A biomédica Jaqueline Goes de Jesus integrou a equipe que mapeou os primeiros genomas do novo coronavírus no Brasil apenas 48 horas após a confirmação do primeiro caso de covid-19 no país (em escala mundial, o mapeamento teve uma média de 15 dias).
Viviane dos Santos Barbosa, engenheira química, misturou os metais paladium e platina e desenvolveu um catalisador inédito, que reduz a emissão de gases poluentes. Sua descoberta recebeu a premiação máxima – entre 800 trabalhos – na International Aerosol Conference, em 2010.
Enedina Alves Marques se formou em engenharia civil em 1945, na Universidade Federal do Paraná. Naquele momento, pouquíssimas mulheres conseguiam terminar uma graduação, principalmente em áreas até hoje marcadas por forte presença masculina, como mostra esse artigo.
É muito provável que você nunca tenha ouvido falar de nenhuma das mulheres acima, que têm outra coisa em comum, além de suas excelências e pioneirismos: todas elas são negras.
É muito provável, também, que você tenha acompanhado – nas redes, televisões, podcasts, rádios, etc – as notícias sobre a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, e sua então assessora, Marcelle Decothé, no episódio do jogo do São Paulo, quando a última fez uma postagem que terminaria, dois dias depois, com sua demissão. Naquele mesmo momento, a ministra era defenestrada em praça pública por ter postado um vídeo se dizendo flamenguista em um avião da Força Aérea Brasileira. Semanas depois, foi também demitido o diretor do Departamento de Prevenção e Promoção da Saúde do Ministério da Saúde, Andrey Roosewelt Chagas Lemos. O gatilho para seu desligamento foi uma apresentação na qual uma bailarina rebolou a bunda, usando uma saia minúscula, em um evento do ministério.
Todas essas pessoas têm outra coisa em comum além de terem chegado a postos de destaque em suas áreas: elas são, e isso você sabe, negras.
Nesse texto, quero te apontar três questões interconectadas:
1) Pessoas negras que realizam trabalhos relevantes geralmente aparecem muito pouco, ou pelo menos bem menos que seus pares brancos. Mas, ao contrário, os erros cometidos por pessoas negras ganham os holofotes muito rapidamente – e esses erros serão lembrados, escrutinados, até o fim das suas vidas.
2) Dito isso, vale olharmos com muita atenção para a famosa frase “errar é humano”. Por quais razões ela se aplica menos às pessoas negras? Quem são mesmo os “mais humanos”, nesse caso?
3) Não tenho nenhuma dúvida de que Jaqueline, Viviane e Enedina, essas mulheres que alcançaram feitos históricos (a última foi a primeira engenheira negra do Brasil), tenham cometido erros – e, enquanto andarem sobre a terra, ainda cometerão. Afinal, pessoas que fazem coisas incríveis também erram. Eu, você, as pessoas que amamos erramos. Exigir perfeição contínua de alguém é uma ação absolutamente desumanizadora. E é justamente isso o que acontece quando apagamos, por causa de uma decisão infeliz, todos os feitos de Anielle, Marcelle e Andrey.
É preciso dizer que a virulência vista nos casos da ministra, da ex-assessora e do ex-diretor está também profundamente ligada ao moralismo de ocasião e ao bolsonarismo. E tanto um quanto o outro incluem a imprensa, bancadas congressistas e a maioria da população. O primeiro é uma marca nacional e atravessa os mais diversos posicionamentos políticos, inclusive à esquerda. O segundo não vai se importar em destruir tudo aquilo que lhe pareça supostamente “comunista”, principalmente se esse “aquilo” for feito ou voltado para minorias, se não estiver relacionado somente à fé cristã ou se envolver a população LGBTQIAP+.
Todos se unem, em posicionamentos abertos ou não, conscientes ou não, em julgar muito rapidamente ou de maneira superficial os tropeços pretos – os humanos tropeços pretos. Ou seja, estamos falando de racismo, seja ele explícito ou disfarçado.
Eu concordo que Anielle, Marcelle e Andrey cometeram deslizes nos episódios aqui citados. No caso das duas primeiras, isso é evidente, uma vez que foram postagens suas que as levaram para o tribunal das redes e da mídia. No caso do ex-diretor, há de se dizer que outras pessoas poderiam ser também responsáveis pela escolha da performance batecu, mas ele assumiu sozinho todas as críticas à apresentação, ocorrida no 1º Encontro de Mobilização da Promoção da Saúde.
Esses deslizes, no entanto, não são de ordem moral: são sobretudo estratégicos. Agora, todos os olhos estarão voltados para as pessoas que estão ineditamente nos lugares de poder, como as negras e indígenas. E é preciso jamais esquecer que um candidato de extrema direita foi vencido, mas isso não significa jogo ganho. Não se trata de se curvar a esses olhares, mas sim de saber driblá-los. E quem é ou já foi periférico, quem cresceu em morro, cohab ou favela, quem é e sempre será preto, de drible entende bem. O drible é o que tantas vezes confere a vitória, a beleza, a genialidade: Marta, Pelé e Garrincha; os caboclinhos, os maracatus, a capoeira; Jaqueline, Viviane e Eneida. Aprendamos também com elas e eles.
