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Trabalhadores relatam que passaram fome, sede e tomaram calote no The Town

Dos mesmos donos do Rock in Rio, festival é acusado por ambulantes de condições indignas de trabalho e dificuldade de acesso à água e comida.

O The Town recebeu mais de 500 mil pessoas no Autódromo de Interlagos. O preço? Até R$ 800 por ingresso.

O festival The Town 2023, realizado em setembro no Autódromo de Interlagos, em São Paulo, foi um sucesso. Os shows de Bruno Mars, Ludmila e Maroon 5 encantaram o público, que comprou por até R$ 800 cerca de 500 mil ingressos para os cinco dias do evento. Só que, dois meses depois, não são os jornalistas, os artistas ou os fãs que ainda estão impactados pelo festival: são dezenas de trabalhadores ambulantes que dizem ter sido submetidos a condições degradantes – e muitos deles alegam sequer ter sido pagos corretamente.

Durante um mês, o Intercept Brasil colheu relatos de vendedores que acusam empresas envolvidas nesta primeira edição do evento de diversas ilegalidades. Além do calote, alegam acesso limitado à água e alimentação, situações de assédio e condições indignas. O trabalho consistia em vender bebidas – para isso, eles relataram que precisavam caminhar longas distâncias, no sol, para reabastecer o que foi vendido. Uma das empresas chegou a proibir os trabalhadores de apoiarem as mochilas com as bebidas no chão – evitando, assim, que tivessem momentos de descanso, segundo os depoimentos.

Regras rígidas: ambulantes não podiam nem colocar a mochila no chão sem ter que caminhar uma longa distância.

Tivemos acesso ao contrato de trabalho de sete funcionários do The Town. Eles previam remuneração apenas por comissão, mas sem a garantia de que recebessem um valor mínimo, o que é ilegal segundo advogadas especializadas que estão acompanhando o caso. A lei determina que o piso para pagamento em contratos por comissão deve ser de ao menos um salário mínimo – já que essa modalidade de contratação transfere o risco do negócio ao trabalhador.

Como se não bastassem as condições degradantes, os ambulantes ouvidos pelo Intercept alegam que sofreram um calote pelo trabalho no The Town. “Eu recebi R$ 300, mas o valor está errado. Era para ter recebido mais que o dobro disso. Só que eles não nos deram filipetas, não tinha nenhum tipo de registro”, disse um dos ambulantes. Quem conseguiu fazer a conta diz ter provas da fraude nos cálculos para pagamento: “Eu recebi R$ 300, mas tinha que ser R$ 2 mil”, disse outro trabalhador.

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Há ainda relatos de que uma das empresas terceirizadas errou os cálculos de pagamento e repassou valores a mais para uns funcionários e a menos para outros. Até agora, um dos que diz não ter recebido o valor integral corre atrás dos seus direitos. “Fui em todas as sedes da empresa cobrar e não encontrei ninguém”, contou.

Barrados na porta e humilhados para entrar

O The Town foi organizado pela Rock World, do empresário Roberto Medina, o criador do Rock in Rio. Além da empresa, os relatos também contêm diversas acusações de abuso cometidas pelas terceirizadas StaffOne Eventos e 2East, que foram contratadas pela produção do festival. A RockWorld e a 2East negam as denúncias e afirmam que seguiram a CLT, com o trabalho anotado na carteira dos profissionais (leia a resposta delas no fim deste texto).

Os trabalhadores disseram ter percebido, logo no primeiro dia do The Town, que a oportunidade seria, na verdade, um pesadelo. Vários relataram que, mesmo após gastarem dinheiro para emitir a documentação necessária para trabalhar como vendedores ambulantes do festival, tiveram o credenciamento negado na portaria do evento. No primeiro dia, cerca de 50 trabalhadores teriam permanecido por mais de 12 horas dentro de uma sala aguardando a liberação – que só foi ocorrer para todos, sem restrição, no segundo final de semana do evento.

Helenice, ambulante contratada para o evento pela empresa Twist, relembra o caso com revolta: “Nosso nome estava na lista, mas não fomos credenciados. Fomos enrolados por 12 horas em uma salinha que eles montaram, de pé, sem comida, sem retorno. Depois de um tempo, quase já no final do dia, começou a chover. Tinham 50 cabeças lá dentro da sala e ainda queriam expulsar a gente. Durante um dia todo, mentiram para a gente, falando que as credenciais tinham chegado, mas não conseguiam buscar. A verdade é que não queriam nos ajudar”.

