Em 20 de julho, o Conselho Nacional de Saúde aprovou uma série de orientações para a implementação de possíveis políticas públicas, como a legalização da maconha, do aborto e a inclusão da cultura de matriz africana como ação complementar de promoção da saúde. A Resolução 715 pode nem ser incorporada, mas já é o maior ponto de tensão entre evangélicos ultraconservadores e o governo Lula – e tem o potencial de virar a protagonista inclemente de uma nova onda de radicalização no Brasil, permeando as eleições de 2024 e 2026.
A Gazeta do Povo publicou em 5 de agosto o artigo “O Estado laico da esquerda: amigos ao paraíso, inimigos ao ‘laicismo’”, que aponta como uma violação do estado laico esse reconhecimento da cultura de matriz africana como equipamento promotor de saúde. Muitas igrejas já exercem o papel de espaços terapêuticos e cedem seus templos para ações como campanhas de vacinação. A resolução, portanto, inclui os terreiros de candomblé e umbanda em um direito e um papel que as igrejas evangélicas e católicas já têm. Contudo, essa inclusão foi considerada um privilégio indevido.
Quase três semanas depois, a Frente Parlamentar Evangélica deu uma coletiva de imprensa para se posicionar contra a Resolução 715, em especial contra a redução da idade de início de hormonização para 14 anos e a legalização do aborto e da maconha. Com o senador Magno Malta, do PL, como seu principal porta-voz, a bancada demonstrou sua indignação com o que considera “um enfrentamento para a desconstrução da família e dos valores”.
Se olharmos para as últimas duas décadas no Brasil, temos um importante referencial histórico que pode ensinar as forças democráticas a conter de forma mais eficiente uma nova e mais nociva radicalização da extrema direita religiosa. Entre 2009 e 2013, ocorreu principal aglutinação das forças religiosas, destacadamente evangélica e católica, contra o governo do PT – e, a reboque, contra suas propostas de caráter social e de inclusão. E o que motivou esse embate foi um cenário muito semelhante ao que temos agora.
Primeiro, tivemos a inclusão da pauta do aborto no Plano Nacional de Direitos Humanos de Dilma Rousseff, entre 2009 e 2010. Depois, a apresentação do PL 122, que reconhecia a homofobia como crime, em 2011. Por fim, a forte resistência dos movimentos sociais e organizações de defesa dos direitos humanos contra a eleição do pastor Marco Feliciano para a presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, em 2013.
Essa rota de colisão pode se repetir agora, com a rearticulação da extrema direita religiosa no campo político. E, também, com o ambiente propício para a capilaridade popular, a partir do fomento de uma hostilidade ao – inexistente, é preciso destacar – protagonismo das religiões de matriz africana.
O jurista Rodrigo Pedroso, membro do Centro de Estudos de Direito Natural, afirmou que a parceria entre o SUS e terreiros seria “muito perigosa”. O Instituto Plinio Corrêa de Oliveira, associação de religiosos ultracatólicos, diz que a “Resolução 715 discrimina a Igreja Católica”.
Por um lado, essa pode ser uma ação descoordenada, como uma espécie de afinidade eletiva. Por outro, é razoável ler esse contexto como um conjunto de ações interligadas da extrema direita, atuando harmonicamente.
Por cima, no campo político, principalmente a partir do Legislativo, com a Bancada Evangélica à frente, o embate é com um governo que tenta “destruir” a família e os valores cristãos meramente ao considerar a legalização do aborto e da maconha. Na base e na sociedade civil conservadora cristã, o enfrentamento é para impedir que as religiões de matriz africana sejam alçadas à religião de “prioridade” do governo, em detrimento do cristianismo, que é majoritário no país.
Não é por acaso que, no seu posicionamento contra a Resolução 715, a bancada tenha focado no aborto, na maconha e na hormonização. A crítica aberta de parlamentares contra a inclusão dos terreiros como parceiros complementares do SUS seria facilmente lida como intolerância religiosa. O “preço” da intolerância e do racismo religioso será pago por aqueles que foram radicalizados na sociedade civil.
Descriminalização do racismo religioso
A extrema direita religiosa não está restringindo seus ataques às religiões de matriz africana ao discurso. Ela também está agindo: em 29 de agosto, entrou na pauta da Câmara o regime de urgência de votação de um projeto que pretende retirar a intolerância contra esses cultos da Lei do Crime Racial – por enquanto, o projeto segue tramitando sem urgência.
