O empresário Vitor Loureiro Souto abriu uma nova empresa para assumir o controle do aterro que ele mesmo construiu próximo ao quilombo Pitanga dos Palmares, onde Mãe Bernadete foi assassinada com 22 tiros em 17 de agosto. A Polícia Civil concluiu, em coletiva divulgada na última quinta-feira, que a líder quilombola foi assassinada por combater a exploração ilegal de madeira e o tráfico de drogas na região.
Com acesso exclusivo ao inquérito da Polícia Federal, o Intercept identificou que a empresa Naturalle, de propriedade de Vitor Souto, é citada mais de dez vezes na investigação sobre a morte de Binho do Quilombo, filho de Mãe Bernadete, assassinado em agosto de 2017, com 12 tiros.
Após isso, Souto atuou para trocar a licença entre suas próprias empresas, de forma a manter o controle do empreendimento, depois da investigação da PF teve início e a Naturalle foi citada. Os registros das licenças e suas respectivas trocas estão disponíveis no Inema, órgão ambiental da Bahia.
O empresário é filho de Paulo Souto, ex-governador da Bahia por dois mandatos, e dono de empresas de limpeza urbana e construção de aterros que fazem o tratamento de resíduos domésticos, hospitalares e da construção civil – este último chamado de aterro de inertes. Vitor Souto costuma ser figurinha carimbada nos sites de coluna social do estado, em eventos de vinhos, em restaurantes caros e aniversários de pessoas da alta sociedade baiana.
Em 2016, a Naturalle recebeu uma licença da prefeitura de Simões Filho para construir um aterro de inertes em um terreno de 163 hectares em Área de Proteção Ambiental, a APA Joanes Ipitanga, no Vale do Itamboatá. O lucro estimado deste aterro é de R$ 20 milhões por ano.
Mãe Bernadete e filho lutavam contra aterro de Vitor Souto
O Intercept mostrou que tanto Mãe Bernadete quanto seu filho lideraram a luta contra a instalação desse empreendimento da Naturalle. Eles organizaram manifestações, participaram de audiências públicas criticando abertamente o empreendimento e criaram um abaixo-assinado virtual, além de ingressarem com uma representação nos Ministérios Públicos Estadual e Federal. Esta reportagem chegou a ser censurada por decisão do juiz George Alves de Assis, titular da 7a. Vara Cível e Comercial de Salvador a pedido de Vitor Souto. O ministro do STF Luiz Fux derrubou a censura. A decisão de Fux foi endossada pelos demais ministros da primeira turma do Supremo.
Após a morte de Binho, o Inema chegou a negar a licença ambiental para a Naturalle, em abril de 2018. A empresa entrou com pedido de reconsideração e obteve, em 2019, a licença ambiental. Em dezembro de 2020, veio a autorização para a instalação do aterro.
Em agosto de 2021, é criada a Recycle Waste Energy, a RWE, e – em janeiro de 2022 – ela passa a herdar todas as licenças da Naturalle sobre o aterro de Simões Filho, incluindo de supressão da vegetação nativa, manejo da fauna e instalação do aterro.
No documento de assinatura da transferência das licenças, o endereço que consta como sendo da Recycle é praticamente o mesmo da Naturalle – o mesmo prédio comercial na Pituba, bairro nobre de Salvador, mudando apenas a sala: 106 (Naturalle) e 201 (Recycle). Atualmente, no cadastro da Receita Federal, a Recycle tem outro endereço de registro.
Os sócios da Recycle são Vitor Souto e Marcelo Adorno Farias. Os dois já tinham sociedade em outra empresa: a Ecolurb Engenharia, Conservação e Limpeza Urbana. Souto se filiou ao União Brasil, partido do seu pai, quando ainda se chamava Democratas, em 2009. Em contratos emergenciais, por dispensa de licitação, a Ecolurb assumiu a coleta de lixo de importantes municípios baianos aliados ao União Brasil, como Valença, Irecê, Espanada e São Sebastião do Passé.
A Naturalle e a Recycle têm exatamente a mesma finalidade na Classificação Nacional de Atividades Econômicas, o CNAE, registro que identifica a principal atividade exercida por um negócio. As duas empresas foram fundadas com o intuito de operar em “tratamento e disposição de resíduos não-perigosos”.
