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Deixei um pedaço de mim em Gaza e talvez nunca possa voltar para buscá-lo

Depois de semanas cobrindo a guerra de Israel em Gaza, eu fui uma dos milhares de palestinos que fugiram para o sul na sexta-feira.

Palestinos fogem da cidade de Gaza para as áreas ao sul, em meio ao contínuo bombardeio de Israel sobre a região, em 11 de novembro de 2023.

Palestinos fogem da cidade de Gaza para as áreas ao sul, em meio ao contínuo bombardeio de Israel sobre a região, em 11 de novembro de 2023.

Era noite de quinta-feira quando começamos a negociar. Precisamos ou não fazer a evacuação para o sul? Os caças F-16 não saíam do céu, o bombardeio não parava, as balas de verdade estavam muito perto. O céu estava enevoado, encoberto de bombas de gás e fósforo branco. Era difícil até de respirar.

Nosso trabalho é documentar a guerra, mostrar ao mundo o que está acontecendo. Como poderíamos ir embora? Fizemos essa pergunta por horas. Fiquei com dor de cabeça de tanto pensar. 

“E se nos matarem? E se nos prenderem?”, um dos caras perguntou. 

“Não vou embora, prefiro morrer aqui”, disse outro. 

“Deveríamos ir embora, temos filhos e famílias”.

“Fizemos tudo o que podíamos. Noticiamos tudo”. 

Apesar do barulho das bombas, eu me obriguei a dormir. Fiquei me perguntando se seria minha última noite no escritório, minha última noite na cidade.

Havíamos evacuado o escritório três vezes em 30 dias. Evacuamos para o Hotel Roots, mas os jornalistas lá estavam sendo perseguidos, então evacuamos para o Hospital Al Shifa. Após as ameaças recebidas pelo hospital, decidimos arriscar e retornar para nosso escritório de três andares na região de Al Rimal, perto de Al Saraya. 

Eu morava em um colchonete no chão do escritório. Tinha um banheiro privativo. 

O escritório do 11º andar tinha a melhor vista de Gaza. Tornou-se a nossa casa quando fomos desalojados. Era nossa casinha. 

Eu dormi enquanto meus colegas continuavam a discutir.

Eram 6h30 quando meu colega Ali me acordou. “Vai se aprontar, estamos indo embora”, disse ele, com pressa.

“Indo para onde? Lugar nenhum”, eu disse a ele. “Vamos achar outro lugar para ir. Não quero ir embora”.

“Hind, yalla, não dá tempo de negociar, não temos muito tempo”, frisou, enquanto guardava suas câmeras na mochila.

Eu me levantei do colchonete. Todos estavam fazendo as malas, procurando suas coisas. Eu percebi que realmente tenho TDAH, como sempre suspeitei, porque não fazia ideia de por onde começar.

Era um problema menor porque eu praticamente não tenho roupas, mesmo – uns dois agasalhos sujos, meu laptop e minha câmera. Estou desalojado desde 9 de outubro.

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Peguei minha bolsa e corri com Ali para buscar sua mãe ferida e minha prima. Ali dirigiu muito rápido. Estacionamos longe da entrada do Al Shifa. A entrada de um hospital se tornou uma zona de perigo, depois que vários foram bombardeados recentemente. 

Começamos a andar muito depressa para tentar entrar no hospital. Estava lotado, as pessoas estavam correndo para sair.

Começamos a empurrar as pessoas. Levamos mais de 10 minutos para ir da entrada até o prédio, uma distância que normalmente se atravessa em apenas um minuto ou dois.

Fui encontrar minha prima, Sara. Ela é cirurgiã e trabalha no hospital Al Shifa desde o primeiro dia. Enquanto isso, Ali foi buscar sua mãe e sua irmã, feridas.

Comecei a bater na porta. “Sara, abra a porta. Sou eu, Hind”.

Continuei a bater por três minutos até que outro médico abriu a porta. Sara estava dormindo.

Eu a acordei. “Depressa, estamos indo embora”, disse a ela.

Ela não reagiu. Começou a guardar suas roupas.

Ali levou a mãe em uma cadeira de rodas. Eu levei minha prima e alguns médicos.

Minha prima, Dra. Sara, aguardando durante o êxodo de Gaza, em 10 de novembro de 2023, Gaza.
Minha prima, Dra. Sara, aguardando durante o êxodo de Gaza, em 10 de novembro de 2023, Gaza.

Minha prima, Dra. Sara, aguardando durante o êxodo de Gaza, em 10 de novembro de 2023, Gaza.

Os corredores estavam ficando vazios. Todos estavam com pressa. Até os pacientes estavam sendo evacuados.

A essa altura, já éramos muitos para caber no carro, então começamos a andar. Caminhamos com milhares de outros civis. Vi até um leito de hospital sendo empurrado pelo caminho.

Crianças, pessoas em cadeiras de rodas, idosos, bebês – todos carregavam mochilas, travesseiros, colchonetes.

Nosso trabalho é documentar a guerra, mostrar ao mundo o que está acontecendo. Como poderíamos ir embora?

Aguardamos no cruzamento por 40 minutos até que Ali nos encontrou. Caminhamos juntos. 

Observei as expressões no rosto das pessoas. Apavoradas, seguravam bandeiras brancas. 

Um caminhão que normalmente transportava vacas estava cheio de pessoas. Outro caminhão, que costumava transportar botijões de gás, levava pessoas para o sul.

Pessoas choravam, enfurecidas, tristes, os olhos cheios de medo.

Minhas emoções estavam bloqueadas. Tudo que eu conseguia pensar era que não queria ir embora, que estava errado ir embora, que eu não devia ir embora.

