Os pacientes de um otorrinolaringologista de Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul, provavelmente nem desconfiam que ele é um empreendedor no campo da inteligência cibernética. Desde 2012, o médico é sócio-administrador da Isciber Produtos e Serviços em Tecnologia da Informação, empresa fundada junto com seu filho Bruno Carneiro de Albuquerque, agente de inteligência que ocupou alto escalão da Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, durante o governo de Jair Bolsonaro.
As informações foram obtidas inicialmente por meio de membros da Abin – e, depois, confirmadas pelo Intercept com dados disponíveis nos sistemas da Receita Federal. Os servidores da Abin afirmam que Bruno é um dos operadores das ilegalidades cometidas pelo governo Bolsonaro no comando da Abin, por meio de softwares espiões como o First Mile e o Augury. Ele não está, no entanto, na lista dos agentes presos na última sexta-feira, 20 de outubro.
Em abril, em uma chamada com o Intercept em que admitiu a existência da Isciber, Bruno repetiu uma das fake news preferidas do bolsonarismo: “O Partido dos Trabalhadores é um braço político do PCC”.
A engenharia de Bruno, que colocou o pai como sócio-administrador da empresa, faz com que ele escape da determinação da Lei 8.112/90, que define que o funcionário público está proibido de “participar de gerência ou administração de sociedade privada” – na prática, o servidor pode ser sócio, mas não sócio-administrador.
Questionado sobre um possível conflito de interesses na Isciber e sobre a falta de relação do pai com o tema da segurança cibernética, o agente respondeu: “Um médico não pode ter um McDonald’s?”. Bruno ainda admitiu que o caso chegou a ser apurado internamente na agência: “Não virou nem processo administrativo. Arquivaram por falta de indícios, obviamente”. A corregedoria da agência é chefiada por uma indicada da gestão bolsonarista.
De acordo com uma das fontes ouvidas pelo Intercept, o ex-diretor-geral Victor Felismino e a corregedora-geral Lidiane Santos, ambos nomeados na reta final do governo Bolsonaro, arquivaram uma sequência de denúncias em investigação contra o servidor, o que uma fonte ouvida pelo Intercept classifica como uma proteção ao operador.
Procurada, a agência não forneceu as informações solicitadas pela reportagem sobre a apuração do caso e os procedimentos em situações como essa. Em nota, Abin respondeu apenas que “o servidor está de licença de interesses particulares, sem remuneração, desde 15 de fevereiro de 2023”.
Segundo esse mesmo agente, Bruno fez diversos trabalhos para a Abin Paralela, tanto na gestão Ramagem quanto na de Victor Felismino, o que incluiria espionagem de jornalistas, políticos e autoridades públicas, “razão pela qual ele pode complicar muita gente”.
Depois do início da apuração desta reportagem, o site da empresa de Bruno e seu pai foi tirado do ar. No “quem somos”, a página exibia o seguinte texto: “O Instituto de Segurança Cibernética, o Isciber, é uma empresa brasileira de segurança e resposta a incidentes cibernéticos que nasceu da experiência em operações de contrainteligência cibernética para a proteção de infraestruturas críticas”.
Apesar de estar sediada no escritório médico do pai do espião, em Campo Grande, os dados de contato do site da empresa tinham o DDD 61, de Brasília, local onde Bruno reside e trabalha. No canto superior direito do site, havia um ícone do WhatsApp. Foi clicando nele que consegui o número pessoal do servidor e o contatei.
Mesmo sem ter contratos com a própria Abin, com o Exército ou mesmo com governos estaduais ou municipais, os agentes acusam Bruno de oferecer os serviços da empresa à administração pública – ainda que o foco da Isciber seja fornecer soluções para empresas privadas se protegerem de ataques cibernéticos e outras ameaças. O Intercept, porém, não localizou registros de que a Isciber tenha participado de licitações públicas.
Ao Intercept, Bruno Albuquerque afirmou, em resposta enviada por seu advogado após a publicação da reportagem, que nunca ocupou cargos de alto escalão na Abin, e que seu pai nunca esteve sob investigação. Albuquerque também afirmou que participou de uma “espécie de sindicância” na Abin que concluiu que ele não teve envolvimento com atividades de espionagem.
O advogado também disse que a Isciber “nunca esteve sob suspeita” e que Bruno Albuquerque não desenvolveu atividades de direção – apenas apoiava e tomava “decisões técnicas” em horários que não convergissem “com as atividades que desenvolvia na Abin”. “O Sr. Bruno foi apenas consultor técnico, realizando serviços de suporte tecnológico e não de coleta de informação”. Leia aqui a nota completa enviada pela defesa de Bruno Albuquerque.
Agente da Abin preso usou mesma estratégia
O caso se assemelha a outro revelado recentemente, após a Polícia Federal deflagrar uma operação contra a espionagem ilegal da Abin no governo Bolsonaro. Uma investigação da PF apontou que o pai de um oficial da Abin chamado Eduardo Arthur Izycki é o dono de uma empresa de segurança cibernética chamada Icciber Segurança Cibernética – nome incrivelmente semelhante ao da Isciber, da família Albuquerque. E que ele teria oferecido serviços ao Exército Brasileiro.
Nesse caso, Eduardo foi investigado internamente pela Abin devido à empresa de seu pai e teria chantageado colegas para evitar ser demitido. O oficial da Abin teria tentado reverter sua situação dentro da agência ameaçando expor o esquema de espionagem ilegal dos celulares de autoridades por meio do programa First Mile, de acordo com a investigação da Polícia Federal.
Atualização: 26 de outubro de 2023, 8h18
O texto foi atualizado para incluir o posicionamento da Abin.
30 de outubro de 2023, 10h34
Outra atualização incluiu a resposta enviada pelo advogado de Bruno Albuquerque.
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