As vozes que alertam para a tragédia que assola Maceió, com o risco iminente de colapso em uma mina operada pela Braskem, não vêm de hoje. Nos meados dos anos 1970, movimentos sociais e a imprensa local já contestavam as atividades de exploração mineral na capital alagoana – e, desde aquela época, foram alvo da repressão dos militares por supostamente serem uma ameaça contra a atividade industrial do país.
Um levantamento do Intercept Brasil em documentos produzidos sob sigilo pela Ditadura Militar revela como o Serviço Nacional de Informações, o SNI, foi acionado para monitorar quem se levantou contra a Salgema Indústrias Químicas – empresa que, em 2002, se tornaria a Braskem. O SNI era a estrutura de espionagem usada pelo estado para perseguir adversários políticos e reprimir forças consideradas inimigas dos militares.
Os relatórios de inteligência, disponíveis para consulta no Arquivo Nacional, demonstram que as atividades de mobilização contra a expansão da exploração de minério na região, como reuniões, atividades sindicais, passeatas e até um bloco de carnaval foram minuciosamente monitoradas para evitar que o movimento ganhasse corpo em Maceió.
A atuação do SNI não era à toa. A exploração do sal-gema em Maceió era uma das meninas dos olhos do projeto desenvolvimentista da Ditadura Militar. Mais que isso, em 1975, a Petrobras e BNDES – na época, chamado apenas de BNDE – aportaram recursos milionários do governo federal no empreendimento.
Vale lembrar que a exploração de sal-gema começou em 1970, durante o governo de Médici, que liberou a extração em áreas subterrâneas de Maceió no contexto do ‘milagre econômico’ brasileiro. A reserva, estimada em 3 bilhões de toneladas, foi descoberta em 1943, quando se buscava poços de petróleo na região. Já no governo Geisel foi criada a empresa Salgema – que, de forma sistemática, iniciou a extração da substância de mesmo nome, a partir de 1976. Com isso, o serviço secreto dos militares foi ativado para monitorar o tema.
Ditadura militar já sabia de ‘risco grave’ em Maceió
O mais antigo dos relatórios é de setembro de 1976 e demonstra que Francisco Hermenegildo Autran, um trabalhador sindicalizado que havia chegado a um posto de direção na Salgema, foi espionado pelos militares. “Ex-Cabo da Marinha do Brasil, conhecido por suas atividades de aliciamento e proselitismo comuno-subversivo no Centro de Instrução Almirante Wandelkoch em época anterior à Revolução de 31 de março de 1964”, diz o documento..
Um outro relatório datado de 1977 revela que o SNI tentou, sem sucesso, investigar uma possível sabotagem de trabalhadores à Salgema, denunciada pelo então diretor-presidente da companhia, Roberto Coimbra. “Chega-se a suspeitar de sabotagem por parte de elementos pertencentes ao quadro de funcionários da empresa. Apesar das investigações realizadas pela empresa, não foram descobertos os responsáveis pelos fatos ocorridos”, diz o relatório.
A desconfiança sobre os trabalhadores tinha razão de ser: os impactos negativos da exploração mineral na região já apareciam na imprensa e poderiam contaminar o corpo de funcionários. Como relembrou o site ComeAnanás, em março de 1977, menos de uma semana após o início da produção de cloro, surgiram os primeiros peixes mortos próximos ao local de lançamento de resíduos de sal-gema no mar, Mais de 60 pessoas que apresentaram problemas respiratórios, náuseas e vômitos também já tinham sido atendidas no posto de saúde do Trapiche da Barra.
Em 1983, uma reportagem do jornal Gazeta de Alagoas, publicada em 13 de março, novamente acendeu o alerta do SNI. O relatório de inteligência produzido à época pelos arapongas demonstra que a estrutura de espionagem do governo federal, chefiada pelo coronel Newton Cruz, sabia dos riscos de um “acidente grave” na região – justamente o que está prestes a ocorrer agora, em 2023.
A matéria do jornal alagoano virou tema de registro dos espiões do SNI justamente por ter revelado, com base em um relatório confidencial da Polícia Militar de Alagoas, que o poder público planejava “ações a serem desencadeadas, no caso de acidente grave na Indústria Salgema, que resulte em vazamento de cloro para a atmosfera” – o que dava eco às críticas ao aumento da exploração mineral na região.
Em 1985, no último ano do governo militar, foi retomada as discussões sobre a ampliação da capacidade operacional da Salgema e a instalação do Polo Cloroquímico em Marechal Deodoro. Isso reacendeu as mobilizações sobre o tema em Alagoas. Desde lá, o projeto era alvo de preocupações quanto ao transporte e à eliminação de subprodutos da exploração, como o ácido clorídrico.
Um outro relatório do SNI detalhou como se deu, em 17 de maio de 1985, uma das manifestações mais marcantes na história do caso, justamente em função do debate sobre a intensificação das atividades da Salgema e a inauguração do Polo Cloroquímico. No texto, o espião do SNI registrou que o protesto teve início às 16h e que as faixas e cartazes tinham os seguintes dizeres: “Não deixe duplicar a Salgema”, “O futuro será cinza” e “Não deixe duplicar seu risco”.
PM alagoana já tinha até plano de ação em caso de acidentes graves na Indústria Salgema, atual Braskem.
relatório listou as entidades sindicais, movimento sociais e políticos que participaram do evento:o então deputado estadual Ronaldo Lessa, do PMDB e “ligado ao PC do B”, do deputado estadual Moacir Andrade, do PMDB, e da deputada estadual “e membro do MR-8” Selma Bandeira, além do vereador Edberto Ticianeli, do PMDB e “militante do PC do B” e da vereadora Kátia Born do PMDB “e simpatizante do PC do B”, além do professor e ecologista José Geraldo Wanderley Marques e dos jornalistas Anivaldo Miranda e Jorge Moraes.
Por fim, o espião afirmou que o ato poderia até ter sido maior, não fosse o fato de, horas antes, o professor Evilásio Soriano, mencionado como “coordenador do Polo Cloroquímico, da Salgema Indústrias Químicas”, ter participado de um debate na televisão local apresentando os argumentos positivos para a ampliação.
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O movimento contrário à instalação do polo e ao aumento das atividades da Salgema, de fato, conseguiu atrasar os planos da empresa, que chegou a ir aos jornais ameaçando transferir as atividades para outros estados, como Bahia e Sergipe. A pressão dos acionistas, no entanto, levou à autorização da expansão da Salgema, no final de 1985.
Nem isso, nem o fim da Ditadura, fez o SNI – cuja estrutura foi mantida no governo do presidente civil José Sarney – parar de acompanhar as atividades contra a exploração mineral em Alagoas.
No dia 7 de fevereiro de 1986, em plena Praia de Pajuçara, um informante do SNI foi escalado para acompanhar o bloco Meninos da Albânia, que criticou publicamente a Salgema.
No ano seguinte, em 1987, um relatório do setor do SNI que acompanhava a indústria brasileira mostra a sensibilidade dos militares sobre a questão ambiental, ao analisar as “dificuldades e óbices” da Salgema.
Para o SNI, o o principal obstáculo da Salgema era a ” interpretação errônea que a imprensa alagoana e a opinião pública fazem sobre as possíveis externalidades (danos à flora e à fauna em decorrência de lixos químicos, etc) advindas da industrialização de produtos pela empresa”, diz o documento.
31 anos depois, a empresa destruiria cinco bairros da cidade no maior desastre ambiental urbano da história do Brasil.
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