O contexto importa para entender o que se passa na Palestina, mais particularmente em Gaza, desde 7 de outubro. A ofensiva militar liderada pelo Hamas não surgiu como um raio no céu azul. Os guerrilheiros palestinos que improvisaram drones e outras formas de superar o bloqueio terrestre, aéreo e marítimo imposto sobre a Faixa de Gaza desde 2005 são o estouro da panela de pressão.
Importante destacar: a violência que gera mortes de civis, como na ofensiva do Hamas, não deve ser justificada sob nenhum ponto. O objetivo aqui é compreender a razão que faz os palestinos recorrerem à violência para lutar por libertação nacional. E a razão principal é a violência colonial sionista-israelense.
Este é o ataque palestino mais letal desde o início da colonização sionista-israelense da Palestina no final do século 19. Foi a primeira vez, desde 1948 (quando o estado de Israel foi criado por meio de um processo de limpeza étnica), que palestinos retomaram território expropriado pelos israelenses.
Descolonização, como muitos palestinos têm lembrado desde sábado, não é uma metáfora, não é um discurso, não é uma teoria acadêmica, mas um ato material de retomada de terra, libertação e autodeterminação. A questão é que, aos povos colonizados, como os palestinos, muitas vezes não resta outra alternativa a não ser a violência. Frantz Fanon, intelectual martinicano ativo na libertação anticolonial da Argélia contra a França nos lembra: o colonizador cede apenas com a faca no pescoço.
As descolonizações, ao longo da história, sempre envolveram, em maior ou menor grau, formas de violência por parte dos povos colonizados. Isso porque o colonialismo é a representação da violência pura. E a única linguagem que ele compreende, segundo o mesmo Fanon, é a violência. O intelectual martinicano acrescenta: a violência ainda é essencial para a humanização do colonizado. Para a sua transformação em novos homens e mulheres que deixem de ser objetificados e animalizados pelo colonizador.
Algo muito similar é dito pelo intelectual C.R.L. James sobre a libertação dos haitianos contra os mesmos franceses e por Rosemary Saiygh. Ela mostra como os refugiados palestinos que viviam sob opressão do Líbano em campos de refugiados se sentiram humanizados quando guerrilheiros palestinos pegaram em armas e assumiram o controle dos campos para lutar por sua libertação e retorno à Palestina.
O resultado do levante dos palestinos no Líbano foi o massacre de Shabra e Shatila, em 1982. A milícia libanesa formada por cristãos maronitas de direita, a Kataib, aliada de Israel na Guerra Civil do Líbano, assassinou entre 800 e 3,5 mil palestinos, incluindo idosos e crianças. O ataque contou com apoio das tropas israelenses que ocupavam Beirute sob a anuência do então ministro da Defesa de Israel, Ariel Sharon.
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Esse foi o mais famoso de uma série de massacres que os israelenses provocaram contra os palestinos. Essa é a realidade da Palestina desde a Nakba, que é o termo em árabe para catástrofe, que os palestinos utilizam para designar a tragédia que o seu povo sofreu no processo de criação de Israel e da Guerra Árabe-Israelense de 1948-1989. Isso porque, além da expulsão em massa e da criação da diáspora palestina (são aproximadamente 7 milhões de refugiados espalhados pelo mundo), aconteceram diversos massacres contra a população nativa.
O maior deles ocorreu no vilarejo de Dawayima, perto de Hebron, quando 145 palestinos foram executados por militares israelenses, em 29 de outubro de 1948. Mas o massacre mais famoso aconteceu no vilarejo de Deir Yassin, próximo a Jerusalém. Na ocasião, integrantes das milícias sionistas de direita Gang Stern e Irgun mataram 110 palestinos – incluindo 30 crianças – depois que a liderança palestina do vilarejo fez um acordo de não agressão com a principal milícia sionista, a Haganah.
O ataque provocou pânico nos palestinos dos vilarejos do entorno e causou a fuga de milhares durante as operações israelenses de conquista de Jerusalém. Os massacres contribuíram decisivamente para o que o historiador israelense Ilan Pappe chamou de processo de “limpeza étnica” na Palestina.
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Massacres de Israel contra palestinos se acumulam
Listo aqui os massacres cometidos por Israel contra os palestinos antes do conflito iniciado este mês. O compilado foi feito pelo historiador Nur Masalha em seu livro “The Palestine Nakba: Decolonising History, Narrating the Subaltern, Reclaiming Memory” [“A Nakba palestina: descolonizando a história, narrando o subalterno e reivindicando a memória”] e atualizado por mim:
• Qibya, em outubro de 1953: tropas israelenses da Unidade 101 atacaram o vilarejo de Qibya, na Cisjordânia, matando 69 palestinos. Muitos se escondiam em suas casas quando bombas explodiram as residências. Foram destruídas 45 casas, uma escola e uma mesquita.
• Kafr Qasim, em outubro de 1956: a polícia de fronteira israelense massacrou 48 cidadãos palestinos de Israel, incluindo seis mulheres e 23 crianças.
• Vilarejos na Galileia, em março de 1976: seis cidadãos palestinos de Israel foram mortos, 100 foram feridos e outros 100 foram presos em protestos contra a expropriação de terras na Galileia pelo estado de Israel.
• Hebron, em fevereiro de 1994: foram massacrados 29 muçulmanos dentro de uma mesquita em Hebron pelo colono fundamentalista judeu Baruch Goldstein.
