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Como a extradição de Julian Assange, fundador do WikiLeaks, pode destruir o jornalismo

Uma conversa inédita com a esposa do fundador do WikiLeaks, Julian Assange, preso há 11 anos por fazer jornalismo.


O WikiLeaks é uma das mais importantes organizações – e ideias – deste século, que inspirou uma geração de jornalistas e ativistas e levou medo aos corações dos políticos. E é por esse impacto que Julian Assange foi cruelmente perseguido pelos governos dos EUA e do Reino Unido e está preso injustamente há 11 anos, primeiro na Embaixada do Equador em Londres e agora na prisão de Belmarsh, na mesma cidade. 

Julian agora aguarda sua extradição para os EUA por acusações ridículas de espionagem, que efetivamente criminalizariam boa parte do jornalismo investigativo. O WikiLeaks nos lembrou do papel que o jornalismo deve desempenhar e promoveu democracia, transparência, responsabilização, liberdade de expressão e os direitos humanos.

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Julian, sua esposa Stella Assange e todos os seus colegas do WikiLeaks têm sido tão corajosos, enfrentando espionagem, assédio, tortura, prisão, difamação e mentiras e, por isso, merecem todo reconhecimento.

Tive a oportunidade de entrevistar a advogada e defensora dos direitos humanos Stella Assange na quinta-feira, no palco principal da conferência Web Summit em Lisboa. Ela entrou para a equipe jurídica de Julian em 2011 e, mais tarde, também se tornou sua esposa e mãe de seus dois filhos. 

Discutimos seu caminho para uma vida de ativismo político, a perseguição a Julian e as implicações globais do caso Assange para a liberdade de imprensa e a democracia. 

Abaixo está uma transcrição traduzida da conversa, editada para facilitar a compreensão. Você também pode assistir a conversa na íntegra no vídeo acima ou no YouTube do Intercept Brasil.

Leia a entrevista:

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Foto: Piaras Ó Mídheach/Web Summit via Sportsfile

Andrew Fishman: Você acabou de chegar em Portugal. Por que você está chegando ao Web Summit agora?

Stella Assange: Vim do aeroporto, participei de uma rápida sessão de perguntas e, agora, estou aqui com todas essas pessoas gentis, porque estou vindo de Oslo. Eu estava lá porque Julian recebeu o Prêmio Ossietzky, que foi concedido pela PEN International, divisão da Noruega. É uma organização que defende escritores em risco ou presos.

E Julian recebeu o prêmio porque ele é um escritor que esteve preso nos últimos quatro anos e meio no mais rigoroso presídio do Reino Unido. Esse foi um reconhecimento muito importante da sua condição de preso político.

Andrew: Por que Julian Assange está na prisão e como ele está?

Stella: Tem havido muita discussão sobre a ética envolvida na publicação e coisas assim. Mas o histórico de publicação do WikiLeaks é 100% de documentos autênticos.

São documentos e vídeos que mostram crimes de guerra sendo cometidos, o assassinato de mais de 15 mil pessoas no Iraque que não foi contabilizado, esquadrões da morte no Afeganistão. A lista é enorme. Crimes reais cometidos por forças de ocupação.

Julian está na prisão porque está sendo punido por expor uma superpotência. Uma superpotência que está em declínio e disposta a violar a sua própria Constituição, seus próprios princípios de liberdade de expressão e de imprensa para perseguir um jornalista.

Andrew: O que significa para a sociedade se ele não for libertado e se for condenado à prisão pelo resto da vida? E o que pode ser feito?

Stella: A acusação contra Julian tem um antes e um depois. Já estamos no cenário terrível em que um editor foi denunciado literalmente por receber, possuir e comunicar informações ao público.

Ele recebeu essa informação de Chelsea Manning, uma denunciante heroica que viu esses crimes de guerra e assassinatos indiscriminados e os denunciou, e foi presa por isso.

Mas, quando levaram essa acusação contra Julian, realmente ultrapassaram limites que ainda não haviam sido ultrapassados. Eles usaram a Lei de Espionagem dos EUA para denunciar um editor. 

