Doze fazendas sob suspeita de grilagem foram aceitas pelo Itaú e pelo mercado financeiro como garantia em uma operação de captação de recursos. As terras pertencem ao Grupo Horita, produtora de grãos e algodão em 150 mil hectares no Oeste da Bahia, e cujos proprietários contestam na justiça multas por grilagem e desmatamento.
As propriedades têm um valor total estimado em R$ 689 milhões e integram um único Certificado de Recebível do Agronegócio. O CRA é um tipo de operação utilizada para juntar recursos no mercado financeiro (confira o infográfico abaixo). O chamado CRA Horita IV busca captar R$ 51 milhões e foi lançado pela Virgo, uma emissora especializada, em julho do ano passado, em meio ao boom de investimentos do mercado financeiro no agronegócio brasileiro.
A operação é coordenada pelo Itaú, maior banco privado do país, e tem como avalista o Banco Rabobank, um dos maiores financiadores do agronegócio mundo afora. O agente responsável pelas garantias é a Vortx Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários, que tem sido uma operadora importante no recente crescimento de CRAs vinculados a terras e grãos.
Oficialmente, quem assume a dívida da família Horita na emissão é um dos três irmãos fundadores do grupo.
O Joio e O Trigo e o Intercept obtiveram as matrículas de registro de todos os 12 imóveis apresentados na documentação aceita pelo Itaú. Todos ficam no chamado Agronegócio Condomínio Cachoeira Estrondo, um projeto de latifundiários criado em Formosa do Rio Preto, no extremo Oeste da Bahia, que está sob investigação do Ministério Público Estadual. A acusação é de que a área de 300 mil hectares – quase cinco vezes a cidade de Salvador – foi grilada por volta de 1975.
Terras do Grupo Horita estão sob investigação por grilagem
As próprias matrículas trazem a informação de que as terras estão sob investigação: em todas, o Ministério Público fez constar que existe um inquérito civil em curso. A anotação menciona, inclusive, o fato de que a Estrondo foi fracionada em ao menos 365 propriedades. Essa é uma prática comum em casos de grilagem por dificultar a fiscalização, já que cada matrícula pode se transformar em um pedido de regularização junto a cartórios e ao Judiciário. No documento, o Ministério Público acrescenta que há comunidades tradicionais que utilizam o local há décadas. É por isso que algumas das propriedades dos Horita colocadas como garantia no CRA são, na verdade, uma única fazenda, fracionadas no papel.
O registro do Ministério Público é datado de 22 de junho de 2022, ou seja, um mês antes que o mercado financeiro lançasse o CRA Horita IV. Como se não fosse suficiente, a leitura de informações anteriores nas próprias matrículas permite enxergar um passado, no mínimo, conturbado. Apenas um ano antes, o fundo de investimento Quasar Direct Lending cancelou a alienação de um dos imóveis, ou seja, da transferência de titularidade temporária de um imóvel entregue como garantia. Isso se deu justamente quando a Quasar notou que a terra estava sob investigação por grilagem. Para o Itaú, contudo, a suspeita parece não ter tanta relevância.
Perguntamos ao banco se o histórico das terras foi levado em consideração ou gerado ressalvas. Em nota, o Itaú informou que seu papel como instituição intermediária é o de “realizar diligência legal de alto padrão e de dar visibilidade acerca dos riscos aos investidores, requisitos plenamente atendidos” pelo banco. Escreveu ainda que “os apontamentos relacionados às terras, que ainda estão sendo apurados pelas autoridades responsáveis, foram identificados no processo de estruturação da oferta e informados aos investidores como fator de risco no Anexo X, item 6 do Termo de Securitização da emissão” – e que os investidores são capazes de “entender e ponderar os riscos financeiros relacionados aos seus investimentos”.
De fato, o anexo em questão trata dos riscos que os eventuais investidores assumem quando decidem aportar recursos no CRA da família Horita. Ao todo, quatro parágrafos mencionam o histórico do Condomínio Estrondo, incluindo um relatório do Greenpeace a respeito de grilagem e as investigações em curso pelo Ministério Público.
Procuramos também Virgo, Vortx, Grupo Horita e Rabobank, mas não obtivemos resposta até o fechamento desta reportagem.
Por que isso importa?
Pode haver dezenas de outras operações em que terras sob suspeita de grilagem tenham sido oferecidas como garantia. A presença do agronegócio no mercado financeiro cresceu de forma inédita graças ao governo Bolsonaro. Essas operações podem dar mais força a empresas com histórico de grilagem, desmatamento e trabalho escravo. E aumentam a chance de que o boom de investimentos de pessoas físicas no setor impulsione esse tipo de prática – dando força ao avanço sobre áreas de produção de alimentos e de preservação ambiental.
Ao mesmo tempo, as matrículas registram que, durante as décadas nas quais a área está sob contestação, as terras só fizeram valorizar. Uma das fazendas em questão, com 700 hectares, foi incorporada a uma empresa do Grupo Horita em 2008 por apenas R$ 597 mil. Um ano depois, o Tribunal de Justiça da Bahia chegou a determinar o cancelamento do registro de imóvel – mas a decisão acabou revertida. Em 2019, a área já estava avaliada em R$ 16,9 milhões e, apenas três anos depois, havia chegado a R$ 65,4 milhões – um aumento de 100 vezes em apenas 15 anos.
