Bolsonaro 'jamais' poderia ter ficado com joias, diz autor de portaria usada na defesa de ex-presidente

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Bolsonaro ‘jamais’ poderia ter ficado com joias, diz autor de portaria usada na defesa de ex-presidente

Ex-ministro Ronaldo Fonseca quebra o silêncio e contraria Jair Bolsonaro e advogados: "Estão equivocados".

Bolsonaro 'jamais' poderia ter ficado com joias, diz autor de portaria usada na defesa de ex-presidente

“Personalíssimo”. Essa palavra tem sido o mantra do ex-presidente Jair Bolsonaro e de seus filhos, aliados e advogados desde 3 de março de 2023, quando o escândalo do suposto desvio de joias presidenciais veio à tona. Naquele dia, começaram a surgir as primeiras alegações de que as joias recebidas como presente oficial, como aquele kit oferecido pela Arábia Saudita e avaliado em R$ 16,5 milhões, seriam enquadrados como itens “personalíssimos” e, portanto, independentemente do valor, poderiam ser incorporados ao acervo pessoal de Bolsonaro.

O argumento é baseado em uma portaria publicada no apagar das luzes do governo Michel Temer, em novembro de 2018, já na transição para a gestão Bolsonaro. O texto tem sido evocado por bolsonaristas para negar que o ex-presidente tenha cometido o crime de peculato e lavagem de dinheiro na apropriação das joias. Desde a reportagem do Estadão sobre o caso, a defesa do ex-presidente insiste que a portaria garante a posse pessoal das joias, ou seja, elas não pertenceriam ao acervo da Presidência da República.

O senador Flávio Bolsonaro disse, em 6 de março: “Na minha opinião, [a caixa de joias] é personalíssima, independentemente do valor”. No dia 9, Frederick Wassef, hoje investigado pela Polícia Federal e alvo de operação pelo seu envolvimento com a venda das joias, também usou o argumento: “Bolsonaro declarou oficialmente os bens de caráter personalíssimo”.

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Na semana passada, em sua entrevista mais recente sobre o caso, Bolsonaro citou mais de uma vez a portaria do governo Temer. O que o ex-presidente, seu advogado e aliados não esperavam é que a pessoa responsável pela assinatura da portaria, o então ministro da Secretaria-Geral da Presidência no governo Temer,  pastor Ronaldo Fonseca, saísse a público para desmontar essa argumentação.

Em silêncio desde que o escândalo veio à tona, o pastor Ronaldo Fonseca, do Republicanos do Distrito Federal, falou pela primeira vez sobre o caso na terça-feira, por telefone, ao Intercept. “Você é a primeira pessoa que me procura para tratar disso”, disse ele, em ligação telefônica. Pouco antes, logo que atendeu o telefone, brincou: “Ih, rapaz, você sabe que a gente não gosta de jornalista, não é? Jornalista gosta de fofoca”.

Quando disse “a gente”, Fonseca se refere à “direita conservadora”, linha ideológica com a qual ele diz se identificar. Apesar de ter tirado fotos com Jair e Michelle Bolsonaro na campanha eleitoral de 2022, disse discordar da tese utilizada pelo ex-presidente e pela sua equipe de defesa. Também nega ter relação com os envolvidos no caso. “Nunca entrei no governo Bolsonaro. Nem tenho relação com os filhos ou com a Michelle”.

Sobre a interpretação de Bolsonaro e seus aliados sobre a portaria que assinou, Fonseca é taxativo. “Estão equivocados. A portaria não dá guarida para joias de grandes valores. O próprio contexto deve ser considerado. São bens de natureza personalíssima, mas não há nenhum bem de alto valor”.

Desde 1991, quando a primeira lei que rege os acervos presidenciais foi promulgada pelo governo federal, na gestão de Fernando Collor, uma série de decretos foram publicados para aprimorar as regras para o tratamento de presentes recebidos por autoridades, justamente para prevenir casos de corrupção.

Não tem sido um exercício fácil. O texto inicial da legislação sobre os acervos permitia que presentes não entregues em eventos oficiais fossem incorporados ao acervo privado dos presidentes. Contudo, em 2016, o Tribunal de Contas da União rejeitou essa interpretação, alegando que isso violaria princípios constitucionais, como a moralidade.

‘Quando foi colocado joias, semijoias e bijuterias não se pensava em joias de grandes valores’.

O TCU determinou, então, que todos os presentes, independentemente do contexto, devem ser catalogados pelo Gabinete Adjunto de Documentação Histórica da Presidência, que deve determinar se o item pode ser encaminhado ao acervo privado do presidente ou se deve permanecer como patrimônio da União. Na primeira hipótese, caso a autoridade deseje vender o item, a Comissão de Memória dos Presidentes da República tem preferência de compra – o que não ocorreu no caso de Bolsonaro.

