Por que uma grande empresa como a estatal Correios, responsável pelo envio e entrega de correspondências no Brasil, permite que concorrentes privados vendam o seu serviço, utilizando sua marca e sua própria estrutura e oferecendo preços infinitamente mais baixos, causando-lhe prejuízos financeiros? Empregados e ex-dirigentes dos Correios estão em busca dessa resposta.
Empresas intermediadoras de venda de fretes mantêm agências ‘piratas’, como definem funcionários, que emulam as cores e o logotipo dos Correios. Nelas, é oferecido hoje, por exemplo, o envio de um Sedex por R$ 16,68, enquanto a própria estatal o vende a R$ 25,80. Só que a correspondência é entregue pelos próprios Correios.
O total operado hoje por esses intermediadores de venda de fretes já somou R$ 1,5 bilhão, segundo uma nota técnica da Superintendência Executiva de Finanças dos Correios, elaborada em novembro e obtida pelo Intercept Brasil.
A estatal, segundo funcionários e ex-dirigentes, faturou apenas R$ 300 milhões entre janeiro a julho de 2023, um quinto do valor de vendas esperado em agências próprias ou franqueadas. E, só no primeiro semestre deste ano, houve perda para os Correios de 1,3 milhão de clientes, de acordo com o estudo.
Segundo um balanço publicado em 1º de dezembro, o prejuízo acumulado dos Correios em 2023, até setembro, foi de R$ 824 milhões. Boa parte das perdas é causada pela ação dos intermediadores, segundo funcionários e ex-dirigentes dos Correios ouvidos pelo Intercept.
Ex-dirigentes dos Correios são ligados às empresas
No total, 11 empresas operam no esquema de intermediação de venda de fretes, segundo funcionários dos Correios. No fim de novembro, a estatal resolveu tomar uma atitude: suspendeu temporariamente os serviços de coleta de algumas agências piratas, que mantinham indevidamente o logotipo dos Correios em suas fachadas. A medida foi relacionada a duas empresas, a holding Onlog e a Noss Serviços em Logística.
A Onlog tem entre seus prestadores de serviços e consultores dois ex-dirigentes dos Correios: José Carlos Rocha Lima, presidente da estatal entre 1990 e 1993, e José Furian Filho, diretor regional da estatal em São Paulo, entre 2008 a 2010, e diretor-comercial em Brasília e vice-presidente de Negócios, Logística e Negócios Públicos, de 2011 a 2019.
Rocha Lima foi chamado a depor na CPI dos Correios, em 2005, segundo reportagens publicadas à época, por suspeita de receber R$ 50 mil de uma empresa que teria feito acordo para vencer uma licitação da estatal. Ao Intercept, ele negou ter sido investigado. “Eu nem era dos Correios naquele momento, já havia saído. Fui lá para falar sobre a Varilog. Como poderia ter sido favorecido nos Correios? Os jornais dizem o que querem”, contestou.
Para o ex-presidente dos Correios, a atividade dos integradores de cargas “é legal” e tem de ser incentivada. “As críticas não procedem porquanto são os Correios, com muita propriedade, e de forma inteligente, o maior estimulador de tal prática. E precisa continuar sendo estimulada pelos Correios, como forma de minimizar a crescente perda de receitas para a concorrência de transporte de cargas em geral”.
Após deixar a estatal, Rocha Lima trabalhou para as empresas Vaspex, antiga transportadora de frete aéreo ligada à Vasp, entre 1996 e 2000, e VarigLog, ligada à Varig, entre 2003 e 2003. Furian Filho é consultor da Onlog, por meio da empresa F&F Consultoria Estratégica Ltda, na qual aparece como sócio-administrador. Em evento dos Correios em São Paulo, o Correios Tech Day, em junho deste ano, se apresentou como representante da Onlog.
Como sócios formais da Onlog aparecem apenas Renato Galindo Jardim da Silva, ex-proprietário de uma agência franqueada dos Correios, e Sérgio Eduardo Júnior, empresário do ramo de logística. Os filhos de Rocha Lima, Patrick Rocha Lima e Bernard Rocha Lima, são citados como sócios da empresa, mas apenas em um anúncio da própria Onlog.
Renato Silva Jardim, que é o CEO da Onlog, atribuiu as críticas a sindicalistas ligados aos Correios. “Os integradores estão trazendo volume e carga para uma empresa que está ociosa, com tamanha estrutura. Eles (os sindicalistas) vão acabar destruindo a empresa em que trabalham. Quando esse colaborador diz que a política de preço tira o emprego dele, é exatamente o contrário o que ocorre. Fica um monte de gente jogando contra si própria”, afirmou ao Intercept.