‘Julian não é cidadão dos EUA. Ele é australiano e estava na Europa, publicando em parceria com organizações’.

E, ele não é acusado de espionagem, propriamente. Não existe acusação de que ele estivesse publicando em nome de uma potência estrangeira. Na verdade, ele estava publicando em benefício do público. É um completo reenquadramento do jornalismo como um perigo que precisa ser restringido.

Julian não é cidadão dos EUA. Ele é australiano. Ele estava na União Europeia na época e publicava em parceria com outras organizações: The Guardian, El País, entre outros. O New York Times. E eles publicaram as mesmas informações, também eram documentos sigilosos que não foram autorizados. Então poderiam usar o mesmo princípio para ir atrás deles.

O fundador do WikiLeaks, Julian Assange, foi processado pelos Estados Unidos por fazer jornalismo, apesar de ser australiano e morar na Europa à época das acusações. Foto: Ars Electronica

Andrew: O problema do New York Times.

Stella: Sim. Foi esse o motivo que o governo Obama deu para não processar Julian pelos vazamentos de Chelsea Manning. Foi o governo Donald Trump que veio com essa acusação, num contexto em que seu governo queria criar um precedente, jurídico e político, para restringir a liberdade de imprensa, para tornar perigoso publicar informações verdadeiras e jornalismo contundente.

Andrew: Mas o governo Biden está no poder, então está tudo resolvido, agora, não é?

Stella: O governo Biden deu continuidade ao legado mais perigoso e duradouro de Donald Trump: promover uma acusação criminal contra um jornalista, por ter publicado informações verdadeiras. E o Washington Post, o New York Times, todas as principais organizações de liberdade de expressão, organizações de direitos humanos, Anistia Internacional e afins, todos dizem que este caso é a maior ameaça à liberdade de imprensa no mundo, que ele precisar ser libertado, e que é uma perseguição política que basicamente criminaliza o direito do público de saber a verdade.

Andrew: Você é advogada, frequentou uma universidade de renome. Poderia ter tido uma vida muito mais simples, tranquila e confortável. Em vez disso, você enfrentou diariamente tantos sacrifícios e injustiças. E eu me pergunto, houve um momento em que você escolheu esse caminho? O que te faz seguir em frente, apesar da pressão intensa?

Stella: Bem, eu nasci na África do Sul, mas meus pais trabalhavam na área de desenvolvimento em Botsuana, em Lesoto, e estavam envolvidos na luta contra o apartheid. Então, eu cresci com pessoas politicamente ativas que lutavam contra a injustiça, escritores, intelectuais, pintores, pessoas assim.

E isso realmente fez parte da minha educação. Nesse período em que moramos em Botsuana, vários amigos dos meus pais foram assassinados por um esquadrão da morte da África do Sul, que atravessou a fronteira em 1985. Eu tinha apenas 2 anos e meio, mas esse evento moldou minha forma de ver, isso nos afetou muito de perto. Depois acabei me tornando advogada.

Eu me envolvi no caso de Julian em 2011, e acabamos nos apaixonando e formando uma família. E isso foi em um momento em que havia não apenas difamações contra Julian, mas verdadeiras conspirações contra sua vida, para sequestrá-lo e assassiná-lo. Era um ambiente muito perigoso e ameaçador. 

Mas, depois da prisão de Julian, tivemos dois filhos juntos. E, apesar de estar em um palco assim não ser meu lugar mais confortável, eu pensei que o maior risco é que nossos filhos cresçam sem pai, e eu preciso falar, preciso defender Julian, não apenas para sua libertação, mas para informar as pessoas o que está em jogo para todos. Porque é direito do público saber que, em última análise, é o alvo desse processo.

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Andrew: Quero ler para você uma manchete da The Economist em 2019. Ela diz: “Por que Julian Assange deveria ser extraditado. O cofundador do WikiLeaks é acusado de hackear, não de vazar, e isso é um crime grave”. Você pode explicar, por favor, por que isso é uma bobagem? E o que você aprendeu sobre o papel da grande imprensa? 