• Campo de refugiados de Jenin, em abril de 2002: o Exército de Israel atacou o campo usando bulldozers, tanques e helicópteros. Estima-se que morreram centenas de homens, mulheres e crianças, embora não se saiba o número exato,pois muitos foram enterrados sob os escombros.
• Intifadas em 1987, 1993, 2000 e 2002: milhares foram mortos e feridos pelo Exército de Israel.
• Gaza, em dezembro de 2008: 1.417 palestinos foram mortos, sendo mais de 900 deles civis.
• Gaza, em novembro de 2012: 174 palestinos foram mortos e centenas ficaram feridos em uma ação israelense para assassinar o dirigente militar do Hamas, Ahmad Jabari.
• Gaza, em julho e agosto de 2014: o sequestro de três jovens israelenses pelo Hamas resultou em uma guerra de sete semanas em que 2,1 mil palestinos e 73 israelenses foram mortos, incluindo seis civis de Israel.
• Gaza, em março de 2018: milhares de palestinos protestaram próximos à cerca em torno de Gaza na Marcha do Retorno. As tropas israelenses abriram fogo e mataram 170 palestinos ao longo de vários meses de protesto, resultando em um novo confronto entre Hamas e Israel.
• Gaza, em maio de 2021: depois de meses de tensão durante o Ramadan, centenas de palestinos foram feridos em um dia de reza na mesquita de Al-Aqsa em Jerusalém. O Hamas demandou a desocupação israelense. Em um confronto que durou 11 dias, 260 palestinos e 11 israelenses foram assassinados em Gaza.
O resultado de décadas de colonialismo israelense é a formação de um apartheid em todo o território da Palestina. Dentro de Israel, existem os palestinos que sobreviveram à Nakba e que compõe cerca de 20% da população israelense como cidadãos de terceira classe. Eles são uma minoria marginalizada, mas com direitos civis.
Nos territórios palestinos ocupados da Cisjordânia e da Faixa de Gaza desde 1967, Israel é soberano e não oferece direito algum aos palestinos. A Autoridade Nacional Palestina, estabelecida nos Acordos de Oslo, tem o poder de uma prefeitura: assegura serviços como educação, saúde, transporte, etc. Mas o poder de controlar fronteiras, finanças, comércio, entre outros, pertence exclusivamente ao estado de Israel, o que limita severamente a autodeterminação palestina.
Anos de cooperação de segurança e reza à cartilha neoliberal de desenvolvimento pela ANP não resultaram na criação de um estado da Palestina. A moderação do grupo dirigente da ANP, o Fatah, e a negociação diplomática trouxe apenas mais colonização para os palestinos. Essa é a razão de o Hamas ainda optar pela resistência violenta, como fizeram diferentes grupos guerrilheiros palestinos durante a Guerra Fria.
Em Gaza, é onde os palestinos têm a vida mais restrita. Onde ninguém entra nem sai. Onde Israel controla a entrada de alimentos calculando a quantidade de calorias mínimas para sobrevivência dos 2 milhões de palestinos. Onde bombas caem do céu e destroem prédios inteiros. Onde a ONU considera a vida “invivível”. Uma distopia na realidade. É nesse ambiente que a radicalidade do Hamas ferve e explode.
O que acontece agora em Gaza é uma continuação do que ocorre desde 1948. É por isso que os palestinos dizem viver uma “Nakba contínua” , isto é, uma catástrofe diária. Os massacres se repetem, as expulsões se repetem, as demolições de casas e vilarejos se repetem. A negação da autodeterminação palestina por meio da ocupação militar na Cisjordânia e na Faixa de Gaza criou uma panela de pressão de insatisfação e ressentimento entre os palestinos. No sábado, ela estourou.
Repito: a violência do Hamas é fruto do colonialismo israelense, que segue a lógica dos colonialismos por povoamento, segundo o teórico australiano Patrick Wolfe. Enquanto houver terra indígena, os colonos buscarão expropriá-la. Enquanto houver resistência indígena, os colonos buscarão silenciá-la. A ofensiva dos ruralistas brasileiros sobre as terras indígenas na proposta do Marco Temporal revela como essa lógica vai do Brasil a Israel, passando também por países como EUA, Canadá, África do Sul, Austrália e Nova Zelândia. A eventual reação violenta de indígenas contra o roubo de terras por grileiros operaria na mesma racionalidade observada em Gaza.
Importante ressaltar que os palestinos têm encontrado diferentes formas de resistir ao longo da história além do levante armado. Manifestações em massa, boicotes e auto-organização são algumas das formas utilizadas para lutar por sua libertação nacional. E, embora a luta armada possa ser importante para fazer os palestinos serem ouvidos globalmente e interromper a normalização da sua ausência de liberdade, ela nunca trouxe vitórias significativas para a conquista do seu estado. O aumento da opressão após a Segunda Intifada e o fim das negociações diplomáticas entre Israel e palestinos demonstram o fracasso da luta armada.
Será somente com o combate à ordem internacional liderada pelos EUA, que permite que esse regime de apartheid colonial se mantenha de pé, que virá a libertação da Palestina. Essa é a importância de trazer à tona a lógica colonial que estrutura a violência opressora contra os povos indígenas na Palestina e em diferentes localidades do mundo, para construir novas alianças internacionais de solidariedade capazes de mover a descolonização.
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