Tudo estava destruído. Até as ruas estavam danificadas e destruídas. Meus olhos tentavam documentar tudo, fiz o que podia para capturar tudo com eles. Queria derramar minhas lágrimas, mas guardei-as dentro de mim.

Não é hora de chorar, vou chorar depois, disse a mim mesmo.

Começamos a caminhar da “Praça Doula” – o ponto de partida.

Encontramos carroças puxadas por burros. Gritaram que poderiam nos levar até os tanques israelenses.

Reservamos duas carroças. O proprietário estava com pressa; ele nos cobrou 20 NIS – cerca de R$ 25 reais – por um trajeto de burro de 10 minutos. Alguns não podiam pagar e seguiram a pé.

Vi pessoas carregando gatos, carregando pássaros em gaiolas, segurando suas malas, levando o máximo que podiam.

Chegamos à área que havia sido terraplenada por escavadeiras. Vi uma escavadeira, dois tanques e uma dezena de soldados. 

O proprietário das carroças disse que era o mais longe que ele nos levaria. Todas as pessoas começaram a estender suas identidades verdes e a erguer seus braços e as bandeiras brancas. Todos estavam aterrorizados. Era a primeira vez que muitas pessoas em Gaza, especialmente as crianças, viam um tanque ou um soldado israelense.

Vi soldados israelenses em 2016, quando deixei a Faixa de Gaza por Erez, a fronteira fortificada ao norte. Eu não estava com medo.

Ainda estávamos andando. Eu estava carregando duas bolsas, uma em cada ombro. A irmã ferida de Ali vinha apoiada em mim o caminho inteiro. Ela havia sido atingida por estilhaços na perna quando os israelenses atacaram a entrada do hospital Al Shifa.

Enquanto caminhava com a multidão, eu olhava para o chão. Vi cobertores de bebê, meias de bebê. Vi roupas, brinquedos, sacolas. Tenho certeza de que as pessoas estavam assustadas demais para voltar e buscar as coisas que haviam deixado cair.

Caminhávamos sobre cadáveres em decomposição.

Éramos milhares, empurrando uns aos outros nessa via de mão única. Queríamos que isso acabasse. À nossa esquerda, estavam um tanque e soldados segurando seus rifles, que nos observavam com binóculos sobre uma duna. À nossa direita, estavam quatro soldados diante de um prédio bombardeado, posando e tirando selfies sobre os escombros.

Nosso grupo foi parado mais de quatro vezes (sem motivo) e liberado sem motivo.

Ao nos aproximarmos dos soldados, vi um homem nu de pé, diante da duna, junto com outros três homens de cabeças abaixadas.

Era a primeira vez que muitas pessoas em Gaza, especialmente as crianças, viam um tanque ou um soldado israelense.

Um outro homem, que levava um garrafão amarelo de 20 litros de água, e uma criança loira foram chamados pelos soldados. Eles pediram que o menino se aproximasse sem o pai. Ele ficou apavorado. Nós que passávamos por ali ficamos preocupados que levassem o menino. 

O soldado disse a ele que não havia nada de errado, ele só gostava de crianças loiras.

Continuamos a andar. Enquanto caminhávamos, empurrando uns aos outros, vimos carros bombardeados e corpos dentro dos carros.

Moscas infestavam os carros, deliciando-se com o sangue e os corpos lá dentro.  

Uma recém-nascida à minha frente chorava. A mãe tentava alimentá-la enquanto andávamos. Ela começou a amamentar o bebê sem parar de caminhar. Outra mãe puxava seus filhos nas cadeirinhas de carro com uma corda.

Um homem empurrava a cadeira de rodas de uma mulher ferida. Toda hora ela ficava presa na areia.

Continuamos a andar, parando e andando, os soldados uma ameaça constante.

Pareceram anos de caminhada, embora tenham sido apenas horas. Estava lotado, e procurávamos constantemente uns aos outros em meio à multidão. Do outro lado havia pessoas que já estavam no sul e vieram nos buscar. As pessoas no sul estavam procurando por nós, pelas pessoas que vinham da cidade. Todos estavam cansados. Todos estavam com sede.

Eu havia perdido minha prima na multidão de milhares, mas a encontrei no final. Ela estava chorando, sua perna não aguentava mais. Ela estava sentindo dores intensas. Nós a ajudamos a continuar em movimento até encontrarmos um carro.

Não consigo descrever a tristeza. Escapamos de sermos mortos ou feridos, mas eu não queria ir embora e não queria deixar a cidade.

À medida que nos aproximávamos de onde os carros estavam estacionados, as pessoas começaram a distribuir água para nós. Elas nos diziam que éramos bem-vindos e suas casas estavam abertas para nós.

Estávamos tão cansados. Eu não conseguia sentir meus ombros, nem minhas pernas.

Todos estavam felizes por termos feito a evacuação. Todos nos abraçavam. Tínhamos conseguido chegar em segurança.

Mas eu não sentia isso. Um pedaço do meu coração havia ficado na cidade e talvez eu nunca consiga voltar para buscá-lo. É impossível para mim imaginar que abandonei a casa do meu pai, que a deixei sozinha. Ele construiu aquela casa com as próprias mãos e, quando ele morreu, em 2012, ela ficou com a família. Em minha família, nossa casa é tão preciosa para nós. Não sabemos se nossa casa ainda está de pé, mas sabemos que não estamos nela.

Quinze minutos após a nossa chegada, as pessoas que caminhavam atrás de nós foram bombardeadas.

Este texto foi originalmente publicado em inglês em 12 de novembro de 2023.

Tradução: Deborah Leão

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