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Você pagou tratamentos de até R$ 760 mil para desembargadores que têm plano de saúde em MT

Desembargadores do Tribunal de Justiça de Mato Grosso recebem reembolsos exorbitantes dos cofres públicos mesmo com acesso a planos de saúde e ao SUS.

Ilustração de um martelo de juíz e desembargador cobertos por bandaids.

Entre março e agosto deste ano, pelo menos cinco crianças morreram em hospitais de Mato Grosso por não conseguirem transferência para Unidades de Tratamento Intensivo. A primeira morte ocorreu em 8 de março, em Sinop. Pouco mais de um mês antes, o Tribunal de Justiça de Mato Grosso concluía um pagamento de rotina: ressarcir gastos de saúde de alto padrão de juízes e desembargadores. Naquele mês, foi concluído o pagamento de R$65.952,20 para o desembargador Carlos Alberto da Rocha, ex-presidente do TJMT. O valor manteria duas crianças na UTI pediátrica por mais de um mês e meio. 

Os gastos saltam aos olhos: procedimentos odontológicos, cirurgias oftalmológicas, terapia a laser e consultas com os melhores médicos do país são custeados com dinheiro dos cofres públicos. Documentos inéditos obtidos pelo Intercept mostram que alguns desses tratamentos e procedimentos alcançam cifras quase milionárias, por meio do mecanismo de ressarcimento de despesas médico-hospitalares. O benefício vale para juízes, desembargadores e dependentes de membros do Judiciário, como filhos e cônjuges.

O custeio de despesas médicas é comum em tribunais de justiça de todo país. Em Mato Grosso, o benefício foi regulamentado pela Resolução 003/2009 do TJMT. O ressarcimento foi considerado “imoral” pelo ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, e pelo ex-procurador-geral de Justiça Rodrigo Janot. 

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Apenas entre 2020, ano em que o país foi assolado pela pandemia de covid-19, e 2023, quando a Organização Mundial de Saúde declarou o fim da emergência sanitária, sete desembargadores do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, entre magistrados da ativa e aposentados, receberam uma soma de R$ 627,3 mil, ao todo, em ressarcimentos por despesas médicas.

Além disso, os magistrados do TJMT recebem um valor mensal de auxílio-saúde correspondente a 10% dos salários, de acordo com a portaria da Presidência nº 73/2022. Com o salário bruto dos desembargadores a R$ 37.589,96, o auxílio para custear a mensalidade de planos de saúde rende pelo menos R$ 3.758,90 todo mês à cúpula da corte mato-grossense. O percentual também é pago aos juízes de primeira instância em atividade, cujos salários brutos variam entre R$ 37.317,42 e R$ 47.852,02, e os auxílios-saúde vão de R$ 3.731,74 a R$ 4.785,20.

TJMT devolveu R$ 759 mil para desembargador

Um desses ressarcimentos foi do desembargador aposentado José Ferreira Leite, que conseguiu receber R$ 759.507,89 pelo tratamento da sua esposa, Martinha Olivina dos Reis Ferreira, que faleceu após um transplante de fígado no Hospital Alemão Oswaldo da Cruz, em São Paulo. 

Leite foi condenado com aposentadoria compulsória em 2010, no caso que ficou conhecido como “Escândalo da Maçonaria”. Ele foi acusado de participação no desvio de R$ 1,4 milhão dos cofres do Tribunal de Justiça para a loja maçônica Grande Oriente do Estado de Mato Grosso. O desembargador aguarda julgamento pendente no Supremo Tribunal Federal, em que tenta anular a condenação. 

Após a morte da esposa, em março de 2018, Leite tentou ressarcimento das despesas na Unimed, mas recebeu resposta negativa do plano. Em documento obtido pelo Intercept, a provedora do plano de saúde afirma que, se as empresas do ramo fossem “compelidas a realizar todo tipo de tratamento”, teriam “gastos exorbitantes”. 

“Não há que se falar em prestação de serviço sem que haja um norte, um limite, o qual sirva para harmonizar e equilibrar a relação de consumo, tendo em vista que se as operadoras de plano de saúde forem compelidas a realizar todo tipo de tratamento, geraremos um gasto exorbitante às operadoras”, diz trecho da negativa. 

A esposa do desembargador foi tratada graças a um contrato firmado entre o TJMT e a Unimed Cuiabá. Com a necessidade urgente de transplante de fígado, Martinha foi transferida para São Paulo em uma UTI aérea que custou R$ 58 mil. Depois de ser recusado pelo plano de saúde, o ressarcimento saiu pelo TJMT. Leite ainda apresentou novas notas fiscais, que foram indexadas ao primeiro pedido. Após a transferência para São Paulo, as despesas foram custeadas de forma particular, segundo o pedido do desembargador. 

Na análise da solicitação, o Departamento de Folha de Pagamentos de Magistrados informou que José Ferreira Leite não apresentou laudo médico detalhando o tratamento. O departamento também indicou que o desembargador apresentou despesas de R$ 774.528,49, mas o valor negado pelo plano foi de R$ 759.507,89. 

