Na sexta-feira, 6, a Soluções Serviços Terceirizados venceu, sem encarar nenhum concorrente, o leilão para construir e administrar um presídio em Erechim, no Rio Grande do Sul — a empresa depois seria desclassificada, embora ainda possa recorrer da decisão. Um ano antes, em setembro de 2022, ainda no governo Jair Bolsonaro, ninguém havia se interessado em concorrer àquela licitação. O governo Lula, então, aumentou os benefícios para ampliar a privatização de presídios. No fim de abril, o vice-presidente Geraldo Alckmin assinou um decreto que classifica o sistema prisional entre os “projetos de investimento considerados como prioritários na área de infraestrutura ou de produção econômica intensiva em pesquisa, desenvolvimento e inovação”.
“O governo está abrindo mão de arrecadação. Está tirando dinheiro de outras políticas públicas para entregar na mão dessas empresas. Com um ônus: o governo paga três vezes mais por cada preso custodiado em um presídio privado do que o valor gasto no sistema prisional público”, diz o defensor público do estado de São Paulo e diretor do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, o IBCCRIM.
Essa é a segunda experiência de parceria público-privada no sistema prisional brasileiro. A primeira delas foi inaugurada em 2013, na cidade de Ribeirão das Neves, interior de Minas Gerais. Nele, quem cuida dos presos são monitores contratados pela própria empresa – e não policiais penais, como no sistema público. E isso tem gerado problemas. Em julho deste ano, um homem morreu dentro do presídio mineiro sem receber atendimento médico. No ano passado, a família de outro preso morto denunciou o complexo penitenciário pelo mesmo motivo: omissão de socorro. Há ainda denúncias de tortura.
“Não vale a pena para o empresário investir numa melhoria. É uma lógica completamente oposta do sistema público, cuja gestão se mostra efetiva quando gasta todo o orçamento disponível para melhoria da vida da população”, aponta Shimizu.
Em setembro, o IBCCRIM e outras 86 entidades enviaram ao governo uma nota técnica para impedir a privatização de novos presídios. De acordo com eles, a principal consequência dessa política é o encarceramento em massa, uma vez que quanto mais presos, maior o lucro de empresários e acionistas. E vale lembrar: o Brasil já é o terceiro país com a maior população carcerária do mundo.
Em entrevista, Shimizu explica quais os problemas da privatização dos presídios e relata as experiências anteriores já praticadas em outros lugares do planeta. Leia abaixo os principais trechos.
Intercept – Como o empresário recebe o retorno do investimento no sistema prisional privado?
Bruno Shimizu – Essa pergunta é essencial para entender a diferença geral sobre privatizações e a privatização do sistema prisional. Privatização pode ser uma concessão, cogestão, terceirização ou uma parceria público-privada, a PPP. E a gente acaba pensando nas privatizações mais comuns, como a das rodovias, que se auto remuneram. O usuário passa pelo pedágio e a partir dessa tarifa o empresário recebe seu dinheiro. Isso não acontece no sistema prisional, porque ele não é exatamente um serviço, muito menos um serviço remunerado. Na privatização das unidades prisionais, o estado efetivamente aporta recurso na mão do empresário. Por isso, comparamos o custo em uma unidade pública e em uma particular . O estado gasta até três vezes mais por preso em um presídio privado do que em um público. Então, na verdade, a privatização significa um aumento de custo.
O que atrai efetivamente os empresários para esse negócio são os contratos primários do poder público que garantem um repasse por cabeça. Normalmente esses contratos preveem que essas unidades têm de ter um mínimo de presos, normalmente algo em torno de 90% da sua capacidade. Ou seja, precisam funcionar quase no seu limite de lotação.
‘O estado gasta até três vezes mais por preso em um presídio privado do que em um público. Então, na verdade, a privatização significa um aumento de custo.’
Então, além dos incentivos fiscais, do aporte de recursos por parte do BNDES para a construção dessas suas unidades, o estado ainda se compromete a remunerar e garantir o lucro desse empresário. Em Erechim, por exemplo, o contrato tem vigência de 30 anos.
Já existiam presídios com algum modelo de privatização no Brasil antes do decreto deste ano. O que muda a partir de agora?
Em 2016, o governo Temer aprovou uma lei e publicou um decreto que trazia essa possibilidade de isenção fiscal dentro do programa de parceria de investimentos, que é um estímulo às PPPs. Elas definiram o rol de atividades prioritárias. A partir disso, a lei autorizou a emissão de debêntures incentivadas, que são valores em títulos negociados no mercado de capitais por empresas para colher investimentos para determinado aporte de capitais. Então, para construírem o presídio, essas empresas emitem debêntures, vendem no mercado de capitais, captam recursos dentro da bolsa de valores, e com esse dinheiro constroem as unidades. Mas por serem incentivadas, há a possibilidade que sejam emitidas com isenção ou redução fiscal muito grande. Pessoas físicas que fazem operações com debêntures incentivadas não pagam imposto de renda nesta transação, por exemplo. No caso de pessoas jurídicas, o imposto de renda cai para 15% – um imposto muito menor do que outras atividades.
