Ao debater sobre a chacina que vitimou três médicos no Rio, a equipe do Instituto Fogo Cruzado, do qual eu faço parte, fez um primeiro questionamento, antes mesmo da principal linha de investigação ter sido divulgada pela polícia: será que os homens baleados na Barra foram confundidos com outras pessoas? Não se trata de futurologia, são os dados. Por que essa hipótese não é absurda? Eu explico logo abaixo.
A zona oeste do Rio está em disputa há anos – mais acirradamente desde 2018. A batalha dentro das milícias, e delas com traficantes, aterroriza há bastante tempo a vida de milhares de pessoas. Os dados do Fogo Cruzado mostram que tiroteios na região aumentaram 54% em relação a 2022. Aumentou em 123% o número de mortes.
Resumo: as milícias racharam desde que Ecko, chefe da principal delas, foi morto em 2021. O irmão dele, Zinho, e um ex-parceiro, Tandera, passaram a disputar bairros. Com a milícia fragilizada, o Comando Vermelho passou a tentar tomar as áreas. A disputa em Jacarepaguá é uma das mais críticas.
Conflito entre milícias e traficantes chegou às ruas
O conflito é generalizado e não se restringe às favelas. Há assassinato em vias movimentadas. Os milicianos dominam a zona Oeste, circulam pela cidade, estão nos bares, restaurantes, na praia e nos quiosques.
E, não, nem todo ataque a tiros é meticulosamente planejado.
A hipótese de que as vítimas foram executadas por engano foi ventilada rapidamente – o que gerou desconfiança. Para quem acompanha o noticiário carioca, desconfiar precisa ser a regra, mas isso não pode afastar possibilidades sobre o crime – mesmo as que parecem surreais demais.
E essa é a questão aqui. No Rio, qualquer coisa pode acontecer. Qualquer coisa mesmo. É nesse estado que em 2010 houve um atentado a bomba na principal avenida do Recreio dos Bandeirantes – e outro, 10 anos depois, relacionado a ele. Mas também o Rio onde, em junho, um ataque a tiros aberto por ocupantes de um carro numa rua de Senador Vasconcelos deixou um morto e quatro feridos, entre elas uma mulher grávida. A área é dominada por Zinho, onde dias antes houve ataque similar, com cinco mortos.
Esse tipo de ataque é tão comum que em 2020 publicamos uma matéria chamada “Chacinas sobre rodas”. Na época, mostramos que em dois anos houve 91 ataques como este, com 128 mortos e 115 feridos.
Estes ataques nem sempre são planejados porque não precisam ser. E não precisam ser porque ninguém se importa. Quando publicamos a reportagem, perguntamos sobre estes crimes para as polícias civil, militar e para o Ministério Público. Não houve resposta digna. A polícia Civil sequer respondeu. Ninguém estudava a correlação entre estes crimes.
Na última década e meia o domínio das milícias aumentou quase 400% – e mesmo assim o Rio de Janeiro não tem um plano de segurança. Mesmo assim, o Ministério Público extinguiu o GAESP, o Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública, que tinha como função investigar excessos e desvios de polícias – que são maioria dos integrantes das milícias.
Matéria publicada no UOL analisou cerca de três mil tiroteios ocorridos entre 2016 e 2019 e constatou que apenas 3% das operações policiais ocorriam em áreas dominadas por milícias.
A polícia monitorava há meses a situação que acabou com a morte dos médicos na Barra. Carro da mesma marca e modelo foi usado em outras mortes na região – e a morte dos médicos não foi evitada. Enquanto eles morrem entre si, “tudo certo” – até que não mais. .
Dados do Fogo Cruzado mostram aumento de execuções e chacinas na Zona Oeste em meio às disputas. Foram 53 execuções em 2023 (67 mortos). Em 22, no mesmo período, foram 12 (15 mortos). Este ano já houve 12 chacinas, contra 4 do ano passado. É uma tragédia!
Espero sinceramente que com essa investigação finalmente governo e sociedade atentem para o que está acontecendo.
Segurança precisa ser baseada em dados. O Rio nem tem plano de segurança. Ou alguém acha que a ocupação por Força Nacional na Barra vai resolver nossos problemas?
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