Stella: A The Economist tem problemas específicos com Julian Assange. Além disso, foi uma revista que assumiu a posição de que o Iraque deveria ser invadido. Algumas pessoas mudaram de posição, mas frequentemente você descobre que muitas pessoas hostis a Julian e ao WikiLeaks também comemoravam a guerra do Iraque. 

Não estou dizendo que [a revista] é tudo ruim, mas também durante a publicação dos e-mails e-mails Podesta, descobriu-se que a editora da The Economist se descrevia como amiga leal a Hillary Clinton. E a equipe de Hillary Clinton não estava feliz com as publicações do WikiLeaks em 2016, e a The Economist apoiou a campanha de Hillary.

‘Frequentemente você descobre que pessoas hostis a Julian e ao WikiLeaks comemoravam a guerra do Iraque’.

Tirando isso, é uma besteira total porque Julian não é acusado de hackear. Há uma acusação pela Lei de Fraude e Abuso de Computadores, [correspondente a] cinco anos dos 175 [a que ele foi condenado]. Eu chamei de acusação de “relações públicas”, que eles lançam, como a The Economist acabou de fazer, para fingir que se trata de qualquer coisa além da publicação, ao passo que 170 anos da pena são relativos à publicação.

E quando você olha para essa acusação, não tem nada a ver com hackear. Tem a ver com uma suposta conversa entre Julian e Chelsea Manning, em que, segundo os EUA, ele estaria ensinando a ela como esconder sua identidade, para acessar informações a que ela já tinha acesso. Chelsea Manning tinha acesso ultrassecreto, e ela na verdade não vazou nenhuma informação ultrassecreta. 

Andrew: Os dois negam isso, certo?

Stella: Sem dúvida. Mas, no processo dos EUA, a acusação sobre “computadores” era para ocultar a identidade de Chelsea, não para acessar informação.

Andrew: E a imprensa?

Stella: A imprensa… Olha, a posição da The Economist não é representativa. Eu poderia dizer muito sobre a imprensa, mas o fato é que o Washington Post, o New York Times e o Guardian, entre outros, se manifestaram para dizer que o caso deveria ser arquivado. Eles disseram que nunca acharam que ele deveria ser processado pelas publicações e apareceram em editoriais e afins para dizer que este caso é um ataque à liberdade de imprensa mundial, que o processo deveria ser arquivado e tudo mais. 

Há um consenso absoluto, exceto talvez pela The Economist. Mas isso é de 2019, talvez eles tenham mudado de ideia. 

A imprensa tem se comportado muito mal no passado, mas tem mudado de ideia. Realmente acredito que, se Julian não tivesse sido tão difamado e malfalado pela imprensa, não teria passado um dia sequer na prisão.

Que a falha da imprensa em seu dever de noticiar de forma crítica e objetiva o processo, a acusação e a perseguição a um colega jornalista – com quem eles fizeram uma parceria em muitas das publicações pelas quais ele é acusado – é um terrível erro. 

Uma má conduta, praticamente um aborto espontâneo da profissão jornalística. E a prisão de Julian é resultado de um esforço organizado para tentar minar seu apoio político e distorcer suas posições. Muitas histórias falsas foram publicadas, inclusive em alguns desses mesmos jornais.

A ex-militar Chelsea Manning, que enviou ao WikiLeaks de Assange documentos mostrando crimes de guerra dos EUA no Iraque. Foto: Stephen McCarthy/Web Summit Rio via Sportsfile

Andrew: Acho que é importante ressaltar que não importa o que você pensa sobre Julian Assange, porque essa acusação não diz respeito às suas posições políticas. Trata-se de questões muito maiores. Se for autorizado que ele seja processado dessa forma nos EUA, é um sinal para o resto do mundo de que isso é um comportamento aceitável. E isso pode acontecer em países como Brasil e México ou qualquer outro lugar.

Stella: Julian é australiano. Ele estava na Europa. Os EUA estão usando suas leis de forma extraterritorial para restringir a liberdade de expressão na Europa, restringir a fala de um cidadão estrangeiro. O que impedirá qualquer outro país de usar o mesmo princípio? Talvez Burkina Faso tenha certas leis de sigilo que queiram aplicar em Portugal a um jornalista português ou italiano. É completamente louco.