Com o decreto deste ano, o sistema penitenciário passa a ser passível de financiamento por meio dessas debêntures. Ou seja, o governo está abrindo mão de arrecadação. Está tirando dinheiro de outras políticas públicas para entregar na mão dessas empresas e dos super ricos que negociam essas debêntures incentivadas. O governo está ajudando essas empresas a lucrarem com a construção de presídios privados.
É um incentivo gigantesco, não dá nem para calcular de quanto o governo está abrindo mão. E tem o BNDES, que não é uma política nova, mas é uma escolha política determinar o que ele vai financiar ou não. Em Erechim, são R$ 150 milhões de financiamento. É uma política da gestão anterior que foi mantida pela atual. Isso vai ser pago pelos cofres públicos. Então não é simplesmente construir uma unidade prisional por meio de licitação. Se fosse para melhorar a qualidade de vida, a garantia de direitos da população prisional ainda seria justificado, mas não é esse o caso. As experiências de privatização de unidades prisionais do Brasil são tão ruins ou ainda piores do que as públicas.
Quais são as experiências dos presídios privados no Brasil?
No Complexo Penitenciário Anísio Jobim, o Compaj, no Amazonas, houve dois massacres, em 2017 e 2019. Em 2017, mais de 50 presos mortos. Em 2019, mais de 10 mortos. Lá sempre foi gerido por uma empresa privada, a Umanizzare, que seguiu na gestão após o primeiro massacre. É, na verdade, um modelo de cogestão. O prédio e a infraestrutura são públicos, mas quem faz a gestão dentro da unidade é uma empresa privada contratada. É um tipo de privatização ainda menos agressiva, ainda menos completa do que o governo federal faz agora com as parcerias público-privada. Pelo menos o prédio é público pode ser tomado pelo governo se houver algum problema. Depois do segundo massacre, a Umanizzare deixou a gestão do presídio.
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Um prédio construído pela própria empresa torna muito mais difícil esse processo, mesmo se houver problemas. Existem muitas unidades no Brasil que são geridas por empresas privadas. Mas modelo de parceria público-privada só em Ribeirão das Neves. Quando a gente pensa na história, desde que foi construído e inaugurado, em janeiro de 2013, na época ele foi vendido como uma janela de visibilidade positiva prisional, onde o preso ia trabalhar, estudar.
Na época, divulgavam como um presídio bom, que garantiria serviços públicos, ressocialização. E não foi isso que aconteceu. Em 2017, o Conselho Nacional de Justiça fez uma inspeção no complexo de Ribeirão das Neves e constatou o mesmo padrão de violações aos direitos da população em geral. O relatório fala que não há nenhuma preocupação com o aspecto humano das pessoas que estão lá, nenhum plano efetivamente de garantia de direitos sociais, de empregabilidade, um atendimento à saúde bastante deficitário. E isso, vamos lembrar, custando três vezes mais do que seria gasto pelo estado numa unidade prisional pública.
Não vale a pena para o empresário investir numa melhoria. É uma lógica completamente oposta do sistema público, cuja gestão se mostra efetiva quando gasta todo o orçamento disponível para melhoria da vida da população. Na gestão privada, quanto maior o corte de gastos melhor.
Se não há nenhum benefício para o estado, como justificar essas privatizações? A quem interessa?
Não é ao estado que interessa a privatização dos presídios. Interessa apenas como plataforma política. O interesse é das empresas que atuam no ramo de infraestrutura, que se habilitam na construção dos presídios. Em São Paulo as empresas envolvidas com a construção do metrô já mostraram interesse. E essas empresas têm um lobby muito forte. Quando o governo federal, seja o executivo ou legislativo, começa a defender a privatização dos presídios, o que tem por trás disso efetivamente é um interesse econômico muito grande do setor privado.
O caso dos Estados Unidos nos ajuda a pensar sobre o assunto. Hoje, a política oficial deles é de revisão dessa escolha política. Na primeira semana que Joe Biden assumiu a presidência ele editou um ato normativo proibindo novas privatizações no sistema federal. Eles já concluíram que a privatização dos presídios é uma péssima ideia, porque aumentou o encarceramento por lá. A causa da superpopulação carcerária vem dos presídios privados. Os Estados Unidos chegaram a mais de 2 milhões de presos. Houve um lobby muito forte no Congresso e no judiciário por parte dessas empresas. E nos Estados Unidos isso fica ainda mais claro porque os juízes são eleitos. Então esses mesmos empresários, para os quais quanto mais presos, maior o lucro, acabam também investindo em campanhas de juízes que prometem ser mais encarceradores e punitivistas. Existem casos de campanhas de juízes financiados por essas empresas americanas que se comprometeram a mandar adolescentes para a unidade de internação do sistema penitenciário mesmo por crimes banais. Essa é a contrapartida pelo investimento na candidatura deles.
