Tem raposa cuidando do galinheiro no Centro de Informações sobre Saúde e Álcool. O Cisa é uma das referências no Brasil no desenvolvimento de pesquisas sobre as consequências do consumo de álcool, mas recebe dinheiro da Ambev ao menos desde 2005 e da Heineken desde 2018. Os efeitos desse financiamento aparecem em estudos publicados pelo Cisa, que apontam uma dose padrão de álcool 40% maior do que a considerada pela Organização Mundial de Saúde, a OMS.
O conceito de dose padrão é usado por boa parte das pesquisas sobre consumo de bebida alcoólica e refere-se à quantidade de álcool puro presente em determinada quantidade de bebida. A OMS considera que a dose padrão tem 10g de álcool, quantidade presente em 285 ml de uma cerveja com teor alcoólico de 5%; em 100 ml de vinho, ou em 30 ml de destilado. Já a dose padrão utilizada pelo Cisa em suas publicações tem 14g de álcool puro, o que seria uma latinha de cerveja de 350 ml, 150 ml de vinho ou 45 ml de destilados.
Segundo o Ministério da Saúde, um homem que faz consumo moderado de álcool toma, no máximo, 14 doses por semana e não mais que quatro em uma única ocasião. Para as mulheres, são até sete doses por semana, limitadas a três em uma ocasião. A pasta utilizou uma pesquisa do Cisa de 2020 como uma das referências bibliográficas na definição das linhas de cuidado para transtornos causados pelo uso de álcool.
A tabela não deixa claro qual a dose padrão que o Ministério da Saúde está usando. Se for de 10g, definida pela OMS, o homem que toma 14 doses de bebida alcoólica por semana estaria ingerindo quatro litros de cerveja. Mas, se considerarmos a dose padrão do Cisa, esse mesmo homem poderia beber quase cinco litros e ainda estaria no grupo de pessoas que fazem consumo moderado – é um litro a mais do que é o indicado pela OMS como uma quantidade menos danosa à saúde.
Segundo a pesquisadora Zila Sanchez, chefe do departamento de medicina preventiva da Universidade Federal de São Paulo, a influência da Ambev e da Heineken interfere diretamente no resultado das pesquisas científicas divulgadas pelo Cisa. Junto com outros pesquisadores, ela publicou em 2020 um artigo expondo os conflitos de interesses que existem no centro.
O texto destaca que faz parte das estratégias das empresas incentivar pesquisas “sem rigor científico, resultando em informações imprecisas sobre o álcool” e que favorecem os interesses do setor. “Os dados produzidos pelo Cisa têm um grande conflito de interesse. Mesmo assim, são referenciados pela mídia e por órgãos oficiais e nunca é dito que foram gerados pela indústria do álcool”, explicou Sanchez.
O artigo ainda mostra exemplos de “desinformação sutil” disseminada pelo Cisa. Um é a ideia de que o setor econômico do álcool pode se autorregular de modo eficaz e contribuir para a redução do uso nocivo. Isso consta no relatório Panorama Álcool e Saúde dos Brasileiros, publicado pelo Cisa em 2020.
Embora informe no próprio site que a Ambev e a Heineken são “apoiadores financeiros”, o Cisa não divulga quanto recebeu das duas empresas. Ambas ainda têm assento no conselho deliberativo do centro há pelo menos dois anos, ocupando cargos de destaque. Atualmente, a presidência do conselho é ocupada por Carla Smith de Vasconcellos Crippa Prado, também diretora vice-presidente de relações corporativas da Ambev. Já o vice-presidente é Mauro Vitor Homem Silva, que responde também pela vice-presidência de sustentabilidade e assuntos corporativos da Heineken.
Segundo o site do Cisa, faz parte das funções do conselho deliberativo supervisionar o trabalho da equipe executiva da instituição, além de monitorar e orientar “a definição dos objetivos e ações sociais” e estabelecer “as diretrizes fundamentais e normas gerais de organização, operação e administração”.
Procurada, a Ambev alegou que sua relação com o Cisa “sempre foi pública e transparente”. Disse ainda não ter influência no conselho científico, responsável por analisar a procedência, a veracidade e a qualidade das publicações. A empresa, que não informou quanto repassa ao Cisa anualmente, acrescentou que tem responsabilidade em “promover o consumo responsável e incentivar o conhecimento científico para reduzir o consumo nocivo de bebidas alcoólicas”.
A Heineken também não informou quanto paga ao Cisa e alegou que o financia unicamente para “fomentar estudos independentes e a multiplicação de conhecimento sobre consumo de álcool para a indústria e para a sociedade”. Assim como a Ambev, a empresa negou exercer influência sobre as pesquisas realizadas.
