As eleições na Argentina chegaram ao fim no domingo, quando a população enfim decidiu entre os candidatos à presidência Javier Milei e Sergio Massa – ambos economistas em um país cuja principal pauta é, justamente, econômica. Milei, do partido A Liberdade Avança, venceu a eleição para a presidência da Argentina. Com 97% das urnas apuradas, Milei tem 55,76% dos votos, contra 44,23% de Sergio Massa, ministro da Economia e candidato governista.
O anarcocapitalista Milei não passa da versão argentinizada do populismo de extrema direita que varre o mundo. Mas há algo particular nesta guinada ultraconservadora no país: a superação (ou não) do peronismo.
Ideologia que remonta aos anos 1940, o peronismo é tido como um sistema político em si e se aproxima de um estado de bem-estar social. Prioriza a soberania política, a independência econômica, o trabalhismo e a justiça social. Seus maiores representantes no século 21, Néstor e Cristina Kirchner, governaram a Argentina entre 2003 e 2015, após a reação em massa contra as condições em que os governos liberais haviam deixado o país.
A indústria nacional enfraquecida, o desemprego massivo, a pobreza acima de 30% e o surgimento das “cuasimonedas” em circulação no país, que funcionavam como moedas alternativas ao peso, são alguns exemplos da deterioração argentina à época.
Os Kirchner voltaram às premissas dogmáticas do peronismo. Retomaram a ideia do estado forte e presente, estatizaram empresas e garantiram ajuda econômica e social aos mais fragilizados. Sua gestão acabou rendendo um movimento em si, expansão do peronismo.
O kirchnerismo aprendeu a captar novas agendas e dialogar com outras identidades da sociedade que antes eram escanteadas: juventudes, mulheres, LGBTQIA+, mães, etc. O peronismo, apesar de reconhecer esses setores, se baseava na dicotomia trabalhadores versus empresas – e na garantia de direitos para os trabalhadores.
Muito comparado ao lulismo, o kirchnerismo cria uma polarização na Argentina há anos. Os kirchneristas acreditam na interferência do estado para garantir uma distribuição equitativa, enquanto outro setor vê como um atraso o número de impostos e regulações. De qualquer forma, o kirchnerismo foi escanteado nestas eleições.
O peronismo se consolidou, na prática, como a única via progressista viável na Argentina e voltou aos holofotes. Mas não podemos esquecer da roupagem à direita que o partido criado por Juan Domingo Perón já vestiu.
Carlos Menem, que ao ser eleito em 1989 também comandava o Partido Justicialista, foi um dos presidentes mais liberais do país. Tido como referência por Milei, Menem foi responsável por medidas como a venda das maiores estatais argentinas. “Nada que deve ser estatal permanecerá nas mãos do estado”, disse seu ministro de Obras e Serviços Públicos, Roberto Dromi, em 1989.
Em um primeiro momento, essas manobras pareciam levar a Argentina a um boom econômico, com a queda da inflação para 2% ao ano. A bonança deu tração à reeleição de Menem em 1995, mas logo as condições sociais do país cobraram a conta. Uma consequência do fechamento massivo de fábricas (a produção industrial passou de 32% a 17% do PIB argentino) e da flexibilização das leis trabalhistas.
Já Javier Milei, antiperonista e antikirchnerista, vai além ao propor a extinção do peso argentino e a adoção do dólar americano. O candidato considera Domingo Cavallo, que liderou a economia sob Menem e alguns meses sob Fernando De la Rúa, um dos melhores ministros que o país já teve.
Cavallo foi uma das cabeças principais nas privatizações do governo Menem e no aprofundamento da dívida externa. Também foi o idealizador do “corralito”, manobra do governo De la Rúa que previa a intervenção do estado para salvar os bancos privados de uma quebra.
A medida foi tomada após uma contínua queda da economia argentina. Em 2001, a dívida externa do país já somava 144 bilhões de dólares, contra os 60 bilhões de 1991. O país começou a sofrer com sanções vindas do Fundo Monetário Internacional, que temia que a Argentina não pagasse suas dívidas.
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Em 2001, o “corralito” entrou em cena. O governo argentino determinou um limite semanal de saques nos bancos, e aposentadorias chegaram a ser parceladas em 12 vezes. Uma onda de saques a comércios locais demonstrava o desespero de uma sociedade com mais de 30% da população abaixo da linha da pobreza.
Com os cofres vazios e uma rejeição quase unânime ao governo, acontece uma explosão nas ruas: o chamado estallido social. Pela primeira vez em décadas, existe uma identificação entre as demandas dos setores populares – os piqueteiros, que cortavam as ruas para fazerem-se visíveis em um sistema que não os via e não os dava de comer – e as das classes médias, que viam seus salários derretendo”, me explicou a historiadora Mariana Gras.