A ministra não cometeu erro algum ao pegar um avião oficial para ir ao jogo no Morumbi – ela foi até lá para assinar um protocolo de intenções de combate ao racismo no esporte, ou seja, no exercício de seu cargo. Seu único porém foi mostrar-se torcedora do Flamengo – o que não seria nenhum grande escândalo se não houvesse milhões de escrutinadores de seus passos e cujo gozo só será atingido se a retirarem do comando da pasta.
Esses escrutinadores, reparem bem, jamais se escandalizaram com um então deputado federal – Jair Bolsonaro, em 2018 – dizendo que usava auxílio-moradia para “comer gente“. Tampouco se indignaram que o ex-presidente tenha gasto R$ 8,3 milhões em férias, boa parte delas nos momentos de picos da pandemia e com milhares de mortes por dia no país.
Para deixar ainda mais redondinho: vocês conseguem imaginar a sobrevivência política (e mesmo física, sabemos) de uma Anielle Franco, deputada federal, dizendo confortavelmente que usou recurso público para “comer gente”? Ou, sendo ela presidente, a imaginam desfilando de jet ski enquanto os hospitais públicos estavam lotados de pessoas sem oxigênio?
Fica evidente que aquela máxima hipócrita dita várias vezes na imprensa no caso da ministra – “não basta ser honesta, tem que parecer honesta” – definitivamente não vale para todo mundo. Quando uma preta revela seu amor por um time a bordo de um avião da FAB (ainda que, reiterando, isso seja sim um erro estratégico), o mundo cai. Quando um homem branco de olho clarinho diz que usa dinheiro público para foder, ele é no máximo brincalhão ou positivamente “autêntico”.
Já Marcelle, que acompanhava a ministra da Igualdade Racial, postou comentários no mínimo descuidados e injustos em seus stories, uma vez que promoveu generalizações sobre a torcida do São Paulo. Nesse caso, acompanho Ronilso Pacheco, que escreveu aqui no Intercept sobre o descompasso entre a postagem da ex-assessora e seu papel institucional.
Mas acompanho também Ronilso quando ele fala que a reação desproporcional ao caso é, dando o melhor nome à coisa, racismo (e machismo). Aqui, acrescento: considero extremamente infeliz o afastamento da doutora em Políticas Públicas em Direitos Humanos pela UFRJ, com atuação no Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da mesma universidade e experiência em ensino em comunidades carentes – ela veio de uma, Parada de Lucas, na zona norte carioca.
Um dos textos que melhor sintetizaram a sanha para atingir Anielle e afastar Marcelle foi postado pelo CEO da agência BRECHA (um hub de inteligência especializado em áreas favelizadas) e ativista Raull Santiago: “Que o dia de hoje sirva de lição para você e para todas as pessoas que vem de onde nós somos. Pois nosso sucesso é frágil e no tropeço, o açoite é direto e sem dó. Não há brecha de carinho ou cuidado. É real e intenso, como diz Racionais. Por isso que eu cuido e não descuido. Quando aperta, há dúvidas ou erro, o cerol passa violentamente e só resta os becos e vielas da favela para me acolher”.
Quando li isso, lembrei imediatamente do dia em que um ex-chefe meu, na redação do Jornal do Commercio, me chamou para conversar em sua sala. A então nova editora havia pedido minha cabeça após um breve desentendimento – ela, uma mulher branca, tinha alergia imensa ao fato de conviver com pessoas talentosas em sua equipe. Chegou a me impedir de atender telefonemas – eu era também colunista e recebia, claro, ligações a todo momento.
Meu ex-chefe me sugeriu mudar de editoria e assim manter meu emprego. Eu disse que gostava muito do que fazia, que cobria o setor em questão há anos e nenhum problema relacionado às matérias e reportagens havia surgido. Além de que, era a primeira vez que algo daquela natureza ocorria profissionalmente comigo em relação ao grupo. Ele – Ivanildo Sampaio, a quem sempre agradecerei por sua absoluta sinceridade – falou: “Se você ficar, tudo que você fizer de bom vai ficar no silêncio. Mas tudo que você fizer de errado vai sempre aparecer”.
Mudei de editoria.
Hipócritas têm horror o batecu e amor à misoginia
Andrey Roosewelt Chagas Lemos, agora ex-diretor do Departamento de Prevenção e Promoção da Saúde do Ministério da Saúde, foi o mais recente defenestrado em praça pública, após o episódio da bunda rebolativa em um evento da pasta. Várias entidades manifestaram apoio ao servidor exonerado. Quando vi as imagens, instantaneamente pensei que aquela dança sensual estaria nos noticiários, redes sociais e daria tração aos discursos dos Valadões, dos Malafaias e das Damares. Com o batecu rodando a internet, logo apareceram notícias de que Andrey foi indicado, em 2019, para a diretoria do departamento pelo governo Bolsonaro. Essa pode ser uma forma de neutralizar o mimimi da extrema direita, mas pode ser, também, uma armadilha. Vamos repercutir o mesmo pânico moral desses grupos?
