Temos duas notícias para compartilhar que são um forte soco no estômago de qualquer pessoa que se preocupe com os direitos das mulheres, a liberdade de imprensa e com um Judiciário que respeite a lei.
A primeira notícia é sobre uma grave injustiça: a corajosa jornalista Schirlei Alves foi condenada em um tribunal de Santa Catarina a um ano de prisão em regime aberto e R$ 400 mil em indenizações.
A perseguição à repórter Schirlei Alves
Schirlei é responsável por publicar no Intercept Brasil uma das reportagens mais importantes e impactantes de 2020, revelando a ultrajante revitimização da influenciadora digital Mari Ferrer pelo advogado de defesa, promotor e juiz no julgamento do acusado de estupro. O réu foi absolvido apesar da alegação de Ferrer de que ela foi drogada e violada e das evidências que a corroboram.
Os mesmos homens, desde então, transformaram a vida da repórter que revelou tudo isso em um inferno. A rotina de Schirlei mudou, seu trabalho foi prejudicado, ela foi forçada a fechar seus perfis em redes sociais devido ao assédio sexista incessante e sua segurança física foi colocada em risco.
“Meu único desejo era expor a verdade e foi isso que fiz. Apesar do enorme custo pessoal e profissional, eu faria isso de novo hoje. Agora, espero que o sofrimento de Mari Ferrer e o meu possa levar a mudanças para que mais mulheres não tenham que passar por aquilo a que fomos submetidas. Nós merecemos o melhor”, afirma Schirlei Alves.
A intenção dos homens era inverter a narrativa sobre suas falhas profissionais, claramente demonstradas em um vídeo publicado pelo Intercept Brasil. Não faria mal para eles se também conseguissem intimidar jornalistas como Schirlei para que não fizessem mais reportagens.
A revelação causou um alvoroço nacional, protestos, processos disciplinares contra eles e na aprovação da Lei Mari Ferrer, que tem o objetivo de impedir que os absurdos do julgamento do caso se repitam em outros tribunais. Um impacto maior do que este para o jornalismo é difícil de alcançar.
A condenação de Schirlei proferida pela juíza Andrea Cristina Rodrigues Studer, lembra a época da ditadura e é totalmente infundada, repleta de falhas processuais e extremamente desproporcional. Studer foi a única juíza disposta a aceitar o caso apresentado por seus colegas na vara, depois que muitos outros se recusaram devido ao conflito aparente. Nossas moções para transferir o caso para um fórum neutro foram negadas.
A”honra” de um promotor e de um juiz vale um total de R$ 400 mil e um ano de prisão em regime aberto. Especialistas jurídicos consultados pelo Intercept Brasil concordam unanimemente que essa decisão vingativa não tem precedentes.
De acordo com Rafael Fagundes, advogado do Intercept Brasil, “a sentença ignorou a realidade dos fatos e a prova dos autos, resultando em uma decisão flagrantemente arbitrária e ilegal. Além disso, a sentença cometeu uma série de erros jurídicos primários, agravando artificialmente a condenação e contrariando toda a jurisprudência brasileira sobre o tema. Incapaz de esconder preocupações corporativistas, essa sentença pode servir como uma ameaça contra aqueles que ousam denunciar os abusos eventualmente cometidos pelo Poder Judiciário.”
O juiz Rudson Marcos é condenado pelo CNJ
A sentença de prisão de Schirlei é ainda mais absurda no contexto da segunda notícia: o juiz Rudson Marcos, cujas ações levaram à criação da Lei Mari Ferrer, recebeu uma advertência formal do Conselho Nacional de Justiça nesta terça-feira.
O Conselho foi unânime em seu entendimento de que Marcos agiu de forma negligente ao permitir e perpetuar a humilhação de Mari Ferrer em sua sala de audiências. Mas o subprocurador José Adonis Callou argumentou, em uma divergência, que uma advertência, a forma mais leve de sanção, não era suficientemente severa e que uma remoção compulsória seria mais adequada.
Callou afirmou que Marcos “não tem um perfil adequado para presidir audiências de natureza criminal” e que a audiência representou “tudo de como não devem conduzir os agentes que participam de um ato processual dessa natureza”.
