Diferentemente de seu primeiro dia em São Paulo, na manhã de terça-feira, dia 29, Evgeny Morozov ouviu mais do que falou. Na segunda, o pesquisador bielorusso havia dado entrevistas, participado de conversas e ministrado uma palestra para um auditório lotado, sedento para ouvi-lo falar de como desafiar big techs e conquistar a soberania tecnológica. No dia seguinte, ele se encontrou com membros do MST, MTST, Casa dos Meninos e outras iniciativas para entender como os movimentos sociais brasileiros estão disputando, na prática, os meios para ocupar e produzir suas próprias tecnologias.
Aos 39 anos, Morozov se tornou uma referência no pensamento crítico sobre tecnologia. Seus dois livros lançados no Brasil, “Big Tech: a ascensão dos dados e morte da política” e “A cidade inteligente: tecnologias urbanas e democracia“, descrevem como o chamado solucionismo tecnológico permeia praticamente toda a nossa relação com as tecnologias.
Esse ideário, que vem do coração do Vale do Silício, é aquele que apregoa tecnologias de mercado como soluções para todos os problemas possíveis. De reconhecimento facial para segurança à inteligência artificial que vai achar a cura do câncer, essas tecnologias são vendidas – e compradas – como revoluções. Mas são também mecanismos controladores, colonizadores, extrativistas, que têm um verdadeiro objetivo não explícito: sugar o que podem para atender aos interesses do mercado, onde oportunidades de negócio são mais importantes do que resolver os problemas reais.
Mas aqui no Brasil, naquela terça, Morozov ouviu Gabriel Simeoni, do Núcleo de Tecnologia do MTST, o Movimento dos Trabalhadores sem Teto, contar como voluntários dão aulas de programação e automação a estudantes com placas compradas a R$ 3, que funcionam como computadores completos. “A primeira aula é ensinar a queimar a placa para os alunos perderem o medo”, contou Simeoni. Ele explicou que o núcleo usa a pedagogia de Paulo Freire para promover seus cursos e formações – a próxima é para formar educadores populares em tecnologia, com foco em soberania.
Morozov também ouviu Edson Lima, militante do MTST, narrar como ele só estava ali por conta do Contrate quem Luta, aplicação no WhatsApp que conecta trabalhadores do movimento a quem precisa de um serviço – projeto no qual ele, mestre de obras, hoje é um dos coordenadores. Vitória Cruz, desenvolvedora também do núcleo, contou que os responsáveis criam aplicativos para uma série de iniciativas progressistas e estão tentando inventar uma metodologia própria para isso. “O mercado está cheio de iniciativas para extrair ao máximo dos trabalhadores, scrum, metodologia ágil”, ela contou. Eles querem algo diferente.
Na conversa, membros do MST contaram como, em diante do governo Bolsonaro, foram para o “campo de batalha digital”, com análise de dados e machine learning, para analisar redes sociais e tentar prever situações de violência. Morozov ouviu também Daiane Araújo, integrante da Casa dos Meninos, centro de educação de jovens da zona sul de São Paulo, narrar como promoveu, entre várias outras iniciativas, uma mostra de filmes sobre o golpe de 1964 para a comunidade dentro de uma rede que funciona como uma intranet comunitária, da qual ela é uma das responsáveis.
Araújo disse, ali, que pensa que o modelo de desenvolvimento tecnológico deve ser solidário e colaborativo em vez de competitivo – como funciona o mercado. E trouxe a discussão para o chão. “A discussão de apropriação tecnológica é difícil”, ela narrou. “Passamos momentos muito difíceis depois do golpe de Dilma, com Temer, Bolsonaro. Como você vai falar de soberania e as pessoas com fome?”.
MST também produz inovação
As experiências e o encontro deram forma àquilo que, um dia antes, Evgeny Morozov havia levado ao auditório lotado da Fecap, faculdade em São Paulo. Na palestra, organizada pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, o tema era soberania e enfrentamento às big techs – mas Morozov deixou claro de que se trata principalmente de política. “Por que os movimentos como MST e MTST não são celebrados como startups?”, ele questionou.
Perguntei a ele por que trazer o movimento, que enfrenta uma ridícula CPI na Câmara dos Deputados, como exemplo. “Eu escolhi o MST para nos tornar mais conscientes do fato de que nós já temos instituições que estão inovando”, ele explicou.
‘É preciso falar dos futuros que as tecnologias estão bloqueando. Não conseguimos falar porque eles já capturaram todos os espaços’.
Para Morozov, nós temos uma visão limitada de que a inovação só acontece em startups, ou se há financiamento militar ou acionistas de risco por trás. “As pessoas inovam, instituições inovam, acadêmicos inovam sem ter que depender de startups do Vale do Silício. Eu acho que normalmente não enxergamos a quantidade de inovação que realmente acontece ao nosso redor todos os dias”, ele me disse.
O pesquisador não poupa críticas à cultura de investimentos de risco do Vale do Silício, baseada “em problemas falsos resolvidos com soluções falsas”. “A inovação não é apenas competição capitalista. Ela pode ser guiada pela solidariedade, por problemas reais que as pessoas vivenciam”. E, nesse contexto, os movimentos sociais podem propor um contraprojeto para o modelo padrão neoliberal.
O cenário é difícil. No Brasil, o lobby pesado das big techs, totalmente embrenhadas em áreas estratégicas, a derrota do PL das Fake News – e as limitações na regulação da área –, o jornalismo em crise e cada vez mais dependente e, sobretudo, um cenário em que a imaginação parece totalmente capturada pelo ideário do que Morozov chama de solucionismo tecnológico parecem quase sufocantes. Existe saída?