De novo, o problema não está exatamente na dança ou na bunda. O problema é produzir um material que irá ser repetido nas redes a todo novo pleito, dentro do contexto hipócrita-moralista que tanto ajuda a eleger vereadores, deputados, prefeitos, governadores e presidentes completamente voltados a minar o campo das minorias.
Estamos falando de uma guerra de sentidos, uma disputa simbólica extremamente importante e da qual a sobrevivência de nossa já mal-ajambrada democracia depende. Mas é bem importante que a gente se pergunte onde estava esse pessoal moralmente ofendido quando o ex-presidente Bolsonaro dançava uma música misógina na lancha. Ou quando ele removeu do rosto de uma criança a máscara de proteção que a mãe dela tinha colocado. Era um evento lotado de apoiadores, e a pandemia estava a todo vapor.
Pesquisei em variados sites e redes sociais, dos liberais aos conservadores, e foi muito interessante observar a reação à bunda rebolativa. Muita gente escrevendo “nunca tive tanta vergonha de ser brasileiro”, uma quantidade enorme de pessoas falando em defender a família.
Entendo mesmo que a performance seja pouco apropriada para um evento do ministério. Mas admito que tenho vergonha real de ser brasileira, até hoje, quando lembro que poderíamos ter muito filho, pai, mãe, irmão, avó, amiga até agora vivos se o governo anterior tivesse aceitado a tempo as ofertas de vacina contra a covid-19. Tive vergonha de ser brasileira quando vi o espetáculo de erros que levou dezenas de pessoas a morrerem sem oxigênio em Manaus, como mandar avião com suprimentos para o lugar errado.
A quantidade de homens defendendo a família me lembrou também da enorme quantidade de pais de família, casados, que procuram historicamente prostitutas nas ruas. Aqui, o problema não são nem de longe as profissionais do sexo, que se expõem à luz do dia ou da noite (e, por isso, também sofrem uma série de violências). Como diz Renato Drummond Tapioca Neto neste artigo, “a imagem da prostituta foi construída pelos discursos masculinos médicos, na borda de instituições como a Família, o Estado e a Igreja”.
Outras pesquisas de campo mostram que a maioria dos clientes de prostitutas travestis são homens casados e de meia-idade. Há também livros narrando essa questão. São essas mulheres cisgêneras, transgêneras ou travestis que levam a culpa de macularem as famílias, enquanto seus clientes mostram-se verdadeiros santos, impolutos, à mesa de almoço dominical e nas igrejas e templos. Sempre à vontade para apontar a “imoralidade” alheia.
Me pergunto de o governo Lula ficará refém de todo estrebucho que vier dos radicais da extrema direita ou se vai saber jogar o jogo, driblando e também mantendo em seus cargos pessoas julgadas negativamente por uma parte da sociedade que está em silêncio, por exemplo, sobre a tentativa de acabarem com os casamentos homoafetivos. Marcelle Decothé não deveria ter sido demitida: um pedido de desculpas e um reposicionamento institucional teriam sido suficientes.
Me pergunto também se o governo federal vai saber lidar com nossa uma imprensa “democrática” que, há poucos dias, insistiu em repercutir não a nota do governo brasileiro condenando os ataques a Israel e defendendo a criação de um estado palestino, mas sugerindo que a gestão Lula apoia o Hamas. A jornalista Monica Waldvogel, na Globonews, achou melhor iluminar menos o claro repúdio do governo brasileiro aos ataques em Israel para dar os holofotes ao fato de 20 parlamentares do PT terem, em 2021, sido contra a classificação do Hamas como grupo terrorista.
A nota escrita logo após os ataques do Hamas, em 7 de outubro, começa dizendo: “O Governo brasileiro condena a série de bombardeios e ataques terrestres realizados hoje em Israel a partir da Faixa de Gaza, provocando a morte de ao menos 20 cidadãos israelenses, além de mais de 500 feridos. Expressa condolências aos familiares das vítimas e manifesta sua solidariedade ao povo de Israel. Ao reiterar que não há justificativa para o recurso à violência, sobretudo contra civis, o Governo brasileiro exorta todas as partes a exercerem máxima contenção a fim de evitar a escalada da situação”.
Como eu disse antes, vencermos um governo de extrema direita não significa que as coisas estão apaziguadas e as fontes nas praças estejam jorrando leite e mel. O Brasil, em grande parte, se orgulha de ser brasileiro – um brasileiro racista, machista, individualista e meritocrático. E bem hipócrita.
*
Escrevi, ao lado do pesquisador Jorge Ijuim, o artigo “Repensar a “humanidade”: limites de um conceito na imprensa e apontamentos para superar a desumanização”. Ele fala sobre a noção violenta de humanidade, algo que seria próprio de pessoas brancas, principalmente homens donos de alto capital econômico. Sim, o branco rico.
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