Em 27 de outubro, o prefeito de São Paulo Ricardo Nunes marcou presença no lançamento do Edifício Renata Sampaio, recém-renovado por meio do programa municipal: o Requalifica Centro, que dá incentivos fiscais para o retrofit, um tipo de transformação de edifícios. Lá, ele anunciou uma nova política de subvenção direta para essas mudanças. Nunes vai alocar R$ 1 bilhão para o mercado imobiliário modernizar edifícios na região central da cidade – e eu vou te explicar por que algumas facetas desses programas são simplesmente escandalosas.
O anúncio da nova política já começou mal. O prefeito assinou o decreto estipulando que o município destinará recursos para a subvenção dos retrofits ao mesmo tempo que unidades do Edifício Renata Sampaio eram disponibilizadas para locação. Em outras palavras, uma política voltada ao setor imobiliário foi divulgada justamente em um evento fechado de players do mercado.
A requalificação do Renata Sampaio é um projeto da Planta.inc, especializada em retrofits, com projeto do Metro Arquitetos e com operacionalização pela Tabas, start-up de “aluguel flexível”, comprada ao final do ano passado pela norte-americana Blueground. As unidades retrofitadas não são vendidas, mas alugadas por temporada ou em contratos de locação tradicionais.
Antes de continuarmos, vale explicar o que é retrofit. Trata-se de um processo em que a estrutura física de uma edificação é renovada, atualizada ou modificada para atender parâmetros construtivos, ambientais, de desempenho e funcionalidade contemporâneos, sem a necessidade de construir do zero. Geralmente, retrofits envolvem mudanças de uso: um prédio comercial ou administrativo é adaptado para se tornar residencial, por exemplo.
Toda cidade precisa de uma boa política para requalificar seus imóveis ociosos. É um consenso que o retrofit é um ótimo caminho e deve se tornar prioridade nas agendas municipais. Mas isso não significa que qualquer desenho de política pública voltada ao retrofit seja adequado ou mesmo desejável. Uma política sem base em evidências e desalinhada à solução de problemas das nossas cidades, tão desiguais, pode cristalizar mais desigualdades urbanas – e com dinheiro público.
Foi em dezembro de 2022 que a prefeitura anunciou uma consulta pública para “ativação de imóveis” com subvenção direta de dinheiro público. A proposta era destinar recursos públicos, sem reembolso, para incentivar o aproveitamento de imóveis ociosos no centro da cidade, tendo o retrofit como uma das possibilidades de repasse de recursos. Mas a consolidação da política só viria na festa de lançamento do Edifício Renata Sampaio.
Políticas públicas como essa não poderiam ser anunciadas durante um evento fechado de comercialização de empresas interessadas e que potencialmente se beneficiarão da subvenção. Vou dizer o óbvio: os anúncios devem ser feitos em arenas públicas, com chamamento amplo ao mercado.
Gestores sérios tomam todos os cuidados para não aparentar qualquer favorecimento de agentes privados – e isso envolve transparência e tratamento igualitário de todos os players. Na foto em destaque na matéria do Metrópoles sobre o lançamento do Edifício Renata Sampaio, é possível ver Ricardo Nunes ao lado do fundador da Planta.inc e diante de taças de vinho e melancias espetadas com antúrios, parte da decoração.
A ida do prefeito não é um problema em si. Faz sentido que o chefe do Executivo esteja presente no lançamento do primeiro retrofit de um programa municipal. Mas anunciar uma política bilionária para o setor ao mesmo tempo é, no mínimo, extremamente inadequado.
Ricardo Nunes incentiva unidades de alto padrão com dinheiro público
Outro ponto escandaloso é o valor dos aluguéis praticados no Edifício Renata Sampaio. Segundo o Metrópoles, os valores variam de R$ 5,5 mil a R$ 20 mil para locações mensais. Já as estadias curtas, tipo Airbnb, variam de R$ 500,00 a R$ 2 mil por noite. A Folha de S.Paulo reporta exorbitantes R$ 30 mil por mês. E os empreendimentos do Requalifica Centro contam com subsídios públicos.
É claro que faz todo sentido criar políticas para estimular o retrofit. Esse ainda é um modelo de baixa escala no país, que tem como padrão a demolição completa para construção do zero. Agora, isso não quer dizer que desenhamos bem esses incentivos no Programa Requalifica Centro. Pelo contrário. Quando eu coordenava o Núcleo de Questões Urbanas do Insper, publicamos uma nota técnica enquanto o projeto de lei que criaria o programa era debatido e votado na Câmara dos Vereadores, em julho de 2021.
