O discurso de Lula na Assembleia Geral da ONU foi marcado pelo contraste com o de Bolsonaro na mesma tribuna, quatro anos antes. Aos olhos do mundo, o presidente resgatou o status do Brasil de figura relevante na diplomacia internacional.
O presidente negacionista envergonhou o país ao defender tratamentos ineficazes contra a Covid, ao rejeitar temas urgentes para o mundo como as mudanças climáticas e ao proferir um sem número de barbaridades de cunho ideológico e negacionista. Lula falou sobre igualdade racial, equidade salarial entre homens e mulheres, democracia, defendeu a liberdade de imprensa e tratou as mudanças climáticas com a importância devida. Bolsonaro foi timidamente aplaudido apenas no início e no fim da sua fala, enquanto Lula foi interrompido por aplausos em sete momentos diferentes. O contraste foi gritante.
Entre tantas agendas positivas na passagem de Lula na ONU, havia uma com potencial para lhe trazer problemas: o encontro com o presidente ucraniano Zelensky para tratar da guerra. Como se sabe, há uma obsessão da imprensa internacional, principalmente a brasileira, em tratar o ucraniano como um herói, um símbolo da democracia que está lutando contra o autocrata Putin, da Rússia. Tudo mentira.
Do ponto de vista democrático, Zelensky é tão problemático quanto Putin. O ucraniano cassou partidos políticos de oposição, prendeu comunistas arbitrariamente e deu a uma milícia nazista, o Batalhão de Azov, o status de integrante oficial da Guarda Nacional ucraniana. Zelensky virou uma espécie de Guaidó do leste europeu — um delírio fabricado pelos democratas de ocasião, alinhados aos interesses da Otan.
Há um consenso geral dentro da imprensa brasileira de que Lula está alinhado a Putin na guerra da Ucrânia. Trata-se de outra mentira. A despeito de algumas falas atabalhoadas do presidente no início do mandato, ele próprio colocou fim ao ruído ao condenar expressamente a invasão russa em reiteradas oportunidades.
O Brasil votou contra Putin em todas as resoluções propostas na ONU sobre a guerra, inclusive uma que pede a retirada das tropas russas da Ucrânia e que promete não reconhecer os territórios anexados pela Rússia obtidos com o uso da força militar.
Apesar de ter se posicionado contra Putin, Lula rejeita o papel de pitbull da Otan que parte importante da imprensa pretende dar para ele. O presidente brasileiro não ficou em cima do muro, mas também não se colocou caninamente ao lado de Zelensky e dos países do bloco militar. Ele honra a tradição diplomática brasileira de não se envolver em guerras e buscar uma saída para os conflitos.
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Lula é um homem pragmático e sabe que a única saída possível para a paz passa por uma negociação que envolva Putin e Zelensky. Colocar-se ao lado de um enquanto demoniza-se o outro definitivamente não é um caminho para a resolução do conflito. Putin está à frente de uma superpotência militar e nuclear e demonstra claramente que não irá largar o osso da guerra. Do outro lado, Zelensky resiste com ajuda de outras superpotências militares. Há muita gente morrendo dos dois lados. A guerra está travada e não há saída possível fora de uma mesa de negociação. O Brasil condenou a invasão, mas deixou claro que não vai tomar parte nesta guerra de cachorros grandes.
Ora, se a posição oficial do Brasil sobre a guerra é clara e direta, por que se cobra tanto do presidente brasileiro uma posição mais afrontosa a Putin? O jornalista Demétrio Magnoli, da Globo News, é uma dessas figuras que insiste em colocar Lula como um pet de Putin. “Zelensky espera que Lula pare de dizer que a guerra é responsabilidade igual dos dois lados, e que comece a dizer que a guerra tem um responsável: o país que invadiu a Ucrânia. É isso que Zelensky quer de Lula. Não é muito”, afirmou Magnoli como se Lula já não tivesse feito isso. Não basta condenar a invasão russa oficialmente na ONU.
Para agradar essa turma, Lula tem que apontar os dedos para Putin e colocar Zelensky num pedestal de herói da democracia. Não vai rolar. Há certamente nessa cobrança ensandecida para que Lula mostre os dentes para Putin o componente do complexo de vira-latas — esse mal que aflige a parte da imprensa brasileira que sempre balançou o rabinho para os EUA e para o chamado mundo ocidental civilizado. Deseja-se um alinhamento automático do Brasil aos interesses da Otan, o que, ainda bem, não irá acontecer.
No discurso da Assembléia Geral, Lula destacou a incapacidade da ONU em solucionar a guerra da Ucrânia. Condenou também outras guerras deflagradas sem autorização da ONU por países que integram o Conselho de Segurança — o que vale não só para a Rússia, mas também para os EUA. O queridinho Zelensky fez um discurso raivoso, nada diplomático, que deixa claro que o conflito só terá fim se Putin se render. Ou seja, mesmo com os cadáveres se empilhando de ambos os lados, Zelensky não quer o fim da guerra. Esse é o democrata bondoso e pacífico com o qual a imprensa brasileira exige que Lula se alinhe.
Na quarta-feira, finalmente Lula e Zelensky se encontraram. Depois de fazer discurso belicoso e não aplaudir o discurso do presidente brasileiro da ONU, o ucraniano sentou para conversar com o brasileiro, que reforçou a necessidade de se buscar uma saída para a paz.
Lula propôs que se reúna um grupo de países amigos que possa discutir uma proposta equilibrada para os países envolvidos na guerra. “Eu disse ao presidente Zelensky que é fundamental estabelecer uma mesa de diálogo para encerrar o conflito e encontrar uma solução. Uma mesa de diálogo é muito mais econômica em termos de vidas e recursos do que uma guerra. Não há vítimas, mortes ou disparos”, afirmou Lula na saída do encontro. Certamente haverá quem considere ingênua essa fala de Lula, ignorando que o fim da guerra não acontecerá sem uma negociação em que os dois lados sejam contemplados de alguma maneira.
O fato é que, após o encontro, Zelensky deu uma declaração com um tom muito mais ameno do que o adotado no discurso da ONU. “Após a nossa discussão honesta e construtiva, instruímos as nossas equipes diplomáticas a trabalhar nos próximos passos nas nossas relações bilaterais e nos esforços de paz. O representante brasileiro continuará participando das reuniões da Fórmula da Paz”, afirmou Zelensky.
Muito provavelmente a declaração foi protocolar e o ucraniano continuará com uma postura belicosa. O fato relevante é que Lula não capitulou diante das pressões internas e externas, manteve a tradição diplomática brasileira e, ainda assim, ganhou algum respeito do ucraniano que até então o desprezava. No fim das contas, a agenda que poderia ser potencialmente negativa para Lula se transformou em um golaço da diplomacia brasileira.
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