A prefeitura de São Paulo abriu os cofres para melhorar a imagem da gestão de Ricardo Nunes, do MDB. O político, que tem a pior avaliação de um prefeito nos últimos 14 anos, poderá disputar a eleição do ano que vem com apoio do ex-presidente Jair Bolsonaro, do PL. Nunes já desembolsou quase R$ 3 milhões para a publicação de reportagens positivas feitas pelo Estúdio Folha, divisão do jornal Folha de S.Paulo que se define como um “ateliê de produção de conteúdo ao mercado e às marcas”.
O Intercept obteve, por meio da Lei de Acesso à Informação, um documento que detalha os pagamentos feitos pela Secretaria de Comunicação da Prefeitura de São Paulo ao jornal. A contratação foi intermediada pela agência de publicidade Propeg – que tem um contrato com a prefeitura no valor total de R$ 200 milhões e está sob investigação do Ministério Público do estado. Só em 2023, a agência já repassou R$ 2,3 milhões à Folha. No ano passado, foram R$ 448 mil.
Como contrapartida, só nos últimos dois meses foram publicadas 61 reportagens em uma página criada pelo Estúdio Folha para a veiculação do conteúdo, que também tem sido postado nas redes sociais do jornal – e até impulsionada no Twitter, como relataram usuários da rede social.
Exceto pelo logo do Estúdio Folha na parte superior, as notícias elogiosas sobre a gestão do prefeito Nunes não apresentam qualquer mensagem de “conteúdo publicitário” ou similar. A aparência é de uma matéria jornalística convencional. O jornal alega que “todo produto realizado é identificado com a assinatura Estúdio Folha e o nome do patrocinador, com um tratamento gráfico distinto daquele do jornal”.
Mas, em seu site, diz usar as técnicas jornalísticas para oferecer um serviço “sob medida”: “Com o rigor e a qualidade da marca da Folha da Manhã, o Estúdio Folha utiliza as ferramentas do jornalismo para oferecer conteúdo feito sob medida para marcas, em diferentes plataformas”. Ou seja, o objetivo é induzir a audiência a acreditar que propaganda é jornalismo.
Em 22 de junho de 2023, a seção de publis da prefeitura na Folha publicou um texto com o título “Escolas e creches de São Paulo servem 2,3 milhões de refeições por dia”, que afirma que a merenda distribuída pela prefeitura é “premiada internacionalmente”.
Mas, menos de um mês antes, em 26 de maio, a própria Folha – seus repórteres, não seu estúdio –, havia publicado a seguinte reportagem: “Com R$ 35 bi em caixa, Prefeitura de SP deixa merenda escolar sem feijão”.
O prêmio citado na nota do Estúdio Folha de fato foi recebido pela prefeitura. Em outubro do ano passado, a cidade de São Paulo venceu o C40 Cities Bloomberg Philanthropies 2022 na categoria “Unidos para inovar”, com o projeto “Cardápio Escolar Sustentável”, da Secretaria Municipal de Educação, iniciativa que prevê a compra de produtos provindos da agricultura familiar.
O que a parceria Folha-Prefeitura não contou é que a aquisição dos alimentos ocorre para cumprir a Lei 16.140/2016, assinada por Fernando Haddad, do PT. Ela estabelece que 30% da alimentação escolar deve ser proveniente da agricultura familiar e rendeu o mesmo prêmio à gestão do petista em 2016 – o que também não foi mencionado. Não que seja surpresa, afinal, como o próprio Estúdio Folha admite, “todo o processo é discutido com o patrocinador e aprovado por ele”.
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Uma outra reportagem do branded content da Folha para a gestão Nunes, que trata de responsabilidade fiscal, também pesa a mão no puxa-saquismo: “Compromisso garante capacidade de investimento recorde do município. Esforço permite enfrentamento dos desafios estruturais da cidade”. Outra, sobre o recapeamento de vias, também não poupa elogios: “Asfalto novo de ruas e avenidas em SP supera marca de 8,6 milhões de metros quadrados. Maior programa de recapeamento lançado pela Prefeitura estima recuperar 20 milhões de metros quadrados de ruas e avenidas da capital; investimento é de R$ 1 bilhão”.
Não é a primeira vez que o Estúdio Folha recebe dinheiro público para fazer serviços similares. Na lista de clientes, estão os governos de Minas Gerais e Alagoas e estatais como Petrobras, Correios, Banco do Brasil e BNDES. Questionada pelo Intercept, a Folha de S.Paulo não se manifestou sobre um possível conflito de interesses.
Contrato na mira do Ministério Público
A primeira solicitação para obter detalhes sobre a parceria Folha-prefeitura foi feita pelo Intercept em 28 de junho, por meio da assessoria de imprensa da gestão municipal. A resposta inicial foi uma negativa, com a alegação de que não existiria nenhum acordo formal entre as partes. “A parceria entre a Prefeitura e a Folha de S. Paulo segue planejamento de mídia desenvolvido por agência especializada e regularmente licitada, com base em estudos de mercado”, afirmou a assessoria de imprensa de Nunes.
Depois da resposta evasiva, o Intercept protocolou três solicitações por meio da Lei de Acesso à Informação. Somente após um recurso em 2ª instância foi possível obter o documento que revela os custos substanciais da gestão municipal com as reportagens positivas. Antes disso, tentamos entrar em contato por diversas vezes com o gabinete da Secretaria de Comunicação e o chefe de gabinete da pasta, Affonso Prado Filho, que chegou a ser informado sobre as sucessivas tentativas por sua secretária. Mesmo assim, não houve retorno.
No fim de julho, o contrato da prefeitura com a agência Propeg, por meio do qual a parceria com a Folha foi viabilizada, entrou na mira das autoridades. O Ministério Público de São Paulo abriu um inquérito para investigar irregularidades em uma alteração que levou a um aumento de 25% no valor do contrato inicial, que era de R$ 160 milhões e saltou para R$ 200 milhões. O aditamento foi assinado pelo secretário especial de Comunicação, Marcelo Antonio D’Angelo, em abril deste ano.
O mesmo aconteceu em um contrato de mesmo valor com outra agência, a MWorks, e que também passou de R$ 160 milhões para R$ 200 milhões pelo período de 12 meses. Em reação, o promotor Ricardo Manuel Castro afirmou que instaurou uma investigação porque os esclarecimentos da prefeitura não foram suficientes para comprovar a regularidade das despesas, nem se as contratações atendem ao interesse público. O inquérito apura eventual desvio de finalidade, ato de improbidade administrativa ou danos causados aos cofres públicos.
Em nota, a prefeitura nega que tenha cometido ilegalidades nos aditamentos dos contratos de publicidade: “O referido aditivo foi realizado, observada a legislação em vigor, em razão da duplicação das demandas de comunicação publicitária dos serviços públicos prestados à população no pós-pandemia do Covid e do aumento das tabelas de preços dos veículos de comunicação. O investimento em publicidade tem acompanhado o crescimento do orçamento do município e em valores percentuais está abaixo de outras capitais brasileiras”.
O incremento de R$ 40 milhões nos dois contratos também ajudará Ricardo Nunes a ampliar o limite de gastos do governo com propaganda em 2024, ano em que pretende disputar a reeleição. Isso porque, em 2022, o então presidente Bolsonaro, seu provável cabo eleitoral, sancionou a Lei 14.356/2022, alterando as regras sobre limite de gastos de governos com propaganda em anos eleitorais. O limite passou a ser o equivalente à média mensal dos gastos nos três anos anteriores, multiplicada por seis.
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