Mais de dois anos atrás, já apontávamos problemas fundamentais. Não sabemos quanto custam os descontos e isenções, não há contrapartida pública e não existem incentivos para habitação de interesse social.
Em resumo: estamos desenhando bem os incentivos? Não sabemos, já que não se sabe quanto a política custa. E, veja, nem mesmo sabemos se é muito ou pouco recurso público. Talvez, para garantir a destinação de unidades para pessoas mais vulneráveis, seria preciso ainda mais dinheiro. Estamos estimulando o uso residencial? Sim, mas de alto padrão.
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Não há qualquer amarra na política para que a conversão dos edifícios tenha uma destinação minimamente social. E isso é, evidentemente, um problema enorme. Estamos abrindo mão de dinheiro público – e não sabemos quanto – para empreendimentos caros e inacessíveis no centro.
Política não beneficia quem precisa de moradia em São Paulo
O Decreto n. 62.876, assinado pelo prefeito Ricardo Nunes no último dia 27, vai além dos incentivos fiscais, tributários e urbanísticos inicialmente concedidos pelo Requalifica Centro. A prefeitura vai fazer uma transferência direta de receita para as empresas qualificadas – algo inédito.
Temos estudo financeiro para subsidiar esse incentivo? Não. Temos dados para desenhar a subvenção com os outros incentivos que já existem? Não. Temos critérios mal desenhados para atribuição de recursos públicos no decreto? Opa, se temos.
O texto, a princípio, parece bem intencionado. O artigo 33º destina porcentagens específicas do montante de R$ 1 bilhão para habitação de interesse social, conhecida pela sigla “HIS”. Em outras palavras, a concessão da subvenção estaria, à primeira vista, atrelada a uma contrapartida pública: para receber grande parte dos recursos previstos na política, o agente privado teria que produzir unidades para vender para famílias de faixas de renda mais baixas. E, veja, as unidades são vendidas e a incorporadora lucra com sua venda. Não há qualquer tipo de exigência exorbitante aqui. Mas há problemas.
O plano diretor de 2014 estabeleceu duas categorias de HIS com base em faixas de renda. A HIS1 é destinada às famílias mais pobres, que compõem o núcleo duro do nosso déficit habitacional, com rendimentos de zero a três salários mínimos, e a HIS2, de três a seis salários mínimos. O decreto determina que 30% dos recursos serão destinados a projetos de HIS1 e outros 30% para HIS2. Seriam, portanto, R$ 600 milhões para habitação de interesse social. Mas o desenho é impreciso e pode fazer com que esse objetivo não seja atingido.
Quando se fala em “projetos de HIS1”, são “algumas unidades de HIS1” ou um empreendimento inteiro destinado a HIS1? Vejam, dificilmente empreendimentos tão caros serão inteiramente destinados a HIS1 ou mesmo a HIS2. Serão misturados com outras unidades, até porque prédios antigos costumam ter plantas maiores de apartamento e, portanto, mais caras. Então essa formulação pode significar, na prática, que apenas uma parcela de suas unidades terão destinação social. Em qual proporção? Não sabemos.
Além disso, o parágrafo quarto do artigo 33 estabelece que os percentuais podem mudar “no caso de insuficiência dos recursos disponíveis para uma ou mais categorias”. Então, se faltar recurso para, por exemplo, imóveis residenciais sem destinação social, será possível realocar verbas que seriam destinadas à habitação de interesse social? E se nenhum agente privado apresentar projetos com HIS, os critérios mudam simplesmente? Outro problema é a possibilidade de alcançar pontuação elevada ao renovar um imóvel tombado, que não necessariamente atende a qualquer categoria de habitação social.
Há outras questões no novo decreto. A contrapartida da subvenção é apenas colocar uma placa com o logo da prefeitura. A não alteração de uso pelo período de 10 anos é entendida como contrapartida, quando é só o básico da política – como o propósito é requalificar edifícios com alteração de uso, não faria qualquer sentido que o agente privado pudesse usufruir dos benefícios e alterar o uso do empreendimento, de maneira distinta da que foi apresentada no projeto.
É ótimo que os imóveis ociosos no centro de São Paulo deixem de ser ociosos. Quanto a isso, não há nenhuma dúvida. Mas que o município destine dinheiro público na casa dos nove dígitos sem o mínimo de contrapartida pública é – para repetir o sentimento que permeia todo este texto – escandaloso.
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