A intenção da proposta, de autoria dos deputados Márcio Marinho, do Republicanos baiano, e Silvia Cristina, do PL de Rondônia, é impedir que declarações preconceituosas e racistas contra religiões de matriz africana sejam devidamente criminalizadas. Eles querem manter a “liberdade de expressão” de pastores e religiosos cristãos que manifestam sua crença de que religiões de terreiro são ligadas ao demônio, sem serem enquadradas por desrespeitarem a dignidade das pessoas dessas religiões.
A movimentação na Câmara ocorreu apenas oito dias após começar a circular nas redes um vídeo em que o pastor Jackson – conhecido como Jack, da igreja Vintage, em Porto Alegre – ataca fortemente outras religiões, xingando-as de demoníacas. Ele diz: “Religiões afros são satânicas. Budismo: demoníaco. Islamismo: demoníaco. Entenda você que está aqui: os demônios sempre farão promessas para você. Allah é um demônio. Oxum, Ogum é um demônio”.
As falas tiveram grande repercussão e geraram muitas críticas. Mas não deu para ignorar o enorme volume de manifestações de concordância, vindas de outros evangélicos conservadores. Essa onda de apoio diz muito sobre o que virá pela frente em termos de embate e radicalismo. Nenhum dos quatro evangelhos da Bíblia faz qualquer associação entre a palavra “demônio” e outras religiões, mas é fácil ver a naturalização da demonização de qualquer outra religiosidade que não a cristã, tendência que recai com mais força e violência sobre as religiões de matriz africana.
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O portal de notícias evangélico Gospel+, por exemplo, noticiou não a intolerância do pastor, mas a reação do público contra ele, com as seguintes palavras: “Pastor é acusado de intolerância após pregar que outras religiões adoram ‘demônios’”. Já o portal sensacionalista Fuxico Gospel ironizou em sua chamada: “Pastor Jack da igreja Vintage e a intolerância ao demônio”.
O teólogo e pastor Guilherme de Carvalho também escreveu um artigo no portal do Observatório Evangélico, afirmando que “criticar o sagrado do outro é um direito fundamental”. Em um trecho, ele diz que é plenamente possível dissociar as pessoas do seu sagrado e o universo simbólico e cultural em que ele está envolvido. Para Carvalho, embora a dignidade das pessoas seja inviolável, “seu mundo simbólico não é infalível, podendo ser questionado, rejeitado e até mesmo odiado, desde que tal desprezo se dirija aos produtos simbólicos, e não às pessoas”.
É como se o sagrado, a fé e a própria pessoa não estivessem imbricadas em um lugar e um tempo, e todo seu contexto fosse indiferente. Num país com um história profundamente racista como o Brasil, com a cultura e a presença das pessoas negras vilipendiadas historicamente, com ataques diários, cada vez mais violentos, contra terreiros de candomblé e umbanda, o que significa reafirmar e publicizar enfaticamente que essas religiões são mentiras, geradoras de derrotas e demoníacas?
O mais importante da escalada religiosa ultraconservadora de que falo aqui, porém, é o que ela aponta para os anos vindouros do Brasil. A despeito do sensível aumento da aprovação do presidente Lula entre evangélicos – de 40% em fevereiro para 50% em agosto, segundo pesquisa da Quaest divulgada em 16 de agosto –, a complexidade do campo e as muitas tensões do ambiente herdado dos anos do governo Bolsonaro requerem cautela e atenção para que haja aprendizados.
Existe, por um lado, uma falta de manejo do governo e do campo progressista e democrático para lidar com o papel da religião, em especial dos evangélicos ultraconservadores no debate público. Por outro, há um ambiente permanente de radicalização que a extrema direita mantém cultivando, a despeito do enfraquecimento político de Jair Bolsonaro.
A resolução 715, independentemente de ser homologada ou não (e dificilmente o será integralmente), antecedeu um raio-x necessário sobre a movimentação no tabuleiro do jogo da extrema direita religiosa e não religiosa.
É importante ressaltar: Em 17 de agosto, a líder quilombola Bernadete Pacífico, de 72 anos, conhecida como Mãe Bernadete, foi assassinada a tiros em seu terreiro, no território quilombola em Simões Filho, na Bahia. Ela era uma das lideranças do Quilombo Pitanga dos Palmares e yalorixá. Isso não é trivial, independentemente de o assassinato ter ou não tido motivação racial ou religiosa.
Parece que agora, para as forças democráticas de pé no país, não bastará mais olhar para aborto, maconha e pautas da comunidade trans apenas como as principais pautas da chamada agenda moral que mobiliza a extrema direita cristã. O caráter assumido de “guerra cultural” nos obriga a olhar também para os rumos da hostilidade do racismo religioso contra as religiões de matriz africana. Eles são o símbolo das novas faces que a radicalização há de tomar para se articular e diversificar no país, atravessando as eleições de 2024 e 2026.
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