Morozov disse que é preciso repolitizar a inovação. Atualizar o imaginário. Evitar eufemismos e expressões ambíguas: ter uma abordagem mais agressiva na crítica tecnológica. As big techs e sua ideologia estão dominando aspectos estruturais da economia, infraestrutura, empregos, comunicações – estamos abrindo mão de tudo isso não apenas coletivamente, como país, mas também individualmente, na nossa vida cotidiana e nas experiências subjetivas.
O modelo de negócios de extrair dados para transformar em lucro captura não apenas nossas informações, mas modelos possíveis de pensamento. “É preciso falar dos futuros que as tecnologias estão bloqueando. Não conseguimos falar porque eles já capturaram todos os espaços”, disse Morozov.
Quando alguém da plateia perguntou que marca de celular ele usava – tentando apontar uma suposta contradição entre as críticas dele e o fato de nem ele mesmo conseguir escapar das big techs –, ele respondeu que era chinês, mas isso não importa. Porque apontar os dedos para a solução individual é exatamente o que mercado e a realidade neoliberal querem. Não são escolhas individuais que vão solucionar os problemas que ele aponta. É a política.
A tecnologia desmistificada
O jornalismo, assim como a academia e os intelectuais, têm um enorme papel em desmistificar a tecnologia, setor da economia que, para o pesquisador, vem sendo pesadamente mistificado nos últimos 30 anos. “Nós precisamos entender que existe uma maquinaria pesada por trás dessa mistificação: existem think tanks, agências de relações públicas, conferências como o TED”.
Uma maneira de fazer isso, para ele, é ter uma abordagem mais histórica – exatamente o que ele fez com seu último projeto, o podcast The Santiago Boys. Os nove episódios narram a experiência do Cybersyn, uma espécie de internet pré-internet criada sob o governo socialista de Salvador Allende no Chile nos anos 1970. A ideia do Cybersyn, que funcionava em uma sala retrofuturista digna de filme, era analisar dados da população chilena para subsidiar políticas públicas, uma proposta arrojada e de difícil execução na época. Sob ataque constante dos inimigos políticos turbinados pelos EUA, e diante de uma série de dificuldades tecnológicas, o Cybersyn fracassou. Allende sofreu o golpe.
Ao olhar para o passado, Morozov ajuda a compreender o presente: o enfrentamento do governo socialista contra a ITT – o “Google da época”, como ele define –, o fim do projeto após o golpe e a morte da utopia, que depois foi soterrada pelo neoliberalismo e as megacorporações – inseridos na disputa geopolítica da guerra fria –, ajuda a enxergar como chegamos até aqui.
Para Morozov, a maneira como o debate acontecia nas décadas de 1960 e 1970 na América Latina é muito similar à de hoje – como, por exemplo, a influência estrangeira de empresas gigantes de tecnologia e interferências nos nossos modelos de democracia e desenvolvimento.
‘No Brasil, os movimentos têm garantido a inovação que pulsa na sociedade’.
Foi por isso que, para além do pessimismo pelo qual ele costuma ser simplificado, as conversas de Morozov no Brasil, desta vez, giraram em torno da soberania tecnológica nacional. Para o pesquisador, não basta regular big techs – é preciso investir em infraestrutura. As empresas do Vale do Silício estão impregnadas na educação, na saúde, no governo e em outras áreas estratégicas. Para entender, é só ler sobre o tour dos deputados brasileiros na Califórnia que reportamos no ano passado: a bajulação e o entusiasmo acrítico com as big tech não deixam muito espaço para a defesa dos interesses do Brasil ou dos brasileiros na adoção dessas tecnologias.
Morozov e o governo Lula
Ao longo desta semana, Morozov também foi a Brasília e se encontrou com vários políticos. Esteve com os deputados Orlando Silva, do PCdoB, e com Guilherme Boulos, do Psol, que ele definiu como dois dos mais “legais” do parlamento brasileiro. Também se reuniu com vários membros do governo federal, incluindo a ministra da Gestão e Inovação em Serviços Públicos, Esther Dweck, o ministro do Supremo Luís Roberto Barroso, e membros da Anatel, a Agência Nacional de Telecomunicações.
Morozov defende que, frente ao poder transnacional das big techs, é o estado que deve garantir infraestrutura para o desenvolvimento tecnológico – semicondutores, redes, inteligência artificial, que têm alto custo. Mas o pesquisador é pragmático em relação ao papel do governo brasileiro sob a gestão de Lula. Para ele, a soberania tecnológica só é factível se for executada dentro de um contexto, um projeto maior de desenvolvimento – algo que pode ser difícil em um governo de centro esquerda que precisa fazer concessões para garantir sua própria sobrevivência política.
Perguntei à Daiane Araújo, da Casa dos Meninos, sua impressão sobre o encontro e as falas do pesquisador. Ela afirma concordar com Morozov sobre o papel do estado na garantia da soberania – mas só isso não é suficiente. “Precisamos criar ou fortalecer atores políticos para construção de um projeto político para construção de uma soberania digital e popular”. Não é fácil. Ela conta que, até mesmo em ambientes com organizações da sociedade civil que trabalham com direitos digitais, o tema da soberania tecnológica não é levantado.
Em uma de suas palestras, Morozov exemplificou: não se trata de repetir o modelo do Google, tampouco simplesmente importar um modelo estatal controlador. “Dizem que defendemos o stalinismo digital, substituindo o Google por gulags”, ele disse, provocando risos. “Não é isso. No Brasil, os movimentos têm garantido a inovação que pulsa na sociedade. A base ideológica que preza pelos princípios da soberania tecnológica”.
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