O Grupo Horita teve terras sob suspeita aceitas em ao menos outras duas operações investigadas por nossa reportagem. Em 2019, em um CRA também administrado pela Vortx, quatro fazendas investigadas foram entregues como garantia, num total avaliado em R$ 43,49 milhões. Na época, a intenção da Horita era arrecadar R$ 30 milhões. A responsável pela emissão foi a Isec Securitizadora e, nesse caso, a coordenação coube ao Banco Fator.
A Vortx assinalou na documentação disponível que “não fomos informados sobre eventual deterioração do imóvel ou outro aspecto que possa impactar negativamente o valor atribuído ao imóvel”, de forma que a recomendação à Isec era de aceitar a garantia.
Há ainda outro CRA em benefício do Grupo Horita no qual as mesmas terras hoje integradas ao CRA coordenado pelo Itaú foram aceitas como garantia. O certificado foi lançado em 2016 pelo Banco Fibra, tendo como emissora a Ápice Securitizadora, com o objetivo de arrecadar até R$ 52 milhões. Nesse caso, ao todo são listados 20 imóveis pertencentes a empresas do grupo.
Grupo Horita tem histórico de grilagem
Na realidade, o Itaú nem precisaria ler as matrículas para entender que se trata de uma área sob suspeita. A fama da Estrondo precede o nome. O condomínio de fazendas consta do Livro Branco da Grilagem de Terras no Brasil, produzido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária , o Incra, em 1999, com a intenção de que a União recuperasse terras públicas ocupadas irregularmente.
Os processos sobre grilagem envolvendo o Grupo Horita vão além da Estrondo. Os irmãos Ricardo, Walter e Wilson Horita são réus em “um dos casos mais graves de grilagem registrado” da Bahia, segundo a Procuradoria-Geral do Estado, órgão ligado ao Executivo baiano.
Em maio de 2023, a justiça de Correntina, cidade a 660 quilômetros de Salvador, bloqueou as matrículas de 19 fazendas que invadem uma área de 11 mil hectares do fecho de pasto Capão do Modesto. Lá, famílias vivem de forma coletiva há inúmeras gerações. Na decisão, o juiz Matheus Agenor Alves Santos determina a proibição “da derrubada da cobertura vegetal, a construção de cercas e transferências de benfeitorias a qualquer título”.
O bloqueio das fazendas por suspeita de grilagem foi reportado pela Agência Pública. Também são réus no processo empresas do agro, como a Agrícola Xingu, e fazendeiros como Dino Rômulo Faccioni, da Agropecuária Talismã.
Na ação civil, o procurador José Paulo Sisterolli Batista cita que a área em questão é “caracterizada pela existência de grande tensão social, proveniente de conflito fundiário”, e que as comunidades de Capão do Modesto estão sofrendo assédio de empresas, inclusive com ameaças de morte. O documento menciona que, desde 2014, diversos boletins de ocorrência foram lavrados “sem que providências fossem tomadas pelas autoridades locais.”
De acordo com um documento citado na ação proposta pela Procuradoria, empresas de segurança privada vêm “promovendo atos violentos contra as comunidades, a exemplo de ameaças, cárcere privado, fechamento de estradas tradicionais, da circulação ostensiva e permanente pela área portando armas de grosso calibre, além de afirmarem que vão construir guaritas para controle de acesso das pessoas que passam pela estrada a caminho das comunidades.”
É mencionado também que a Agropecuária Talismã LTDA, da família Faccione, “vem se utilizando dos serviços de milícias privadas, sob fachada de empresas de segurança, para expulsar as famílias que fazem uso da área para o pastoreio de animais – atualmente, ‘Estrela Guia’”.
De acordo com a procuradoria, ao longo do processo “restou cabalmente demonstrada a existência de grave conflito pela posse da terra” e “a existente sobreposição quase total da área a ser discriminada do Fecho de Pasto Capão do Modesto”.
A PGE ainda afirmou que “não raras vezes, terras devolutas acabam sendo assenhoradas [tomadas] por particulares sem a devida razão, prática conhecida como grilagem. No caso em comento, é visível que as propriedades da Gleba Capão do Modesto estão listadas como um dos casos mais graves de grilagem registrados na Bahia. [….] Como se não bastasse o conflito existente, apurou-se indícios robustos de grilagem na região”, concluiu.
Walter Horita foi alvo da Operação Faroeste
O Grupo Horita esteve envolvido em mais um caso de grilagem no Oeste da Bahia. Walter Horita foi alvo da Operação Faroeste, que investigou um esquema de corrupção e grilagem de mais de 360 mil hectares na região.
A investigação da Procuradoria Geral da República localizou pagamentos de propina para funcionários do Tribunal de Justiça da Bahia, em troca da regularização de áreas griladas na região. De acordo com a operação, entre 2013 e 2019, Horita teria movimentado pelo menos R$ 5,7 bilhões.
Em maio, o Superior Tribunal de Justiça acolheu denúncia contra a desembargadora Maria da Graça Osório Pimentel Leal, do Tribunal de Justiça da Bahia, e outros quatro réus. Eles são acusados de corrupção, lavagem de dinheiro e formação de organização criminosa.
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