A privatização de um dos componentes do seu sangue é o que está em jogo na PEC do Plasma. A proposta tramita no Senado desde 2022 e prevê mudanças no artigo da Constituição que proíbe “todo tipo de comercialização” do sangue e seus derivados.
Atualização às 16h43 de 4 de outubro de 2023: a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou a PEC que autoriza a coleta e venda de plasma humano pela iniciativa privada. Foram 15 votos favoráveis frente a 11 contrários. O texto vai passar agora pelo plenário do Senado. Se aprovado, segue para a Câmara dos Deputados.
Pela Lei do Sangue, todo o plasma que não for usado em transfusões de sangue – cerca de 90% do que é coletado – é considerado excedente e deve ser entregue gratuitamente ao SUS. Esse material é usado na produção de medicamentos destinados a pacientes com problemas no sistema imunológico e na coagulação do sangue, por exemplo.
Segundo estimativa da indústria farmacêutica, o mercado atual de remédios derivados do sangue movimenta cerca de R$ 10 bilhões no Brasil. Para se ter uma ideia, custa em média R$ 2 mil um frasco com apenas cinco gramas de imunoglobulina, medicamento produzido a partir do plasma.
Em vez de repassar o plasma para o SUS sem receber nada em troca, a iniciativa privada quer fincar as garras nesse lucrativo mercado – e está investindo pesado em anúncios na imprensa para convencer as pessoas de que a mudança na lei é boa para elas também. Não é! A aprovação da PEC pode encher os bolsos dos empresários, mas arrisca esvaziar os estoques dos hemocentros públicos e encarecer os medicamentos produzidos a partir do plasma.
Vamos te explicar como funciona a bem-sucedida política nacional do sangue e como a PEC do Plasma pode destruí-la.
Quais são os componentes do sangue?
Os hemocomponentes são as hemácias, as plaquetas e o plasma. Eles são obtidos por meio de processos como centrifugação e congelamento do sangue do doador e, depois, destinados a hospitais para transfusões. As hemácias e plaquetas geralmente estão em falta, pois a demanda é maior que as doações. No caso do plasma, apenas 10% do que é coletado é transfundido em pacientes.
O que são os hemoderivados?
O excedente de plasma serve de matéria-prima para produzir os hemoderivados, medicamentos usados no tratamento de problemas imunológicos e de coagulação, câncer, queimaduras graves, insuficiência renal, HIV e doenças neurológicas ou hepáticas.
Como funciona a rede de doação de sangue?
A hemorrede é formada por 181 hemocentros públicos, 64 bancos de sangue privados e 58 entidades filantrópicas. São eles que coletam, armazenam e processam o sangue doado, deixando os componentes prontos para as transfusões em pacientes ou para a destinação do SUS à indústria. Para receber a transfusão gratuitamente, basta o paciente encaminhar a solicitação médica a um hemocentro público.
Já os bancos de sangue privados vendem o material a hospitais particulares ou planos de saúde. Os bancos de sangue mistos ou filantrópicos atendem aos planos de saúde, os hospitais particulares e ao SUS.
O que é a PEC do Plasma?
A Proposta de Emenda Constitucional nº 10/2022 pretende mudar a lei para permitir que o poder privado comercialize o plasma e produza hemoderivados. Hoje, isso é proibido pela Lei do Sangue, sancionada em 2001.
Ela determina que toda doação deve ser voluntária e não pode ser gratificada. A lei também estabelece que o plasma excedente deve ser repassado gratuitamente ao SUS. Esse material é usado pela Hemobrás em pesquisas e na produção de hemoderivados para atender prioritariamente à demanda da saúde pública.
A PEC quer tirar esse monopólio do poder público.
Em que pé está a discussão sobre a PEC do Plasma?
O parecer de março de 2023 da relatora Daniella Ribeiro, do PSD, incluía um artigo que autorizava a iniciativa privada a comercializar e a fazer “coleta remunerada do plasma humano”, ou seja, o pagamento ao doador. A proposta foi duramente criticada por senadores como Humberto Costa, do PT, o que levou a relatora a fazer um acordo com os colegas para retirar esse trecho.
A Comissão de Constituição e Justiça aprovou a PEC do Plasma por 15 votos a 11. O texto segue para o plenário do Senado e, se aprovado, será debatido pela Câmara de Deputados.
Entidades como os hemocentros, a Hemobrás e o Ministério da Saúde já se manifestaram contra a proposta, vista como uma forma de privatizar o sistema público de saúde aos poucos.
Ao menos por enquanto, parece certo que não será permitida a remuneração do doador de plasma. O que está em debate é a permissão para que os bancos de sangue privados possam vender o material que coletarem para as indústrias internacionais de hemoderivados, em vez de repassar ao SUS gratuitamente.
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Como a aprovação da PEC impactaria nas doações de sangue?
Há o risco de diminuição das doações de sangue, levando ao desabastecimento de hemácias e plaquetas. Isso se o setor privado adotar massivamente um procedimento chamado plasmaférese, que possibilita a coleta exclusiva do plasma por meio de uma máquina ligada ao doador. Ela centrifuga o sangue, retira o plasma ou as plaquetas e devolve as hemácias ao organismo.