Cavallo renunciou ao seu cargo no ministério da Economia em dezembro de 2001. Dias depois, De la Rúa também renunciou e fugiu da Casa Rosada em um helicóptero. Cinco presidentes passaram pelo poder em 12 dias, e nenhum foi capaz de manter a paz até as eleições de 2002, quando Néstor Kirchner chegou ao poder.
Eleitor de Javier Milei quer mão invisível do estado
A mescla historicamente progressista do peronismo com a direita se mostra, também, no pensamento contraditório dos eleitores atuais. Segundo uma pesquisa sobre os eleitores de Javier Milei, 54,8% são contra a implementação de aulas sobre religião nas escolas; 60% acreditam que o estado deve garantir saúde e educação públicas; e 79,5% concordam que é dever do estado garantir aposentadorias dignas. Mas três quartos desses mesmos eleitores consideram que o estado deve ter mínima presença.
São posicionamentos que demonstram confusão quanto ao papel do estado e uma vontade urgente de mudanças econômicas, mas não necessariamente sociais.
Martín “El Negro” Almeida é um comediante de stand-up argentino. Denomina-se “ativista das ideias libertárias” e foi um dos nomes que ajudou a impulsionar a eleição de 2021 de Javier Milei à Câmara dos Deputados. O streamer soma mais de 13 mil seguidores em seu Instagram, onde faz campanha para o candidato.
“Queremos os princípios e valores fundacionais de qualquer sociedade ocidental: trabalhar, poupar e ter algo para deixar para a posterioridade”, me disse. São as mesmas bandeiras que regeram o país nos anos kirchneristas. A diferença é a rejeição à intervenção do estado. “Não se pode forçar mudanças culturais mediante a utilização da força estatal”, argumentou Martín.
Como exemplo, ele citou a lei de cotas para trabalhadores transsexuais, sancionada em 2021, que prevê a inclusão de pessoas trans e travestis no mercado formal de trabalho. “É genial que existam melhores opções de trabalho [para este grupo social], mas não mediante uma ordem judicial do estado”.
Há um consenso entre especialistas de que o peronismo está falhando em atualizar-se aos desafios atuais da sociedade, como as novas formas de trabalho. “O peronismo chega tentando explicar uma sociedade que não existe mais”, argumentou a cientista política Leyla Bechara.
E é nessa brecha que Milei chega aos novos eleitores, apresentando um manual muito simples que o posiciona na contramão das duas últimas gestões do país, do neoliberal Mauricio Macri e do atual presidente Alberto Fernández, um peronista. “Foram duas comprovações seguidas de que a dirigência política não estava compreendendo a sociedade”, explicou a cientista política.
Agora, a população está no limite de um novo estallido social, e Milei representa esse “saco cheio” argentino: “O que o capitalismo fez foi entender que, nessa democracia, as pessoas não podem projetar-se felizes, e supriu isso oferecendo uma opção antissistema que opera dentro do sistema”, argumentou a historiadora Mariana Gras.
Este discurso anticasta política – semelhante ao de Jair Bolsonaro – vai muito bem entre os jovens que se tornaram eleitores testemunhando a economia argentina em queda e suas possibilidades cada vez menores de estabilidade financeira. É uma juventude que não consegue ter uma poupança, com uma inflação acumulada que já chega a 120% em 2023.
É também uma parte da população que encontrou no mundo digital uma possibilidade de ganhar dinheiro fora dos moldes tradicionais de trabalho, defendido com unhas e dentes pelo peronismo. Segundo os dados mais recentes do Ministério do Trabalho, 61% dos trabalhadores assalariados são autônomos. No segundo semestre deste ano, segundo o Indec, apenas 9,9% dos jovens até 29 anos estavam formalmente empregados.
Javier Milei propõe um governo populista, mas que caminha na direção contrária à do estado presente peronista. Defende o fechamento do Banco Central, o enxugamento da máquina pública, o fim da maioria dos ministérios e a já mencionada dolarização da economia.
Aliás, caminha em contra ao patriotismo exacerbado, característica que parecia quase unânime nas figuras de extrema direita ao redor do mundo, mas que, na Argentina, já é figura carimbada do peronismo. A verdadeira luta nas urnas deste 19 de novembro está, afinal, na superação de um sistema de governo que rege o país há mais de 80 anos.
Atualização: texto alterado às 9h25 desta segunda-feira com o resultado da eleição na Argentina.
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