A Corte de Contas decidiu ainda que, mesmo quando categorizados como personalíssimos, itens de alto valor devem ser considerados bens do estado. A portaria assinada por Fonseca foi publicada dois anos depois da decisão do TCU. Mesmo assim, o responsável pela assinatura admite: “A portaria não está acima juridicamente da decisão do TCU”. 

Leia a seguir a entrevista.

Intercept – O senhor tem ciência que uma portaria assinada enquanto o senhor era ministro do Temer tem sido usada pelo ex-presidente e por seus aliados para se defender das acusações do escândalo das joias?

Ronaldo Fonseca – Você é a primeira pessoa que me procura para tratar disso. A primeira pessoa que estou conversando é com você. Tenho ciência da portaria que assinei. Foi assinada em novembro de 2018, embora estivesse sendo preparada desde o início do governo Temer. Passou por várias instâncias. O final dela foi na Secretaria-Geral, mas passou por várias instâncias até chegar às minhas mãos. Uma portaria dessa não se faz da noite para o dia. Há um trâmite. Tem um setor jurídico, a Casa Civil, passa por várias mãos.

Qual era a intenção do senhor ao assinar a portaria?

Não sei se você está lembrado que na saída do presidente Lula e da Dilma, houve algumas interpretações distintas sobre o tema. Tiveram que devolver, ressarcir os cofres públicos, coisa pequena. Havia um vácuo, apesar de várias portarias. Mas nada direto para trazer segurança para o patrimônio cultural e artístico da Presidência. Vem daí a necessidade da portaria de novembro de 2018.

Entendo que o processo de elaboração da portaria foi longo. Mas, como a publicação ocorreu apenas em novembro de 2018, já na transição, isso não foi conversado com a equipe do então presidente eleito Bolsonaro?

Não. Não houve nada. Foi um procedimento legal. Nos anexos, são inclusos joias, semijoias e bijuterias, agora a portaria não definiu valores. Mas já havia por um decreto uma comissão curadora, da Lei 11.904, de 2009, que deveria classificar. Quando foi colocado joias, semijoias e bijuterias não se pensava em joias de grandes valores. Se você vir o contexto do texto, fala só de coisas como chapéus, sapatos, bonés, gravatas, perfumes, de bens perecíveis.

O senhor considera, então, que as joias de alto valor que o Bolsonaro recebeu não estão enquadradas na portaria que eles estão evocando?
Jamais! A portaria não diz isso. Quando a portaria diz joias, semijoias e bijuterias, é preciso olhar o contexto. Fala de roupa de cama, artigos de escritório. Eu acho que a interpretação deve ser dada pelo contexto.


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O senhor então discorda da interpretação do Bolsonaro e de sua equipe de defesa?

Creio que estão equivocados. A portaria não dá guarida para joias de grandes valores. No contexto aqui, não há nenhum bem de alto valor. São bens de natureza personalíssima, mas não há nenhum bem de alto valor. Além disso, teria que passar por uma comissão curadora. A portaria é clara: deve promover e estimular a governança, fala muito sobre controle interno, com planos e avaliações complementares, protocolos, metodologias e boas práticas. 

‘Essa portaria que estão citando ele mesmo revogou, em 17 de novembro de 2021’.

A portaria veio para trazer segurança jurídica e proteger o patrimônio público. Por esse contexto, é um equívoco usar a portaria de 2018 para poder fazer a defesa de joias de grande valor ou presentes de grande valor. Basta olhar nos anexos e ver onde estão incluídas as joias e semijoias. Não está ali carro, avião. Ali fala de chapéu, pijama, calça, maquiagem. 

Por acaso, Bolsonaro ou alguém próximo a ele procurou o senhor para tratar disso? Desde que explodiu essa questão, procuraram o senhor?

Não. Nunca tive relação próxima com Bolsonaro ou a esposa dele. Tive dois mandatos com ele. Nós não tínhamos intimidade. Nós nos cumprimentávamos. Quando foi para a Presidência, menos ainda. Um pouco antes da campanha de 2022, o procurei em eventos públicos. As fotos que tenho são em evento público. Aquela coisa de candidato que quer voto. Nunca tive relacionamento próximo. É público. Nunca entrei no governo Bolsonaro. Nem relação com os filhos ou com a Michelle. Só no dia da posse e no lançamento da candidatura.

Na sua interpretação, o senhor acha que Bolsonaro tinha intenções criminosas nesse caso das joias?

Eu não posso fazer juízo de valor se houve crime. Isso fica a critério da Justiça. Eu sei que essa portaria que estão citando ele mesmo revogou, em 17 de novembro de 2021. Além disso, ela não está acima da interpretação do TCU. Usar uma portaria que já foi revogada não tem nada a ver.

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