Em um dos casos, um recibo de pagamento de R$ 39.373,23 ao Grupo Fleury, empresa que atua no ramo de cirurgias e diagnóstico no Brasil, diverge da soma total das notas fiscais, que ficaram registradas no valor de R$ 34.412,18. Em seguida, Leite apresentou um laudo médico detalhado e reconheceu as divergências de valores, deixando a critério do tribunal o pagamento “que entender que é correto”. 

O então presidente do TJMT, Rui Ramos Ribeiro, decidiu pelo ressarcimento de R$759.507,89, o valor negado pelo plano de saúde. O dinheiro foi pago em 24 parcelas de R$ 30.471,11 e uma parcela única de R$ 28.201,25, entre 2018 e 2020, já no período pandêmico. 

Regulamentado desde 2009, e previsto desde 1985, o reembolso de gastos médicos de companheiras, companheiros e filhos, incluindo transporte aéreo, ocorreu duas vezes no período analisado pelo Intercept. O segundo caso foi com Carlos Alberto Alves da Rocha, desembargador que presidiu o Judiciário mato-grossense entre 2019 e 2020.Os R$ 65,9 mil pagos em 2023 foram para custear o tratamento da esposa. 

O valor ressarcido pelo TJMT custeou despesas de Eliane Ribeiro da Rocha entre 11 e 18 de março de 2022. Eliane foi tratada e recebeu visitas da médica Ludhmila Hajjar no período.  

TJMT bancou tratamentos na pandemia e terapia a laser

No momento do pedido de Leite de ressarcimento de despesas médicas, existiam 28 pedidos do tipo no TJMT, dos quais 22 estavam deferidos e seis estavam sob análise do presidente do tribunal. 

A confusão envolvendo esses pedidos no TJMT foi tamanha que o Departamento da Folha fez uma consulta formal em 2018 ao presidente, questionando a legalidade dos pagamentos. Em resposta, Rui Ramos defendeu que os reembolsos eram legais e classificou as despesas como éticas e morais.

“Como se vê, não estamos a falar de mero ressarcimento de todos os gastos  médicos/hospitalares dos magistrados. Ao contrário, trata-se de ressarcimento de caráter suplementar e subsidiário, com espeque em premissas e exigências claramente definidas, constituindo-se, assim, em direito baseado no princípio da legalidade e com lastro nos princípios éticos e morais”, afirmou o desembargador. 

O próprio Ramos, aliás, foi beneficiado pelo ressarcimento de despesas médicas. Em setembro de 2021, Ramos pediu ressarcimento de R$79.373,58 que não foram cobertos por seu plano de saúde. Acometido de covid-19, Ramos se tratou com a médica Ludhmila Hajjar, conhecida por se recusar a ser ministra do ex-presidente Jair Bolsonaro

Além do tratamento mais grave, Ramos também pediu ressarcimento de R$ 4,8 mil gastos em um tratamento odontológico com terapia a laser, prática médica conhecida também como “fotobiomodulação” – tratamento que consiste na aplicação de luz na pele para aumentar a atividade metabólica das células. Ramos recebeu 57 visitas diárias da doutora Ludmilla Hajar e foi submetido a sessões de laserterapia com uma dentista quando esteve em São Paulo para tratamento da covid-19 no Hospital Vila Nova Star.

O custeio de tratamento odontológico era proibido pela Resolução 003/2009 do TJMT, que regulamentava anteriormente o ressarcimento de despesas médicas. A partir de 2019, o Conselho Nacional de Justiça, com a Resolução nº 294, passou a permitir ressarcimento por custos com serviços de odontologia. O pagamento foi autorizado a Rui Ramos em 2021 pela então presidente Maria Helena Póvoas.

Caso raro é o de indeferimento desses pedidos indenizatórios, segundo os documentos que obtivemos, apenas um caso de indeferimento foi identificado. Foi o que ocorreu em setembro de 2016, quando o juiz Arom Olímpio Pereira não teve a mesma sorte do desembargador Rui Ramos. O juiz de direito teve um pedido de ressarcimento de R$ 2.390,00 por procedimento odontológico negado pela área técnica do TJMT.

O desembargador e ex-presidente do Tribunal de Justiça do Mato Grosso, Rui Ramos, com a médica Ludhmila Hajjar.

Tribunal usa hospitais de alto padrão

Os pagamentos são baseados na lei estadual 4.964/85. A previsão é para “indenização de despesas médicas e hospitalares” e vem sendo utilizada para dar suporte às resoluções que regulamentam os pagamentos internamente no TJMT.

Os hospitais escolhidos pelos desembargadores e juízes do TJMT são conhecidos nacionalmente pelo alto custo do tratamento. O desembargador aposentado Alberto Ferreira de Souza, por exemplo, conseguiu que o tribunal pagasse por procedimentos médicos nos hospitais Albert Einstein e Sírio Libanês. Ele foi beneficiado com ressarcimento de R$ 54.782,97.

