Nada assusta mais Israel do que os jovens negros americanos. Mesmo com a maioria do Congresso dos Estados Unidos ao seu lado, o lobby israelense treme na base com o Black Lives Matter, movimento que surgiu após o assassinato de Michael Brown pelo policial Darren Wilson em 2014 e vem escancarando a violência racista – e letal – das polícias dos EUA. Mas por quê?
Para começar, o assassinato de Brown aconteceu no mesmo verão que Israel apertou o cerco em Gaza, criando uma solidariedade online entre o Black Lives Matter e o BDS, movimento pacífico pró-Palestina que pede, entre outras medidas, o boicote a produtos israelenses.
O lobby, é claro, não aceitou essa aproximação quieto. Após o Black Lives Matter declarar publicamente apoio ao BDS, um evento de arrecadação de fundos para a causa negra foi cancelado por pressão do The Israel Project, uma das dezenas de grupos que compõem o lobby nos EUA.
E mais: Clarence V. Jones, autor do famoso discurso de Martin Luther King, “Eu tenho um sonho”, foi usado como arma. Jones era “amigo íntimo” de Andy David, cônsul-geral de Israel em São Francisco. E, por conta dessa relação, publicou três artigos na imprensa afirmando que King se reviraria no túmulo se visse as tendências anti-Israel do Black Lives Matter.
É o que confessou Andy David, então cônsul-geral de Israel em São Francisco. Sem saber que estava sendo gravado, David aparece no quarto e último episódio da série documental “The Lobby – USA”, da Al Jazeera.
Criado a partir das descobertas de James Kleinfeld, repórter que se infiltrou no coração do lobby israelense nos EUA, o documentário acabou censurado por causa da pressão do lobby de Israel nos EUA, que tem ligações diretas com o governo israelense. Agora, ele é exibido pela primeira vez em português pelo Intercept.
Angariar o apoio de jovens negros americanos é tão importante para Israel que diplomatas e membros do lobby vêm tentando até cooptar sulafricanos para rebater o argumento de que o país criou um estado de apartheid na Palestina.
O esforço era para contrabalançar o fato de que um dos mais lendários e respeitados combatentes do apartheid sul-africano, o arcebispo Desmond Tutu, esteve entre os primeiros e mais expressivos defensores do movimento BDS.
A estratégia é chamada pelo The Israel Project de “Pare de roubar meu apartheid”. E o plano é “alimentar a mídia americana com artigos escritos por sul-africanos negros, alegando que o BDS distorceu sua história”.
‘Quando há um ataque terrorista em Israel, nosso pessoal chega antes da imprensa. […] Fazemos seu trabalho por eles’.
Com isso, mina-se o principal argumento do BDS e do Black Lives Matter contra Israel: o de que os palestinos vivem uma situação semelhante à dos negros da África do Sul antes do anos 1990. E tenta-se impedir que o movimento de boicote alcance as proporções que tomou no país africano, onde fez o regime ruir.
Para isso, o lobby está levando líderes negros americanos e sul-africanos que lutaram contra o apatheid em seu país a viagens para Israel com todas as despesas pagas – como costuma fazer com políticos americanos para garantir seu apoio no Congresso, vale lembrar.
“Imagine se o regime de apartheid de De Klerk [ex-presidente da África do Sul] pudesse ter um lobby atuante nos Estados Unidos e que fosse crime apoiar esse boicote. Só imagine”, argumentou Keith Weissman, que atuou como analista no Comitê Americano de Assuntos Públicos de Israel, chamado de AIPAC, entre 1993 e 2004. Na verdade, Ronald Reagan foi um forte aliado do regime, que ainda assim entrou em colapso.
Lobby de Israel força cobertura ruim da Palestina na imprensa
“Uma das razões pelas quais Israel é coberta de forma desproporcional é que a esmagadora maioria dos jornalistas que cobrem o Oriente Médio estão sediados em Jerusalém”, afirmou Eric Gallagher.
A localização, no entanto, não é tudo. O lobby de Israel sabe muito bem da pressão sobre os repórteres para que entreguem material a seus chefes imediatamente após um acontecimento digno de notícia. E é dela que se aproveitam para se apresentarem como fontes quando agem, na verdade, como produtores de conteúdo.
“Quando há um ataque terrorista em Israel, nosso pessoal chega ao local geralmente antes da imprensa. […] Eles tiram fotos e colhem testemunhos. Até o momento em que a imprensa chega lá, nós fazemos seu trabalho por eles”, confidenciou Eric Gallagher, então diretor de desenvolvimento do The Israel Project. “Eles precisam de uma frase, de informações, de uma foto ou de um clipe de vídeo. Nós simplesmente entregamos a eles a loja de serviços completos”.
Para fazer valer seu lado, os lobistas pró-Israel recorrem há tempos às fake news, fazendo vídeos antigos se passarem por atuais e tirando-os de contexto, como mostra o documentário. O material é diluído em seus canais com a publicação de conteúdos variados, como vídeos de gatinhos, a fim de manter um público fiel e mais amplo.
Além disso, eles exercem sua própria pressão sobre os veículos de mídia.
Quando fontes do Hamas são ouvidas, por exemplo, as redações exigirão que os repórteres ouçam também fontes israelenses para equilibrar os relatos. Quando as fontes principais são de Israel, contudo, os chefes não exigem que o Hamas ou os palestinos sejam ouvidos.
“O The Israel Project é poderoso e vai fazer com que os jornalistas prestem contas”, resumiu o jornalista Jim Clancy, que começou a cobrir o Oriente Médio nos anos 1980. Segundo ele, acontece um verdadeiro assédio nas redações: “Se elas tivessem jornalistas palestinos que conhecessem os meandros da Autoridade Palestina, por exemplo, diriam a elas descaradamente para se livrarem deles por não serem jornalistas de confiança”.
Apesar de todo o esforço e o dinheiro colocados nessas operações, representantes do lobby reconhecem que estão perdendo a guerra de narrativas nos EUA. “A situação está ruim com os millenials e os estudantes. Está chegando ao ponto de a maioria ser mais favorável aos palestinos do que aos israelenses”, admitiu David Brog, diretor executivo da Task Force Maccabee, que combate o BDS nos campi americanos.
Diretora geral do Ministério de Assuntos Estratégicos de Israel, Sima Vaknin-Gil também disse que pais de jovens judeus a procuram para conversar sobre a dificuldade que passam com os filhos: “Eles não reconhecem o estado de Israel e não nos veem como uma entidade a ser admirada”.
Não são impressões isoladas. Quando a AIPAC realizou sua conferência anual em 2017, os primeiros a chegarem aos protestos contra a organização foram os judeus. O rabino Joseph Berman, parte do Jewish Voice for Peace [Voz Judaica pela Paz], grupo antissionista sediado em Washington, é categórico: “A AIPAC não representa a comunidade judaica americana. A maioria dos judeus americanos se opõe às políticas do estado de Israel”.
Reassista ao terceiro episódio:
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