Presidido pelo psiquiatra Arthur Guerra, que também possui uma clínica particular especializada no tratamento de pacientes com histórico de abuso de álcool e outras drogas, o Cisa atua há 19 anos como organização da sociedade civil de interesse público, uma Oscip, e se gaba de ser independente e livre de interferência dos seus patrocinadores e parceiros.
Em nota, a entidade disse que seu trabalho é pautado no rigor ético e na transparência, mas não respondeu à pergunta sobre valor que recebe da Ambev e da Heineken anualmente. O Cisa disse também que “trabalha para contribuir com a conscientização e prevenção do uso nocivo de bebidas alcoólicas, a partir do conhecimento científico” e que sua produção técnica “é baseada em artigos científicos e validada por um Conselho Científico autônomo, que analisa e verifica a procedência, veracidade e qualidade das informações técnicas”.
As evidências encontradas pelo Intercept, contudo, mostram outra realidade, a exemplo do tamanho da dose de álcool considerada como padrão, relaxando o modelo proposto pela OMS.
Centro define doses de álcool na contramão do mundo
O parâmetro de 14 doses semanais de álcool utilizado pelo Cisa e pelo Ministério da Saúde contraria a tendência internacional de reduzir o limite do que é considerado consumo moderado. No início deste ano, o governo do Canadá passou a orientar que beber mais de duas doses por semana – considerando que cada uma tem 10g de álcool puro – já aumenta a probabilidade de desenvolver doenças a longo prazo.
Para o médico Alexandre Fonseca Santos, que no doutorado pesquisa a aceitabilidade pública das políticas de controle do uso nocivo do álcool, na avaliação canadense, duas latinhas de 350ml de cerveja por semana já aumentam o risco para desenvolvimento de câncer, transtornos mentais e outros agravos de saúde. “Existe risco elevado a partir de três doses semanais para homens e mulheres”, disse o pesquisador.
Enquanto isso, no Brasil, a dose padrão de 14g sugerida pelo Cisa está entre as maiores de um levantamento da OMS. Perde para países como Áustria, cujo parâmetro é de 20g de álcool puro, e se iguala aos Estados Unidos. Já no Reino Unido, a dose padrão é de apenas 8g.
Santos alerta que a determinação das faixas de risco para o consumo são puramente didáticas e não devem ser compreendidas como recomendação de ingestão segura. “O conceito de consumo moderado é perigoso, pois pode passar a ideia de que existe uma quantidade segura, o que não se aplica ao álcool”.
Cisa ainda destaca benefícios do álcool
Se você acessar o site do Cisa agora, vai encontrar títulos como este: “O consumo leve e moderado de álcool pode diminuir o risco de doenças cardiovasculares?”. A resposta à pergunta está no subtítulo – “estudo mostrou que pessoas que consumiam álcool de forma leve e moderada apresentaram risco reduzido de desenvolver doenças cardíacas causadas pelo estresse”.
Identifiquei ao menos sete matérias com esse direcionamento no site. O conteúdo, contestado por várias pesquisas e entidades de saúde no mundo, é frequentemente reproduzido na imprensa. Em 2022, segundo o boletim anual da entidade, houve 180 inserções na mídia – 37 entrevistas foram concedidas para veículos como Estadão, O Globo e IstoÉ.
Uma declaração divulgada pela OMS em janeiro deste ano não deixa dúvidas sobre o mito da quantidade segura de álcool. “Não existem estudos que demonstrem que os potenciais efeitos benéficos do consumo leve e moderado nas doenças cardiovasculares e na diabetes tipo 2 superem o risco de câncer associado a estes mesmos níveis de consumo de álcool para consumidores individuais”.
A Federação Mundial do Coração concorda e vai além. Em uma publicação deste ano, a entidade crava que nenhuma correlação confiável foi encontrada entre o consumo moderado de álcool e um menor risco de doença cardíaca. Estudos que dizem o contrário seriam baseados apenas em pesquisas observacionais, que não levam em conta fatores como doenças pré-existentes e histórico de alcoolismo.
Alegações de que o consumo moderado de bebida alcoólica, como uma taça de vinho tinto por dia, pode oferecer proteção contra doenças cardiovasculares, diz o texto, “são, na melhor das hipóteses, mal informadas e, na pior, uma tentativa da indústria do álcool de enganar o público sobre o perigo de seu produto”.
Esta reportagem foi produzida com o apoio do Instituto Serrapilheira.
Correção: 21 de setembro, 14h34
Uma versão anterior deste texto afirmava que se a dose padrão do Ministério da Saúde for de 10g, quem toma 14 doses de bebida por semana estaria ingerindo quatro litros de álcool puro. Na verdade, são quatro litros de cerveja.
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