Até mesmo pequenas despesas nessas unidades hospitalares são custeadas com dinheiro público. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a juíza aposentada Salete Terezinha Azevedo de Oliveira que pediu ressarcimento de R$ 727,15 gastos no hospital Sírio Libanês, em junho de 2016. O valor corresponde a 2,5% do salário de R$ 28.947,55 recebido pela magistrada naquele mês.

Mesmo procedimentos ou cirurgias razoavelmente comuns são custeados pelo Judiciário. É o caso do desembargador Sebastião de Moraes Filho. Em 2022, ele pediu para ser reembolsado por uma “facoemulsificação” com implante de lente intraocular, a popular cirurgia de catarata, disponível no SUS.


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Segundo os documentos, Filho recebeu R$ 25.300,00 do TJMT por essa cirurgia. O procedimento foi feito pelo médico Bráulio Tôrres Cruz Júnior, um oftalmologista com especialização na Suíça e que atua em Cuiabá, capital de Mato Grosso. O valor pago ao desembargador foi somente daquilo que excedeu um reembolso feito pela Sul América Seguros, da qual ele é segurado.

Ministro Barroso sobre reembolsos: ‘É indecente’

Em 2007, o ressarcimento de despesas médico-hospitalares foi contestado pelo Conselho Nacional de Justiça, que proibiu os pagamentos. O próprio TJMT entrou com ação no Supremo Tribunal Federal defendendo os pagamentos.

Em decisão de maio de 2016, o STF decidiu pela legalidade dos ressarcimentos. Durante o julgamento, o ministro Luís Roberto Barroso, que foi voto vencido, fez críticas ao trecho da lei estadual que prevê o ressarcimento. O entendimento do ministro diverge da classificação de despesa “ética e moral” usada pelo ex-presidente Rui Ramos.

“Eu considero esse um exemplo indecoroso de patrimonialismo, de apropriação privada de dinheiro público. Não é inconstitucional; é indecente”, afirmou na ocasião.

Um ano depois, em 2017, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, entrou com ação contra o ressarcimento, mas também não teve sucesso. Na época, Janot informou que o valor gasto com o ressarcimento pelo TJMT foi de R$ 1,4 milhão entre 2012 e 2016.

Para a doutora em Saúde Pública do Laboratório de Economia Política da Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Lígia Bahia, o pagamento de ressarcimento de despesas médicas para servidores públicos representa uma transferência de recursos públicos para a iniciativa privada. O que não se justificaria, porque o Brasil conta com o Sistema Único de Saúde, que poderia atender a esses casos. 

Para Lígia Bahia, os pagamentos são uma forma de furar a fila no direito à saúde: ‘Não à toa temos o Judiciário mais caro do mundo.

“É uma excrescência jurídico-legal”, afirmou Bahia. “Nós precisamos que os fundos públicos desses tribunais financiem o SUS, e não que sejam usados para tratamento exclusivo e tratamento diferenciado”, completou. Ela também classificou os pagamentos como uma espécie de “fura-fila” no direito à saúde. “Não é à toa que temos o Judiciário mais caro do mundo”, completou. 

O Intercept procurou o Conselho Nacional de Saúde para comentar as questões éticas relacionadas ao assunto. O órgão informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que iria “consultar a Comissão Intersetorial de Saúde Suplementar e verificar se há algum estudo sobre a questão”. Não houve retorno até a publicação desta matéria.

Questionamos o TJMT sobre a possibilidade de fixação de um teto para os ressarcimentos e, além disso, se há necessidade dos pagamentos, tendo em vista a alta remuneração de magistrados. Por meio de nota, a coordenadoria de comunicação do tribunal informou apenas que o ressarcimento de despesas médicas é previsto em lei estadual. O TJ afirmou que “somente repassa recursos públicos para entidades privadas com a devida observância dos preceitos legais.  A administração do Poder Judiciário reitera que todos os atos são praticados em completa obediência ao ordenamento jurídico”.

Entramos em contato, por meio de mensagens no WhatsApp, com os desembargadores Alberto Ferreira de Souza, Carlos Alberto Alves da Rocha e Sebastião de Moraes Filho. Até o fechamento desta reportagem, nossas mensagens não haviam sido respondidas. Também ligamos para seis números telefônicos vinculados ao desembargador Rui Ramos Ribeiro, mas não foi possível estabelecer contato.

Não conseguimos falar com com Arom Olímpio Pereira e Salete Terezinha Azevedo de Oliveira. O Intercept pediu ao TJMT contatos dos dois, mas a assessoria informou que não é autorizada a repassar tais informações.

Falamos com a defesa do desembargador José Ferreira Leite, aposentado compulsoriamente pelo Conselho Nacional de Justiça em 23 de fevereiro de 2010. Sobre o ocorrido, o advogado José Arimatéa Neves Costa afirmou que “o magistrado foi “vítima de um grande erro judiciário”. Ele acrescentou ainda que “ficou comprovado, indene de dúvidas, a inocência do Desembargador José Ferreira e de todos os oito magistrados que com ele foram injustamente punidos pelo CNJ”. Sobre as despesas médicas ressarcidas pelo TJMT, a defesa afirmou que não tinha conhecimento da situação e ficou de retornar com uma resposta, o que não aconteceu.

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