O Intercept ouviu uma advogada especialista em direito empresarial que classificou como “atípica”, embora “não ilícita”, essa movimentação de transferir licenças entre empresas de mesma propriedade e com semelhante finalidade de operação. Como Souto aparece como sócio único da Naturalle, caso apenas quisesse incluir Marcelo Adorno na sociedade, poderia optar por uma simples alteração no contrato social, estabelecendo a divisão de cotas para cada um.
Isso é muito mais simples e rápido do que fundar uma nova empresa já com um novo sócio – uma vez que para essa atividade é preciso obter licenças municipais para operar.
Empresário Vitor Souto diz que troca foi decisão empresarial
Procurei o empresário Vitor Souto para comentar a troca de licenças entre suas empresas. Via assessoria de imprensa da Naturalle, ele pediu que enviássemos as perguntas e, por escrito, respondeu que “a mudança aconteceu por uma decisão empresarial, que foi submetida a todos os órgãos competentes e aprovada por eles”.
Disse ainda que os sócios resolveram criar a Recycle para “se dedicar exclusivamente à gestão de aterros sanitários, ficando a Naturalle e a LimpCity responsáveis pelos contratos ligados à limpeza pública”.
O empresário Marcelo Adorno Farias também foi procurado, mas não respondeu aos nossos questionamentos.
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Além de assumir o empreendimento em Simões Filho, a Recycle também herdou as licenças da Naturalle no aterro de Entre Rios, outra cidade do interior da Bahia. Em agosto do ano passado, o Inema concedeu a troca de titularidade na licença de operação. A inauguração teve até comparecimento de um representante do Ministério da Integração de Desenvolvimento Regional, à época ainda no governo Bolsonaro, além de registro no site do governo federal.
Apesar de operar contratos milionários, a Recycle não tem site oficial, nem redes sociais que divulguem suas ações. A empresa foi aberta com registro de capital social de R$ 15 milhões.
Empresa de Vitor Souto foi citada em inquérito da PF
A Polícia Federal manteve como uma de suas linhas de investigação os conflitos entre a empresa Naturalle e Binho do Quilombo no inquérito que investiga a morte do líder quilombola. Tivemos acesso ao documento de 920 páginas, que contém informações desde quando a PF assumiu o caso – inicialmente a investigação ficou ao encargo da Polícia Civil da Bahia, que pouco avançou na elucidação do crime.
A delegada da Polícia Federal, Lívia Cunha, responsável pela investigação do assassinato de Binho do Quilombo, chegou a oficiar a prefeitura de Simões Filho para enviar uma cópia integral da licença para instalação da Naturalle no Vale do Itamboatá. A PF oficiou também o Inema para enviar uma cópia do processo administrativo para a implantação do aterro da Naturalle. Os dois pedidos foram atendidos.
Na justificativa, a delegada escreveu que era interessante obter os dados “para melhor verificar a natureza de eventual conflito existente entre Binho do Quilombo e pessoas que representam interesses da Naturalle Tratamentos de Resíduos Ltda”.
Ainda segundo ela, “é recorrente, em peças de instrução deste inquérito, a indicação de conflito de interesses políticos ou, para outros, conflito fundiário relacionado à implantação da Naturalle em área quilombola como principal motivação do delito em apuração”.
Mesmo sendo o proprietário da Naturalle, o filho do ex-governador da Bahia não foi citado em nenhum momento no inquérito e nem procurado para depor. O sócio de Vitor Souto na Recycle e na Ecolurb, Marcelo Adorno Farias, também não teve seu nome mencionado.
Procuramos a Polícia Federal, mas eles disseram que não se manifestam sobre investigações em andamento.
Perguntei a Vitor Souto se a troca das empresas tinha relação com a linha de investigação da Polícia Federal que cita nominalmente a empresa Naturalle. Ele respondeu que “nenhuma relação”, pois “a empresa desconhece a existência dessas citações no inquérito, não só porque ele é sigiloso, mas também porque nenhum representante da Naturalle foi intimado a prestar qualquer esclarecimento sobre o assunto”.
Souto disse ainda que “deseja que o assassinato de Flávio Gabriel Pacífico seja esclarecido e os responsáveis punidos”. E reiterou que “a mudança foi uma operação estritamente empresarial, sem nenhuma relação com fatos policiais ou de outra natureza qualquer”.
