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Uma guerra de versões sobre a operação Última Milha, deflagrada pela Polícia Federal para investigar o suposto uso ilegal de um software de geolocalização pela Abin, colocou em evidência uma disputa brutal entre órgãos de inteligência brasileiros.
Publicamente, a Agência Brasileira de Inteligência e a PF discordaram sobre a colaboração da agência com as investigações sobre o FirstMile, software israelense que teria sido utilizado para espionar autoridades e adversários do governo Bolsonaro. Internamente, guerras nos dois órgãos revelam a politização e os interesses corporativos e empresariais entranhados nas instituições.
O conflito entre Abin e PF tem em 2007 um de seus marcos iniciais. Em outubro daquele ano, o cargo de diretor-geral da agência foi ocupado, pela primeira vez, por um delegado da PF, Paulo Fernando da Costa Lacerda. No ano seguinte, as duas instituições se viram no centro da CPI das Escutas Telefônicas Clandestinas.
Na ocasião, a colaboração ilegal de integrantes da Abin nas investigações da Operação Satiagraha, comandada pelo delegado Protógenes Queiroz, levaram à demissão de Lacerda – e resultaram em trocas de acusações entre membros da PF e da Abin. O então diretor de contra-inteligência da Abin, Paulo Maurício Fortunato, também chegou a ser afastado. Quinze anos depois, o mesmo Fortunato foi afastado da Abin por determinação da PF e exonerado pelo governo Lula por envolvimento no caso FirstMile. Em sua casa, a PF apreendeu 171,8 mil dólares em dinheiro vivo. Até então, ele era o número três da Abin.
Mas Fortunato não é o único personagem do atual escândalo que protagonizou o caso das escutas clandestinas, há 15 anos. Luiz Fernando Corrêa, atual diretor-geral da Abin, era o diretor da PF e chegou a depor sobre o caso na Câmara dos Deputados.
Na ocasião, Corrêa declarou que não tinha conhecimento da parceria entre a Abin e o delegado Protógenes Queiroz, da PF. “Não houve nenhuma comunicação nas instâncias superiores da polícia deste procedimento”, afirmou.
De 2008 a 2018, os servidores de carreira Wilson Roberto Trezza e Janer Táscher Alvarenga ocuparam a direção-geral da Abin, afastando os atritos com policiais federais da agência. Nem assim as tensões arrefeceram. O empoderamento das unidades de inteligência da PF em temas que estão na guarida da Abin, como o terrorismo, seguiu incomodando a agência – que acusa os policiais de não serem qualificados para atuar com inteligência de estado. Por outro lado, a demora da agência em comunicar a PF de investigações com potencial criminoso irritava a corporação.
Em 2014, uma CPI da Câmara dos Deputados que apurou as práticas de espionagem da National Security Agency, dos Estados Unidos, contra a presidente Dilma Rousseff, do PT, apontou a desarticulação do sistema de inteligência federal como uma das fragilidades da segurança nacional. Desgastada por não ter identificado a espionagem norte-americana, a Abin perdeu espaço para a PF, que comandou as investigações do caso.
Agora, novos elementos compõem a guerra entre Abin e PF, fruto da conturbada gestão do delegado Alexandre Ramagem na agência. Com nomeações de policiais federais para cargos de comando da Abin, o hoje deputado do PL do Rio de Janeiro elevou o grau de simbiose e rivalidade entre as instituições.
Em abril de 2022, em meio a um cenário de guerra entre o corpo de servidores da Abin contra a cúpula da agência, formada majoritariamente por policiais federais, as duas principais entidades de classe de servidores se uniram e formaram a Intelis – União dos Profissionais de Inteligência de Estado da Abin. A nova entidade passou a ser a única a representar os servidores, congregando 1,4 mil profissionais.
A Intelis passou a emitir posicionamentos públicos sobre os principais casos que envolveram a agência a partir dali – alegando que os eventuais escândalos se deviam à má gestão de Ramagem e aos policiais. As antigas entidades evitavam se posicionar – um dos elementos apontados por agentes da Abin para seu desgaste.
O incômodo fazia sentido: não foram poucas as vezes que homens de confiança de Ramagem se envolveram em escândalos na Abin. Em dezembro de 2020, a revista Época revelou que a agência produziu relatórios para ajudar o senador Flávio Bolsonaro, do Republicanos fluminense, a buscar a anulação do caso Queiroz, em que o político era investigado pelo esquema de “rachadinha”.
Em agosto de 2022, a Polícia Federal afirmou que a Abin atrapalhou o andamento de uma investigação envolvendo Jair Renan Bolsonaro, filho mais novo do ex-presidente. Um integrante do órgão admitiu em depoimento que recebeu a missão de levantar informações de um episódio relacionado a Renan, sob apuração da PF. Segundo o espião, o objetivo era prevenir “riscos à imagem” do chefe do Executivo.
Em outubro de 2022, durante a campanha do então candidato ao governo de São Paulo, Tarcísio de Freitas, também do Republicanos, ex-ministro de Bolsonaro, o Intercept revelou que um oficial de inteligência licenciado da Abin foi quem pediu a um cinegrafista da Jovem Pan para apagar imagens do tiroteio ocorrido em 17 de outubro em Paraisópolis, na zona sul de São Paulo. Segundo testemunhas, um segurança de Tarcísio matou um homem desarmado. Em janeiro, o inquérito foi concluído sem identificarem de qual arma partiram os tiros.