O governo está ajudando essas empresas a lucrarem com a construção de presídios privados.
Então, na verdade, não é um interesse do estado. E isso está bem reconhecido no decreto publicado neste ano. Esse novo decreto traz uma lógica de atividades econômicas que são consideradas prioritárias pelo estado. Basicamente o que esse decreto quer não é a melhoria das condições dos presídios, não é uma política de desencarceramento racional, e sim a criação de uma nova atividade econômica que poderia ter resultados positivos para empresários, sobretudo dessas grandes empresas de infraestrutura.
Não causa estranhamento um decreto deste ser publicado durante um governo mais progressista do que o anterior? Por que o ex-presidente Bolsonaro não conseguiu colocar isso em pauta?
Não é uma coisa nova. Desde o governo Dilma já tinham colocado um projeto de lei no Senado para regulamentar e autorizar a parceria público privada no sistema prisional. Na época, foi colocado na agenda Brasil, com aprovação a toque de caixa, fazia parte do PAC. Só que não foi aprovado, acabou sendo engavetado no próprio Senado. Então, hoje a gente não tem autorização legal para a privatização prisional. Pelo contrário, a lei de execução penal permite a privatização apenas em serviços que não sejam essenciais, como lavanderia, limpeza de áreas externas, mas privatizar a movimentação de presos, por exemplo, é proibido. Os governos posteriores, seja o Temer ou Bolsonaro, tinham um discurso mais privatista, e tentaram, principalmente nos últimos quatro anos, privatizar as unidades prisionais. É a segunda vez que tentam realizar esse leilão para a construção da PPP no Rio Grande do Sul. No ano passado, ele foi considerado deserto porque não havia candidatos habilitados. Agora tentam fazer mais uma vez, com benefícios e isenções fiscais justamente para atrair essas empresas.
As privatizações de Erechim e a outra prevista em Blumenau, Santa Catarina, constavam na carteira do BNDES desde o governo anterior. Mas não foi revisto. Ou seja, existe uma continuidade entre o governo Bolsonaro e Lula quando avaliamos a estratégia de privatização dos presídios. Isso é preocupante, em relação a determinadas pautas parece que não há diferença. Isso realmente pega todo mundo de surpresa. O governo federal anterior tentou tirar o papel e não conseguiu, muito provavelmente por falta de competência e habilidade política. E esse governo com mais habilidade política conseguiu fazer passar.
Nos preocupa ainda que os incentivos recentes à privatização parecem não terem sido discutidos pelos ministérios que efetivamente tratam do sistema prisional. Esse decreto foi emitido e assinado sem nenhuma manifestação técnica do Ministério da Justiça, da secretaria de políticas penais, do Ministério de Direitos Humanos, do Ministério de Igualdade Racial, do Ministério das Mulheres. Todos esses ministérios são vinculados de forma completamente intrínseca à questão do encarceramento. A gente sabe que quase 70% das pessoas presas são negras. Então não pensar em um recorte racial, não colher parecer sequer do Ministério da Justiça, é bastante preocupante. Ou aponta para uma desorganização difícil de aceitar em um governo federal, ou para uma má intenção de se fazer passar a boiada, de privatizar o sistema prisional sem que isso seja pautado. Por isso, essas 87 organizações escreveram a nota técnica. Para não dizerem que passou sem ninguém perceber.
Além do alto custo desses presídios aos cofres públicos, quais outros problemas a privatização traz?
Para começar, colocar funcionários privados para fazer o papel da polícia já é inconstitucional. Cada contrato tem suas especificidades. O de Erechim, por exemplo, prevê a privatização de atividades de transferência e movimentação de presos e apuração de faltas disciplinares. Tudo isso é poder de polícia. Um funcionário pega e algema um preso, leva ao Fórum ou para atendimento médico. Toda essa movimentação, além da revista dentro dos pavilhões das células, tudo é poder de polícia. E sem fiscalização.
Mas não é só isso. A privatização dos outros serviços prisionais facilita a prática de tortura, de maus tratos. Porque esses contratos prevêem, inclusive, a privatização da assistência jurídica. Ou seja, a defensoria pública, que tem a prerrogativa de ingresso em todas as áreas de confinamento, autonomia administrativa orçamentária, que não está submetida ao diretor do presídio, é substituída por advogados contratados pela empresa. Se houver sinais de tortura, a defensoria vai denunciar e instaurar procedimento de apuração. Um advogado contratado privado não vai processar a empresa por maus tratos, então é um jeito de você impedir uma responsabilização jurídica, de desmontar a defensoria.
E isso se estende ainda para outros profissionais. Na área da saúde, por exemplo, se eles constatarem sinais compatíveis com agressão, o que vão fazer? Denunciar a própria empresa e perder o emprego? Isso vale para os assistentes sociais e psicólogos contratados pela empresa. Todas as formas de denunciar e entender o que acontece dentro de um presídio são solapadas em unidades privatizadas. Todos os profissionais estão submetidos a um empresário.
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