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Em 15 de fevereiro de 2023, a Associação dos Trabalhadores Rurais da Região do Assentamento da Terra Prometida, em São Félix do Xingu, no Pará, elegeu um novo presidente: Rivelino Sales Rodrigues. Sob o comando dele, o sul da Trincheira Bacajá se encheu de novos barracos ilegais e viu ser levantada uma escola municipal de ensino fundamental dentro do território dos povos Mebêngôkre Kayapó e Xikrin.
Nove meses depois, Rodrigues foi preso pela Polícia Federal na operação de desintrusão das terras indígenas Apyterewa e Trincheira Bacajá. Ao todo, durante sua gestão, 600 famílias não indígenas passaram a viver no território. Os números são da própria associação.
A estratégia de Rivelino Rodrigues, assim que assumiu o cargo, foi expandir a vila ao máximo, em um curto espaço de tempo, para”obstruir e dificultar ações de reintegração de posse e desintrusão de áreas invadidas”, além de “mascarar a ação ilícita por meio do apelo social em prol dos invasores”, conforme relataram fontes ouvidas pelo Intercept Brasil.
O ex-presidente da Associação da Terra Prometida, Arilson Brandão, afirmou, em entrevista, que os lotes eram vendidos como se fossem legais e os compradores relataram não saber que se tratavam de terras indígenas. Pelo preço e demanda de terra, a notícia se espalhou e atraiu pessoas de todos os cantos do país, sobretudo Pará, Maranhão e Goiás.
A tática não é exatamente nova. A mesma coisa já tinha acontecido na Vila Renascer – área de ocupação ilegal que funcionava na Terra Indígena Apyterewa, vizinha à Terra Prometida.
Lá, conforme mostrou o Intercept em setembro, os invasores construíram uma vila, igreja e tomaram a terra para uso do garimpo. Quando houve a desintrusão, os invasores já eram mais numerosos que os próprios indígenas no território: eram cerca de mil deles, contra 730 Apyterewa.
Estratégia era forçar reforma agrária na Trincheira Bacajá
Com a vila da Terra Prometida povoada por algumas dezenas de famílias, os líderes se apoiaram no argumento da reforma agrária. E se organizam como se fossem meros posseiros ou pequenos agricultores, ocupando terras devolutas griladas por latifundiários ou sem função social.
Mas, definitivamente, não é o caso da Trincheira Bacajá – uma terra de 1.650.939 hectares, homologada em 1996, onde vivem mais de 700 indígenas dos povos Mebêngôkre Kayapó e Xikrin.
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Para sustentar ainda mais essa farsa, eles abrem CNPJs e fundam associações na tentativa de regularizar as terras. Isso tudo com apoio de políticos locais.
Políticos ajudaram invasores ocupar área indígena
A ideia de fundar a Associação da Terra Prometida, de acordo com a investigação da Polícia Federal, veio de dois conhecidos locais: o senador Zequinha Marinho, do Podemos, e o deputado estadual Delegado Caveira, do PL.
Ambos costumam receber os invasores em Brasília para articular estratégias de regularização da terra. Antes, em 2020, os próprios políticos locais haviam incentivado a criação da vila Terra Prometida dentro da Trincheira Bacajá.
Dias antes da prisão de Rivelino Rodrigues, Zequinha Marinho participou de reunião na Vila Renascer, que teve adesão dos moradores da Terra Prometida, e discursou em prol dos invasores.
“Sabemos da luta, eles nunca invadiram terra indígena de ninguém, foram invadidos por uma expansão da TI. Infelizmente, a Funai, ONGs e a imprensa os condenam como se fossem invasores”, disse Marinho.
“Se for o caso de tirá-los, o governo federal precisa dar ao pequeno produtor uma terrinha, uma casinha pronta, estrada para escoar a produção, saúde, educação, e financiamento para retomar a vida. Porque não é fácil ser arrancado pelas raízes de um lugar de forma injusta”, completou.
O senador reverbera a mesma narrativa difundida pelas lideranças sobre a mudança da extensão da TI Apyterewa. Segundo eles, lá na década de 1990, o governo ampliou a área dos indígenas, que era de 266 mil hectares, para 980 mil hectares, deixando 4,5 mil famílias de não indígenas em situação irregular. Pouco tempo depois, em novo acordo com o governo, a área foi reconfigurada para os atuais 773 mil hectares.
A Funai reconheceu cerca de 1,3 mil famílias que viviam no local e negociou indenizações – as outras 3,2 famílias não foram reembolsadas. Em alguns casos, o órgão entendeu que havia má-fé no pedido de reparação.
Alguns dos indenizados julgaram que receberam um valor muito baixo e começaram as negociações que perdurariam por anos. Em 2005, fecharam um acordo: a homologação das terras só aconteceria após o julgamento “da boa fé dos não indígenas”.
Só que o governo Lula se antecipou e, em 2007, antes do julgamento, homologou por meio de um decreto a TI Apyterewa. Os invasores nunca perdoaram a “traição” da justiça e do presidente petista.
O atual prefeito de São Félix do Xingu é outro personagem importante na defesa das invasões de terras indígenas. Ele já foi denunciado pelo Ministério Público Federal por abrir uma estrada usada por garimpeiros dentro da terra dos Parakanãs, na TI Apyterewa.
Ao final de seu primeiro mandato como prefeito, em 2016, organizou caravanas a Brasília para lutar contra as operações de desintrusão e reuniões para defender a presença de não indígenas em terras já demarcadas. Há ainda suspeitas de que ela tenha sido construída com madeira de castanheira, espécie em extinção e proibidas de serem exploradas desde 1996.
A mais recente denúncia do Ministério Público Federal contra ele veio depois do início das operações de desintrusão, em outubro. O MPF o acusa de atrapalhar a retirada de invasores da cidade e requereu o afastamento dele do cargo. A prefeita anterior, Minervina Maria de Barros Silva, do PSD, adotava a mesma postura em relação às invasões. Ela chegou a frequentar reuniões realizadas dentro da própria Terra Prometida. O ex-vereador Sílvio Alves Coelho, do PSC, o Silvio Sem Terra, já foi flagrado por fiscais do Ibama dentro da TI e ajudou a reconstruir uma ponte de acesso à região, logo após a desativação pelo Ibama. Ao ser questionado se teria se tomado lotes ilegais na região ou se vendia tais lotes, Coelho negou qualquer participação.
Nós tentamos contato com o advogado de Rivelino Rodrigues. Por telefone, Adebral Lima Favacho Júnior, também advogado da Associação da Terra Prometida, confirmou que a intenção era mesmo cadastrá-los no programa de reforma agrária. No entanto, segundo ele, os associados tiveram uma reunião com o Incra no fim do ano passado e tiveram esperança na regularização das terras – por isso seu cliente comprou, por R$ 18 mil parcelados, um lote de 20 alqueires.
“Ele comprou essa pequena área lá dentro em novembro do ano passado, porque existia uma promessa de regularização dessa área pelo Incra. Foi feita uma reunião com um superintendente e eles mandaram o pessoal fazer um mapa de georreferenciamento. E por causa desse mapa a intenção era colocar a terra para reforma agrária”, justificou. Um técnico de agrimensura enviou à superintendência regional do Incra um mapa para análise. Segundo Favacho, o órgão nunca deu um parecer à associação.
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