Trapalhada e desinformação na troca entre as empresas
Mesmo depois de a Naturalle ter liberado as licenças para a Recycle operar o aterro, o departamento de comunicação institucional da empresa cometeu um erro que indica que essa operação não foi tão bem conduzida. Até o dia 30 de agosto desse ano, ainda constava no site da Naturalle que a empresa comandava o aterro de Simões Filho. Só depois que a reportagem do Intercept foi veiculada, a empresa atualizou o site e suprimiu essa informação.
A assessoria de imprensa da Naturalle também não deixou claro para nossa reportagem que as duas empresas tinham o mesmo dono. Antes de publicarmos a primeira matéria, os procuramos para esclarecer detalhes sobre a operação do aterro de Simões Filho. O assessor disse que os gestores da Naturalle não dariam entrevista e não se posicionariam por meio de nota sobre o caso, mas responderiam às nossas perguntas por escrito, se fossem enviadas por e-mail ou WhatsApp.
Enviamos quatro. Perguntamos sobre a relação da Naturalle com o aterro, as disputas com Binho e Mãe Bernadete pela instalação do empreendimento e como estava a operação do aterro atualmente. Em dois momentos, a assessoria mencionou a Recycle sem informar que a empresa tinha o mesmo dono da Naturalle.
Primeiro disse que “com relação ao aterro, a empresa não é mais proprietária do complexo, pois agora quem administra o local é a Recycle Waste Energy (RWE), especializada em aterros sanitários”. Depois, quando perguntamos se o aterro já estava operando com 100% da capacidade, a assessoria da Naturalle reiterou: “como já dissemos, ele hoje é de propriedade da RWE”.
Perguntamos à Naturalle a razão dessa informação ter sido omitida na primeira resposta enviada ao Intercept. Eles argumentaram que “Vitor Souto não é o único proprietário da Recycle” e que ele possui um sócio, “portanto não tinha porque fazer essa menção”. Disseram também que essas “são informações públicas e qualquer pessoa pode obtê-las junto aos órgãos competentes”.
Investigação da morte de Mãe Bernadete é dada como concluída
Na última quinta-feira, um dia antes do assassinato de Mãe Bernadete completar três meses, a Polícia Civil e o Ministério Público da Bahia convocaram uma coletiva para apresentar as investigações do caso. O MP denunciou cinco homens pelo assassinato da líder quilombola. Os crimes tipificados são de homicídio qualificado por motivo torpe, de forma cruel, com uso de arma de fogo e sem chance de defesa da vítima.
Arielson da Conceição Santos e Sérgio Ferreira de Jesus estão presos. Outros dois estão foragidos: Josevan Dionísio dos Santos e Marílio dos Santos. Um terceiro, Ydney Carlos dos Santos de Jesus, tem em aberto solicitação de prisão preventiva. A motivação do crime, exposta pela polícia, é de extração ilegal de madeira e tráfico de drogas.
A investigação apontou ainda que o tráfico montou uma barraca para comércio de drogas na região e Mãe Bernadete se opôs ao comércio. Ao mesmo tempo, ela brigou com Sérgio Ferreira que tentava extrair madeira na Área de Proteção Ambiental. Apesar de ter dado o inquérito da morte da líder quilombola como resolvido, a Polícia Civil disse que segue apurando informações sobre conflitos fundiários na região.
Em entrevista à TV Bahia, o promotor Luiz Neto, do MP-BA, foi perguntado sobre a reportagem do Intercept mostrando a luta de Mãe Bernadete e Binho do Quilombo contra a empresa Naturalle. Ele disse que ficou claro para o Ministério Público que a morte de Mãe Bernadete está ligada à luta contra o tráfico. E sobre Binho, é uma “investigação conduzida pela Polícia Federal”.
Jurandir Pacífico, filho de Mãe Bernadete, não se disse contemplado com o resultado das investigações. “Tô decepcionado com a atitude da Polícia Civil da Bahia por não querer pegar quem mandou matar Mãe Bernadete e porque. O que eles tão dando é um paliativo. Estou decepcionado com essa atitude”, disse ao Intercept.
Antes do inquérito ser divulgado, Pacífico e outros familiares da líder quilombola já haviam contratado peritos particulares para revisar o trabalho feito pela polícia. Desde o crime, Jurandir Pacífico tem sido acompanhado por uma escolta armada da Polícia Militar da Bahia. Ele também precisou deixar o quilombo Pitanga dos Palmares.
“Tem sido uma vida muito difícil. Me tiraram meu único irmão, minha mãe e também minha paz. Preciso da escolta, porque se não for protegido, sou o próximo da lista”, disse.
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