O malabarismo retórico dos senadores para defender a PEC do plasma e os gastos exorbitantes das empresas com publicidade, às vésperas da votação da proposta na Comissão de Constituição e Justiça, expuseram a verdade: permitir que o setor privado comercialize um componente do nosso sangue passa longe de beneficiar quem depende de medicamentos produzidos à base do plasma, os chamados hemoderivados. Passa longe também de ser uma defesa do SUS ou da Hemobrás, a empresa pública responsável por viabilizar esses remédios no Brasil. Apenas os empresários ganham com a mudança na política nacional do sangue, tão bem-sucedida quanto a de transplantes de órgãos.
O mercado que eles querem abocanhar é tão lucrativo que estão investindo alto para convencer a opinião pública, seja por meio da imprensa ou dos senadores, de que o SUS tem sido ineficiente em suprir a demanda dos pacientes por hemoderivados.
Entre os dias 30 de setembro e 4 de outubro, dia da votação da PEC do plasma na comissão do senado, os assinantes da Folha de São Paulo, do Valor Econômico e Correio Braziliense receberam edições com informes publicitários de página inteira, frente e verso, como se fosse a capa do jornal, além de anúncio em página interna. Pagas pela Associação Brasileira de Bancos de Sangue, a ABBS, as peças traziam frases como “o Brasil não tem tecnologia para processar o próprio plasma”, “sangue bom não desperdiça plasma”, “isso tem que acabar” e “a PEC do plasma pode corrigir essa situação”.
O primeiro anúncio foi publicado na edição de fim de semana do Valor Econômico. O preço da sobrecapa falsa frente e verso, que foi o espaço vendido para a ABBS, não consta na tabela de publicidade do Grupo Globo, mas, para se ter como referência, um anúncio em apenas metade da capa do Caderno 1 custa aproximadamente R$ 37.500 – a sobrecapa é um espaço maior e ainda mais valorizado.
No Correio Braziliense, para essa publicidade é cobrado R$ 170 mil no primeiro caderno. Esse formato, segundo o próprio veículo, é direcionado para empresas que têm pressa em obter “impacto perante o público-alvo”. O jornal promete entregar ao anunciante “retorno rápido, objetivo e certeiro”. A publicidade da ABBS circulou em uma sobrecapa do Correio, frente e verso, no dia 3.
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Na mesma data, a Folha veiculou um anúncio que ocupou toda a página 5 do primeiro caderno. Uma publicidade desse tamanho nos cadernos diários de circulação nacional custa quase R$ 566 mil, segundo a própria tabela de preços do veículo. Já no dia 4, uma data decisiva, a Folha circulou com uma sobrecapa frente e verso. O valor desse espaço, considerado pelo próprio veículo como o “mais nobre do jornal”, não é divulgado.
Por e-mail, questionei a ABBS sobre o total gasto com os anúncios e por que a entidade achou importante fazer esse investimento, mas não obtive resposta.
Além de anúncios estratégicos, os donos de bancos de sangue também puderam contar com a defesa ferrenha de alguns senadores. “Eu sou cristã e defendo a vida”, disse a relatora da PEC do plasma, senadora Daniella Ribeiro, do PSD, sugerindo que autorizar a comercialização do plasma pela iniciativa privada garante que pacientes com problemas no sistema imunológico e na coagulação do sangue não morram por falta de medicamentos hemoderivados.
Já o autor da PEC, senador Nelsinho Trad, do PSD, alegou que a intenção da sua proposta é fortalecer o SUS e “tirar das costas essa questão que ele não deu conta de fazer”.
É verdade que a empresa pública ainda não produz hemoderivados no Brasil, mas isso significa justamente que é necessário investir mais nela. Para a senadora Zenaide Maia, também do PSD, que é contra a PEC do plasma, aprovar a proposta é permitir que o componente do sangue se transforme em commodity, sendo vendido por empresas privadas para ser processado fora do Brasil e depois revendido com alto valor agregado. “Vamos acabar com essa história de quando uma coisa pública não evoluiu por falta de investimento, temos que entregar para a iniciativa privada”.
Parlamentares que votaram a favor da PEC do Plasma quisessem mesmo defender a vida e o SUS, estariam lutando pelo aprimoramento da política nacional do sangue.
A primeira fábrica da Hemobrás tem previsão de ser concluída em 2025 e terá capacidade para produzir até três toneladas de imunoglobulina por ano, que é a demanda atual do SUS. Enquanto isso não acontece, boa parte dos hemoderivados usados no Brasil são produzidos por uma empresa estrangeira que processa o plasma coletado pela Hemobrás e devolve os medicamentos a um custo mais barato.
Se a senadora Daniella Ribeiro, o senador Nelsinho Trad e os outros 13 parlamentares que votaram a favor da PEC do Plasma quisessem mesmo defender a vida e o SUS, estariam lutando pelo aprimoramento da política nacional do sangue e pelo fortalecimento da Hemobrás e da Coordenação-Geral de Sangue e de Hemoderivados do Ministério da Saúde – estariam lutando pela saúde pública, em vez de entregar o plasma dos brasileiros a empresários gananciosos por lucro a todo custo.
A PEC do plasma agora será debatida no plenário do Senado e precisa da aprovação de 49 senadores. É fundamental acompanhar esse assunto e pressionar os parlamentares para que não votem apenas para privilegiar esses empresários.
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