econômicas, geográficas, de capacidade produtiva e de proteção de patentes. Os Estados Unidos, por exemplo, sequer têm um sistema público de saúde.
O PL também propõe que a lei autorize expressamente a Cmed a reajustar os preços para baixo. Isso não está nas regras atuais, portanto, mesmo quando a concorrência e o passar dos anos diminuem o preço real, os valores para o consumidor apenas aumentam.
Outro ponto relevante, como mencionado, é a transparência no setor farmacêutico. É comum que, ao registrar um medicamento novo, a indústria alegue que investiu muito em pesquisas e ensaios clínicos, sendo necessário recuperar esse investimento. O PL obriga as big pharmas a declararem os investimentos feitos para desenvolver o medicamento e quanto de dinheiro público foi utilizado. O PL também garante maior transparência sobre as políticas de desconto nas farmácias, especialmente as vinculadas à concessão de dados pessoais, como o CPF.
A proposta irrita a indústria farmacêutica, que se verá obrigada a justificar seus preços e a conceder informações que ela não gostaria, além de lidar com um mercado mais transparente, quando a opacidade a beneficia.
Esta reportagem foi produzida com o apoio do Instituto Serrapilheira.
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