Com a vitória de Lula, novos atores emergiram para disputar o comando da Abin e da PF. Entre eles, os novos diretores-gerais: Corrêa, da Abin; e Andrei Passos Rodrigues, da Polícia Federal. A relação entre os dois ficou praticamente inviabilizada após a Operação Última Milha. Além deles, um casal em cargos-chave da Abin e PF, whistleblowers acusados de chantagem e uma entidade de classe cada vez mais poderosa compõem a guerra entre os órgãos.
A turma do DG
Grupo pequeno liderado pelo diretor-geral da Abin, Luiz Fernando Corrêa, e pelo diretor-adjunto Alessandro Moretti, ambos ex-delegados da Polícia Federal. Eles trouxeram poucos membros da PF para a alta gestão da Abin e optaram por oficiais de inteligência e servidores de carreira em cargos-chave.
Durante a transição de governo, Corrêa, escolhido por Lula e Aloizio Mercadante, se aliou à Intelis, entidade representativa de profissionais de inteligência. O delegado aposentado da PF defendeu a proposta do grupo de desvincular a Abin do GSI e de transferi-la para a Casa Civil, o que acabou ocorrendo.
O grupo de Andrei
Em guerra com Corrêa, o atual diretor-geral da PF, o delegado Andrei Passos chefiou as equipes de segurança de Lula na campanha eleitoral de 2022 e de Dilma Rousseff, em 2010. Mais tarde, foi responsável pela segurança durante a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016.
A relação de sua gestão com órgãos estrangeiros em operações sobre terrorismo tem irritado a Abin. Foi o caso do último dia 8, com a deflagração da Operação Trapiche, parceria da PF com o serviço secreto de Israel, órgãos de investigação dos Estados Unidos e a Interpol.
A prisão de duas pessoas supostamente envolvidas com o Hezbollah para recrutar brasileiros para atos extremistas contra entidades judaicas pegou de surpresa a Abin – operações como essa costumam ser feitas em conjunto. Não foi o caso. A alegação entre os agentes é que a PF desrespeitou o Sistema Brasileiro de Inteligência, o Sisbin, que coloca a Abin como órgão coordenador das atividades de inteligência do Brasil. Já sob Lula, em setembro deste ano, um decreto reforçou o papel da Abin como instituição central do Sisbin.
Os servidores da Intelis
Seus integrantes ascenderam no governo Lula, após a saída de policiais federais levados por Ramagem. A entidade passou a apoiar o ex-delegado Corrêa para o cargo de diretor-geral após ele advogar favoravelmente pela saída da Abin do GSI.
A Intelis defende que possíveis usos ilegais do FirstMile e de outros softwares sejam investigados, mas critica a operação da PF, alegando que foi pouco cuidadosa com dados sigilosos de agentes, informantes e operações. A entidade é contrária a uma CPI para investigar o caso por considerar que CPIs não sabem lidar com informações sigilosas. Como alternativa, sugere mais poderes à Comissão Mista de Controle da Atividade de Inteligência do Congresso Nacional.
Os filhos do Ramagem
Este grupo é composto por agentes bolsonaristas da Abin, policiais federais próximos ao ex-ministro do GSI e Alexandre Ramagem, recrutados para a agência durante o governo Bolsonaro. São apontados pela Polícia Federal como os operadores do FirstMile. Alguns deles, pós-Bolsonaro, estão na iniciativa privada. Outros retornaram à PF.
Um deles, Fabrício Cardoso de Paiva, é o mesmo oficial de inteligência envolvido na campanha de Tarcísio em 2022. De acordo com a colunista Bela Megale, ele foi um dos alvos da operação Última Milha, por suposto envolvimento com o esquema de espionagem. Segundo a jornalista, Paiva tem sido visto no Palácio dos Bandeirantes.
O grupo não apoia a atual gestão da Abin e tem trabalhado contra o diretor-geral Luiz Fernando Corrêa. Após a Operação Última Milha os possíveis exageros da PF no caso viraram combustível contra o diretor-geral Andrei Passos.
Os vazadores presos
Eduardo Izycki e Rodrigo Colli, agentes da Abin presos na Última Milha, fundaram uma empresa em sociedade, a ICCiber, e foram licenciados para atividades empresariais e acadêmicas durante o governo Bolsonaro. Alvo de processos administrativos por terem criado uma empresa em nome do pai de Izycki, eles teriam ameaçado vazar informações sobre supostas ilegalidades na Abin, como o FirstMile, para evitar a demissão.
Em julho de 2022, Izycki participou, como doutorando da UnB, de um seminário online do Instituto Lula sobre segurança cibernética, fato usado por colegas para taxá-lo de petista. Ao contrário do que foi noticiado, eles não são acusados de operar softwares espiões.
O casal da inteligência
A atual corregedora da Abin, Lidiane Souza, é casada com Elias Milhomens de Araújo, delegado da Polícia Federal que já chefiou diversas unidades de inteligência da corporação. Uma fonte da Abin disse que a prisão dos agentes Eduardo Iczyki e Rodrigo Colli é um “presente” de Milhomens à sua mulher, que acusava a dupla de ter plantado notas na imprensa contra ela e de vazar informações da agência.
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