Joelinton também compartilhou sua experiência. “No primeiro dia, fiquei debaixo de chuva tentando trabalhar. Cheguei no horário certinho, não consegui”. Segundo ele, após trabalhar no segundo dia do The Town, percebeu que estava ganhando um valor muito abaixo de outros vencedores. “Recebi R$ 260 por um dia inteiro de trabalho, sendo que tinha gente fazendo a mesma coisa, contratado por outras empresas, ganhando até R$ 3 mil”.

Um dos contratos aos quais o Intercept teve acesso demonstra a remuneração oferecida pela empresa StaffOne Eventos a um dos trabalhadores. Com a venda de uma cerveja da marca Lagunitas, que era ofertada ao público por R$ 23, os ambulantes ganhavam cerca de R$ o,50. Para chegar a uma diária de pagamento de R$ 500, seria necessário vender mil cervejas por dia.

Trecho de contrato mostra valor pago aos ambulantes.

A disparidade de pagamento entre trabalhadores foi notada por dezenas de profissionais logo no primeiro dia de trabalho. “Na minha base, tinha eu e mais cinco pessoas de São Paulo, o resto era tudo do Rio de Janeiro. Os meninos do Rio perguntaram quando estávamos ganhando, e falamos que era R$ 1 por chopp. Eles: ‘Ave maria, vocês são loucos’. Começou ali o embaraço. Fizeram uma coisa só para eles ganharem, e nós trabalhávamos [em um regime] semelhante à escravidão”, afirma Túlio. 

Trabalhadores fizeram motim e Ministério do Trabalho foi acionado

Helenice, Joelinton, Túlio e outras dezenas de funcionários resolveram se mobilizar no segundo dia. Fizeram um motim e suspenderam o serviço até que os contratantes revissem as condições de pagamento e trabalho. Segundo eles, com mediação de auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego, foi feito um acordo verbal para melhoria do pagamento da comissão. Procurado pela reportagem, o MTE não se manifestou sobre a atuação no caso.

“Veio o Ministério do Trabalho, pegou depoimento de todo mundo. Paramos o The Town e fizeram um acordo de boca para aumentar a comissão. Mas não cumpriram nada do que falaram. Eles pegaram depoimento de um por um e falaram para procurarmos eles caso não recebêssemos”, diz Túlio. Ele alega que recebeu  R$ 594 dos R$ 2,7 mil que tinha para receber do The Town. 

“Eles alegaram que fizeram confusão no pagamento e que teriam pagado dobrado para alguns. Mas, quem ficou faltando, se fodeu. O povo que eles erraram se deu bem, mas muitos recebemos a menos, não recebemos nada. Visitei todas as sedes da empresas para cobrar e, até agora, nada”, contou.

“Eles riam da nossa cara”, disse Marcia, outra trabalhadora, sobre a reação das empresas às reclamações feitas por vendedores durante o evento. Wesley,  mais um trabalhador ouvido pela reportagem, relatou outro caso emblemático de possível retaliação. Após ter cobrado o pagamento atrasado do The Town, foi chamado pela mesma empresa para trabalhar na Fórmula 1. Como precisava do dinheiro, aceitou. Por lá, no entanto, diz ter sido alvo de uma armação. “Fui acusado sem provas de que estaria bebendo chopp e tive que assinar um papel de que a dispensa era por justa causa. Na segunda-feira, não tinha nem o leite da minha filha. Foi a pior sacanagem do mundo”, lamentou. 

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Transporte e água até para cachorros, não para trabalhadores

Os relatos colhidos pelo Intercept dão conta de que, para os ambulantes, a rotina de trabalho no The Town era repleta de humilhações. Uma delas é que, segundo eles, o evento oferecia transporte e alimentação até para cachorros, mas a situação mudava quando se tratava do direcionamento dos funcionários para as bases de trabalho. Os trabalhadores contam que, para repor os produtos dentro da estrutura do festival, no autódromo, caminhavam distâncias superiores a quatro quilômetros. Além disso, conseguir comida  também era um desafio.

“Os que sentiam fome eram obrigados a percorrer distâncias gigantescas para conseguir o voucher de alimentação, que era um direito nosso. Nunca tinha visto isso. Teve muita gente que preferiu não comer, até porque a hora de almoço que eles faziam questão que a gente tivesse nunca houve. Não fomos orientados a pausar, pelo contrário. Nos cobravam o dia todo. O esgotamento era surreal, você não faz ideia”, disse Joelinton.

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The Town é a nova empreitada de Roberto Medina, criador do Rock in Rio. Foto: Ian Cheibub/FolhaPress.