Andrew: Acabamos de publicar ontem que uma repórter do Intercept Brasil foi condenada a um ano de prisão por publicar algo de que um juiz não gostou. Eu acho que claramente há uma conexão, e essa é uma tendência global que é importante destacar. 

Eu quero mudar um pouco de assunto e te perguntar: olhando para trás, o WikiLeaks e Julian tiveram enorme influência nos últimos 17 anos sobre a política global. Você tem alguma noção do que deixa Julian mais orgulhoso em todo esse trabalho que ele fez com seus colegas?

Stella: Eu evito falar por ele, mas sei que ele tem especial orgulho de ter contribuído para a vitória de Khalid El-Masri no Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Ele é um cidadão alemão que foi sequestrado, entregue à CIA e torturado em uma prisão secreta no Iraque. E, quando eles perceberam que haviam capturado o Khalid El-Masri errado, o abandonaram na Macedônia alguns meses depois.

Ele tentou processar os EUA dentro dos EUA, mas foi determinado que isso dizia respeito à segurança nacional, e, portanto, ele não teria legitimidade. Então, ele foi ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos e usou documentos do WikiLeaks para vencer sua ação.

‘A ideia de que não tomar posições em que você realmente acredita é mais fácil é completamente falsa’.

Esse é um efeito no mundo real do bem que o WikiLeaks fez, de poder demonstrar o uso da tortura, a cumplicidade dos países europeus em muitos casos, e também a forma como a embaixada dos EUA estava pressionando, por exemplo, o governo alemão a se abster de solicitar a extradição das pessoas envolvidas em sua tortura e sequestro.

Assim, vimos a interferência em processos judiciais na soberania dos países europeus registrada e documentada nessas publicações. E isso foi incrível. Teve uma importância incrível para nós mesmos, para a preservação da integridade das nossas próprias democracias.

Andrew: Você e Julian assinaram a Declaração de Westminster, que é um tratado sobre os limites da liberdade de expressão que está sendo celebrado sob a justificativa de prevenir a desinformação. Pessoas de todo o espectro político assinaram o documento. 

Obviamente, há o elemento do governo, que já discutimos. Mas o que as empresas de tecnologia fazem para limitar a liberdade de expressão e a nossa capacidade de publicar jornalismo? E o que precisa ser feito para reverter isso?

Stella: O problema é que, basicamente, há uma porta giratória entre empresas de tecnologia e órgãos do governo e de inteligência que restringem nossa capacidade de perceber a realidade e as discussões que podemos ter abertamente. Não há espaço público. Há um espaço que é controlado por atores que não podemos ver e por restrições que não têm supervisão. Então precisa haver um bom e intenso impulso contrário.

Mas acho que o mais importante é que Julian é um tecnólogo, um inovador. Ele está do lado da liberdade de expressão e da transparência, e ele está preso. E a nossa única esperança de ter uma sociedade aberta e livre… 

As probabilidades estão contra nós, a menos que consigamos contra-atacar. E libertar Julian é essencial nessa luta. Por isso, eu peço a todos vocês que apoiem a liberdade de Julian, porque ele é um inovador, um tecnólogo, um jornalista, um pensador, um escritor, um intelectual público. Precisamos dele livre e capaz de falar.

Andrew: Você tem uma mensagem final para as pessoas do público que podem estar decidindo entre buscar um pouco mais de conforto ou seguir uma vida política e uma vida de ativismo? Algum pensamento inspirador ou mensagem para compartilhar?

Stella: A suposição de que não falar – não tomar posições em que você realmente acredita, no interior do seu interior – é mais fácil, isso é completamente falso. Ao longo do tempo, se você não escolher um caminho que esteja mais de acordo com a sua vida interna, você não vai encontrar as suas pessoas. É muito importante encontrar suas pessoas.

Você realmente cresce por meio da luta e das pessoas que lutam com você. Há muitas maneiras diferentes de ser um ativista. Você não precisa protestar diariamente. Conheci muitas pessoas que trabalham durante o dia, funcionários municipais, professores, engenheiros, tecnólogos. 

Apenas use suas habilidades para o bem e para a humanidade.

Tradução: Deborah Leão

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