Pedro de Almeida Feijó, ex-superintendente-executivo da diretoria-comercial dos Correios na gestão de Dilma Rousseff, também é apontado como representante de duas empresas intermediadoras de fretes, a Syrna Serviços de Consultoria e Assessoria e Logística, como administrador, e a Mandou Bem Log, como sócio-administrador. Ele também tem participação em mais duas empresas, a Domov Participações e Cortat Feijó Consultoria e Assessoria. O Intercept enviou perguntas a Feijó, nos endereços citados em cadastros das empresas, mas não obteve resposta.
‘Atravessadores’ têm condições especiais
O negócio é lucrativo porque as empresas intermediadoras têm uma tabela especial de preços para postagens, por força de contrato, já que operam com grandes volumes – casos das operadoras de e-commerce, por exemplo.
Quando o cliente traz um volume maior de encomendas, conforme as regras do mercado, os Correios utilizam tabela com tarifas escalonadas, cujos valores vão decaindo. Os intermediadores vendem e repassam essas tarifas menores para representantes de pequenos negócios e empreendedores, que utilizam a rede de serviços com menor custo. Os intermediadores, então, ficam com um percentual do preço das postagens.
As intermediadoras têm esses descontos por comprarem, inicialmente, grandes volumes de etiquetas de correspondências. Mas, segundo funcionários dos Correios, não estariam autorizadas a montarem agências, consideradas piratas, como se fossem os próprios Correios, repassando e vendendo esses descontos obtidos, com a oferta de serviços bem mais baratos.
‘Empresas tiveram os contratos rescindidos por desrespeito ao contrato e uso da marca dos Correios’.
Ao Intercept, o presidente dos Correios, Fabiano Silva dos Santos, defendeu os integradores e concentradores de cargas – empresas que oferecem os preços menores de fretes –, mas admitiu problemas. “Os integradores de cargas são clientes que postam conosco, têm uma estrutura e precisam dos Correios. Eles criam um volume de carga e postam nos Correios com uma tabela de desconto, diferenciada, pelo volume de postagem. Isso é normal que exista”, disse Santos.
O problema, para ele, é quando eles oferecem preços mais baratos ou fazem propagandas tipo ‘‘postem aqui que é melhor’, por exemplo. “Estamos tomando as medidas necessárias para que isso não aconteça. Nós notificamos”, afirmou Santos. “Nós herdamos isso. Empresas tiveram os contratos rescindidos pela prática reiterada de desrespeito ao contrato e ao uso da marca dos Correios. Isso merece um tratamento e estamos tentando cuidar”.
Santos disse também que os Correios não podem “sair rescindindo contratos”, devido a um procedimento aberto pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica para investigar um suposto abuso por parte da estatal na relação com clientes, por ter uma posição dominante no mercado de encomendas.
“A gente precisa tomar cuidado com a política comercial porque ela foi objeto de um acordo no Cade. Tem um acordo em vigência, que vence em fevereiro agora de 2024. E se a gente tomar medidas que desviem muito do que foi firmado, podemos ser multados. E a multa é pesada. Os Correios já foram autuados pelo Cade por essa prática diferenciada de preço”, disse o presidente. Ele afirmou que a mudança da política comercial da empresa é um dos objetivos estratégicos.
‘A publicidade é descarada e [os intermediadores] colocam a empresa pública em total descredibilidade’.
Em julho de 2019, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, ao analisar uma disputa entre os Correios e um desses intermediadores, Eder de Macedo Medeiros, decidiu que a empresa dele não poderia “se utilizar dos serviços dos Correios, em virtude de um contrato para fim diverso, a fim de auferir lucro nessa seara, em claro desvio de finalidade”.
À época, ao dar razão aos Correios, que havia determinado a suspensão dos serviços desse intermediador, o tribunal considerou que Medeiros “não visava utilizar os serviços da empresa pública para si, mas revendê-los para terceiros” e “as circunstâncias reais do negócio jurídico divergem do conteúdo escrito do contrato e do que era legítimo”. Os Correios afirmaram que essa disputa envolvia uma outra questão, a venda de etiquetas de postagem via online, e que, ao rescindir o contrato por descumprimento de normas contratuais, Medeiros “buscou a justiça para manutenção do contrato e indenização”, não foi atendido e “posteriormente houve recurso de apelação”.
A atividade dos intermediadores de venda de fretes é conhecida pelos Correios ao menos desde 2016, segundo funcionários da estatal. Em 2021, a Associação Brasileira de Franquias Postais, a Abrapost encaminhou à direção dos Correios uma denúncia sobre a expansão da atuação desses intermediadores. A associação representa os franqueados autorizados, de fato, a operar agências dos Correios, e classifica as agências desses intermediários como “clandestinas”.
A entidade, por meio de seu presidente, Chamoun Hanna Joukeh, apontou a “proliferação de lojas de intermediação de fretes que utilizam-se de tabelas dos Correios para fazerem concorrência com os próprios Correios”, alertando sobre o surgimento das lojas físicas que vendem os serviços dos Correios com menor custo.