Contrato é ilegal e MPT precisa ser efetivo, dizem advogadas

Nos últimos dois meses, as advogadas Maira Pinheiro e Tainã Góis organizaram uma ação coletiva dos funcionários contra as empresas na justiça, além de petições junto ao Ministério Público do Trabalho e ao Ministério do Trabalho e Emprego. “Temos atuado para sistematizar as denúncias e promover um diálogo entre os trabalhadores”, afirmou Pinheiro. Segundo ela, o contrato é ilegal por uma série de motivos. Um deles é que o “contrato de trabalho, regido pela CLT, como é explicitamente o caso desses, não pode ter a remuneração baseada apenas em comissão”, criticou.

Pinheiro sustenta que “não é razoável dizer que os contratos são assinados de forma livre, pois as pessoas não estão cientes de seus próprios direitos” e que “as empresas captam trabalhadores em meio a um público hipossuficiente, que fica limitado para procurar seus direitos após trabalhar”. 

Para ela, as empresas contratantes se aproveitam da fragilidade informativa dos trabalhadores, submetendo-os a situações degradantes. “O contato com os trabalhadores deixou claro o abuso da falta de informações das pessoas e da necessidade concreta que elas têm de trabalhar. Isso leva a condições laborais muito complicadas”, enfatizou.

Ambulantes ganhavam cerca de R$0,50 por cada cerveja vendida a R$23.

Sobre as consequências jurídicas da ação, ela espera que o Ministério Público do Trabalho e do Ministério Público Estadual tomem medidas efetivas. “Não podemos normalizar que pessoas morram trabalhando em grandes eventos”. 

Segundo Pinheiro, essas más práticas não estão restritas a um evento específico – e teriam correlação com um problema maior nos grandes eventos, a “priorização do lucro máximo em detrimento das pessoas”. A advogada conecta os incidentes ocorridos nos shows de Taylor Swift no Rio de Janeiro, como a morte de uma pessoa e casos de pessoas passando mal, à exploração enfrentada pelos trabalhadores.

“Não podemos separar isso que aconteceu no show do Rio de Janeiro, que morreu uma pessoa, que pessoas passaram mal com calor e falta de água, que caíram no chão e se queimaram, com as condições de trabalho dos trabalhadores, que ficam horas e horas com uma mochilas no sol. As condições de descanso são indignas. As pessoas são obrigadas a trabalhar sob sol e chuva sem nenhum tipo de proteção”, concluiu.

Empresas dizem que seguiram ‘padrões rigorosos’

As acusações de trabalho degradante não são novidade para o mercado dos festivais, nem para Roberto Medina, da Rock World. Em 2013, o Ministério do Trabalho e Emprego flagrou 93 pessoas em trabalho análogo à escravidão no Rock in Rio. Na edição de 2015, outras 17 pessoas foram submetidas a essas condições. Nos dois casos, como de praxe, a responsabilidade foi atribuída a empresas terceirizadas.

As denúncias também não são exclusividade da RockWorld. Em 2018, o Intercept revelou que o Lollapalooza, produzido pela Time For Fun, contratou pessoas em situação de rua ilegalmente para erguer os palcos do festival. 

O episódio se repetiu nos anos seguintes: em 2019, o Sindicato dos Artistas e Técnicos de Palco também denunciou trabalho análogo à escravidão no festival. Em 2022, o Padre Júlio Lancellotti denunciou que o esquema de quatro anos antes, quando o Lollapalooza contratou pessoas em situação de rua para o festival, voltou a ocorrer. Neste ano, não foi diferente: em março, poucos dias antes do evento uma operação resgatou cinco trabalhadores em situação análoga à escravidão.

Ao Intercept, a Rock World afirmou que os parceiros são instruídos a realizarem os processos de contratação dentro da legislação brasileira e “não admite qualquer ação que viole direitos humanos”. Também disse que integrantes do Ministério Público estiveram presentes, e que os trabalhadores seguiram “padrões rigorosos de contratação”, como registro CLT de toda a equipe, vale alimentação e transporte. Leia aqui a resposta completa da empresa.

Já a 2East afirmou que todos os trabalhadores foram devidamente registrados sob regime CLT, com carteira de trabalho anotada, e tiveram suas remunerações, benefícios e encargos quitados de acordo com a legislação. Sobre os trabalhadores barrados, segundo o gerente de RH da empresa, o evento só disponibilizou a credencial para os trabalhadores que tiveram a “documentação previamente inserida na plataforma”. A 2East também afirma ter distribuído bebedouros e vouchers de alimentação, além de EPIs. A empresa diz ter sido “devidamente fiscalizada”, sem que nenhuma irregularidade tivesse sido encontrada. Leia a resposta da empresa. 

O The Town já tem uma próxima edição confirmada em 2025, novamente em São Paulo. 

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