Como a produção de remédios feitos a partir do plasma seria afetada pela PEC?
Segundo Joice Aragão, coordenadora-geral de sangue e hemoderivados do Ministério da Saúde, o uso do plasma como commodity pode fazer com que as doações sirvam à demanda internacional, sem a garantia de que o medicamento produzido com a matéria-prima do Brasil abasteça o próprio país.
“A exportação do plasma prejudicaria a assistência à população, principalmente das pessoas com problemas de coagulação, e deixaria o país mais vulnerável, especialmente em situações de emergência, pois são produtos de alto custo, utilizados em tratamentos que requerem regularidade, e cuja oferta está garantida atualmente pelo SUS de forma gratuita”, afirmou.
Quem ganha e quem perde com a aprovação da PEC do Plasma?
Segundo Aragão, quem ganha são as empresas que comercializam hemoderivados no mercado internacional e quem perde é a população brasileira. “O modelo atual é baseado justamente na doação voluntária de sangue e a sua regulação pelo poder público, na mesma lógica da doação de órgãos para transplantes. Nossa Política Nacional de Sangue, Componentes e Hemoderivados é uma referência mundial pela sua capacidade de garantir a assistência a todos os brasileiros”.
Como funciona o mercado de remédios feitos a partir do plasma?
A demanda anual de plasma para produção dos hemoderivados usados no SUS, segundo o presidente da Hemobrás Antônio Edson Lucena, é de 700 mil litros. Se o SUS tivesse que comprar a matéria-prima, pagaria mais de R$ 300 milhões por ano, considerando o valor praticado nos Estados Unidos – onde um litro de plasma pode chegar a cerca de R$ 540.
Como o Brasil não tem fábrica para fracionar o plasma e produzir hemoderivados, o Ministério da Saúde compra de outros países 70% dos hemoderivados usados no SUS. Isso custa R$ 1,5 bilhão por ano. Os outros 30% são produzidos a partir do plasma doado no Brasil, pela empresa estrangeira Octapharma AG.
Funciona assim: a Hemobrás recolhe o material nos hemocentros, analisa e atesta sua qualidade e envia para a Octapharma AG, que produz e devolve ao Brasil albumina, imunoglobulina, fator VIII e fator IX de coagulação.
Esse trabalho custa 225 euros por litro de plasma fracionado, cerca de R$ 1.170. Cada litro de plasma rende dois frascos de albumina, um de imunoglobulina, 0,3 de fator VIII e 0,5 de fator IX de coagulação. Segundo Lucena, a empresa garante esse rendimento mínimo e o contrato sai mais barato do que comprar os medicamentos prontos de outros países.
A Hemobrás espera reduzir 30% o custo que tem hoje no contrato com a Octapharma AG, depois que a fábrica nacional de hemoderivados estiver em pleno funcionamento. Ela está sendo construída na cidade pernambucana de Goiana e a previsão para a conclusão da obra é em 2025. Embora tenha sido questionada sobre o valor que paga anualmente para a empresa estrangeira, a Hemobrás não respondeu, sob o argumento de que “a informação solicitada envolve estratégia de equilíbrio comercial, bem como sigilo acordado entre as partes no contrato”.
O que muda com a fábrica?
O objetivo é qualificar uma quantidade de hemocentros que garanta fornecimento de ao menos 250 mil litros de plasma por ano, de acordo com Lucena. Para ser usada na produção de medicamentos, a matéria-prima tem que ser coletada por hemocentros ou bancos de sangue qualificados pela Hemobrás. Eles precisam seguir critérios rigorosos para evitar que sangue contaminado seja usado em escala industrial e afete milhares de pacientes.
A fábrica terá capacidade para produzir até três toneladas de imunoglobulina por ano, que é a demanda atual do SUS. Com a quantidade de plasma que coleta hoje, a Hemobrás consegue menos de duas toneladas de imunoglobulina por ano.
Atualmente, cerca de dois terços do volume de plasma é coletado na rede pública, mas o que é coletado nos bancos de sangue privados é necessário para alcançar a capacidade máxima da fábrica e atender à demanda do SUS.
Para isso acontecer, os bancos de sangue privados tem que ser qualificados pela Hemobrás e repassar ao SUS o plasma que não é usado em transfusões. Isso está na lei, mas ela é descumprida.
Os bancos de sangue privados alegam que têm custos para fazer a coleta do plasma. Por isso, querem ser ressarcidos. Hoje, diz o presidente da Hemobrás, “o setor privado prefere descartar o produto excedente, pagando pela incineração, em vez de entregar gratuitamente” ao SUS, como manda a lei. Ele acredita que as empresas fazem isso porque vislumbram uma forma de rentabilizar o hemocomponente.
Essa é uma das questões em jogo na PEC do Plasma. A comercialização do plasma e produção de hemoderivados pela iniciativa privada pode desestruturar a Política Nacional do Sangue, que é tão bem-sucedida no Brasil quanto a de transplante de órgãos.
O texto foi atualizado para informar que a PEC do Plasma foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado.
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