Embora a penalidade seja fraca, qualquer forma de censura aos magistrados é extremamente rara. Essa decisão, portanto, demonstra o extremo da má conduta e a absoluta legitimidade da reportagem de Schirlei no Intercept.
Também derruba o argumento falacioso do juiz Rudson Marcos, do promotor Thiago Carriço de Oliveira e do advogado de defesa Cláudio Gastão da Rosa Filho de que a indignação se deveu apenas à suposta manipulação do registro em vídeo. O Conselho Nacional de Justiça analisou integralmente as provas e, por unanimidade, discordou da defesa. Sua decisão expõe a condenação de Schirlei pela juíza Studer pelo que ela é: corporativismo puro e simples.
O caso Mari Ferrer
Vamos relembrar a história do caso Mari Ferrer: em 9 de setembro de 2020, o juiz Rudson Marcos absolveu o empresário André de Camargo Aranha da acusação de ter estuprado a influenciadora digital Mari Ferrer. O crime teria acontecido dois anos antes em um clube de luxo em Florianópolis.
Em suas alegações finais, o promotor Thiago Carriço de Oliveira afirmou que não havia como o empresário saber, durante o ato sexual, que a jovem não estava em condições de consentir a relação, não existindo, portanto, a intenção de estuprar. Mari afirma ter sido dopada e, posteriormente, violentada sexualmente por Aranha.
Dois meses depois, o Intercept publicou a reportagem que revela a gravação da audiência de instrução, durante a qual Mari Ferrer foi humilhada e constrangida várias vezes pelo advogado de defesa do acusado, Cláudio Gastão da Rosa Filho.
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Mari chega a implorar pela ajuda do juiz. “Excelentíssimo, eu estou implorando por respeito, nem os acusados, nem os assassinos são tratados do jeito que estou sendo tratada, pelo amor de Deus, gente. O que é isso?”, diz. Rudson Marcos achou suficiente pedir a Gastão que mantivesse o “bom nível”.
De acordo com o subprocurador Callou, integrante do CNJ, “cabia ao juiz interromper o advogado, suspender a audiência, se fosse o caso, e advertir o advogado de que ele não podia fazer aquilo. Mas nada disso aconteceu. Uma audiência que durou, salvo engano, cinco horas, o advogado foi o absoluto dono do ambiente. Isso é reconhecido pelo próprio tribunal.”
Sentença coloca jornalismo sob risco
As sentenças da juíza Studer colocam em risco a atividade jornalística e a imprensa livre no país e ameaçam danificar a confiança pública na integridade dos tribunais.
Agora o caso de Schirlei irá para a segunda instância, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que é o “mando de campo” dos juízes Marcos e Studer e do promotor Oliveira.
Cada vez mais, nossas batalhas estão sendo lutadas no judiciário e não na corte de opinião pública. Apesar do cenário desfavorável e os altos custos, é claro que levaremos esse caso até o fim e lutaremos com todas as nossas forças. Vamos defender o direito de Schirlei de exercer sua profissão, o nosso direito de revelar o que fazem os poderosos e seu direito de saber.
Neste ano, já obtivemos vitórias contra arbitrariedades de membros do Judiciário, como a queda da censura da reportagem sobre a luta de Mãe Bernadete pelo STF. São vitórias que ampliam a proteção de todos os jornalistas e toda a sociedade. Esta é a nossa batalha incansável, mas sozinhos não podemos vencer em todas as frentes que surgem.
Importantes organizações da sociedade civil têm se manifestado repetidamente contra essa situação perigosa e ultrajante. Elas são peça fundamental em nossa luta contra os abusos e perversidades cometidos por membros do Judiciário brasileiro, que não querem prestar contas dos seus atos.
E também somos fortalecidos pelo apoio público de pessoas como você, que decidem não ser passivas e participar dessa batalha, levantando a voz, espalhando a conscientização e ajudando a financiar essas longas e custosas batalhas. Somente juntos poderemos nos opor a esses abusos.
Esta luta é por Schirlei, por nós, por vocês.
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