“Essa atividade está sendo fomentada através de contratos que estas empresas firmam junto aos Correios e passam a oferecer no mercado um contrato guarda-chuva com tarifas mais baratas”, complementou.
Segundo a Abrapost, a direção dos Correios, em resposta naquele momento, disse ter ciência do aumento de empresas que realizam a intermediação de cargas, mas alegou que “tais atividades são realizadas por conta e risco dessas empresas” e que “não há, portanto, como os Correios interferirem na relação privada entre tais empresas intermediadoras e os clientes que as contratam para a realização dos mencionados serviços de apoio”.
Em junho de 2023, a associação voltou a alertar sobre a perda de receita dos Correios. “A publicidade é descarada e [os intermediadores] colocam a empresa pública em total descredibilidade, pois como pode uma empresa privada, na qualidade de operadora logística concorrente dos Correios, ter uma tarifa menor que a própria empresa pública?”, questionou a associação.
A Abrapost também moveu neste ano um processo na 20ª Vara Federal Cível do Distrito Federal pedindo que os Correios determinassem a nulidade e suspensão dos contratos firmados com as intermediadoras por não serem licitados. Não há ainda sentença.
A associação de franqueados também encaminhou denúncias ao Tribunal de Contas da União. O TCU, em agosto, deu prosseguimento ao processo “pois os fatos narrados podem ser classificados como de alto risco, relevância ou materialidade”. Mas indeferiu o pedido de suspensão cautelar feito pela entidade. O relator do processo que acompanha o caso no TCU é o ministro Walton Alencar Rodrigues. Não há ainda decisão.
Funcionários dos Correios protestam contra presidente indicado por Lula
Vários funcionários e ex-dirigentes dos Correios ligados ao próprio PT, o partido do presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, também têm denunciado os intermediários de venda de fretes.
Eles criticam duramente a atuação do atual presidente da empresa indicado por Lula. Ex-dirigente da OAB-SP, Fabiano Silva dos Santos é um dos principais articuladores do grupo Prerrogativas, um coletivo de advogados, juristas e juízes que apoia o PT. “Críticas de aliados às vezes vêm por conta de interesses que não foram atendidos. Fogo amigo é pior do que o do Centrão, desgasta mais”, me disse Santos.
Nas últimas semanas, funcionários dos Correios espalharam em grupos de aplicativos de mensagens documentos com críticas ao posicionamento de Santos, que apareceu em vídeos e fotografias ao lado de sócios de agências apontadas como “piratas”, que usavam indevidamente o logotipo dos Correios em suas fachadas.
Na terça-feira, 5 de dezembro, a Federação Nacional dos Trabalhadores em Correios, ligada à CUT, também encaminhou ao presidente da estatal um pedido de esclarecimentos e medidas para a proteção da marca Correios.
“A Fentect está ciente de que o problema tem sido causa de substanciais prejuízos aos Correios (R$ 824 milhões), já que as práticas ilegais e desleais referidas têm provocado uma queda no faturamento da empresa, mormente no setor de transporte de encomendas, conforme se depreende do balanço divulgado no mercado”, diz a nota assinada pelo secretário-geral da entidade, Emerson Marinho.
Para a Federação de Trabalhadores, denúncias de um suposto favorecimento evidenciam “condutas ilícitas, que são passíveis, em tese, de serem enquadradas como atos de improbidade”. De acordo com o sindicalista Marinho, estaria configurada uma “concorrência desleal” e o caso “reveste-se de enorme gravidade, pois as denúncias apontam para a participação de ex-funcionários dos Correios que ocuparam elevados cargos na estatal, de sorte a demandar providências enérgicas e rápidas para apuração dos fatos e solução do problema”.
Dois ex-dirigentes dos Correios, que pediram anonimato por pertencerem aos quadros da estatal, afirmam que empresários do ramo já haviam tentado implantar, a partir de 2015, a intermediação de venda de fretes, por meio da criação de agências paralelas, sem sucesso. À época, a direção dos Correios, se poscionava contra essa proposta.
Em 2019, no governo Jair Bolsonaro, a ideia ganhou força, com o apoio do então presidente dos Correios, o general da reserva Floriano Peixoto Vieira Neto, ex-comandante de missão da ONU no Haiti entre 2009 e 2010 e amigo do então presidente havia 40 anos. Floriano fora escalado por Bolsonaro para comandar a privatização da empresa.
A intermediação de venda de fretes começou a ser implantada aos poucos e avançou no final do ano passado, ainda na gestão de Bolsonaro. Agora, no governo petista, os próprios aliados afirmam que a prática estaria sendo impulsionada com o apoio do novo presidente dos Correios, que contesta.
Na gestão atual da estatal, quatro diretorias são comandadas por nomes indicados pelo PT, e três outras pelo partido aliado conservador União Brasil. Nos cargos de chefias de departamentos e gerências, teriam sido mantidos nomes indicados pelo governo Bolsonaro, segundo funcionários dos Correios. Fabiano Santos contestou essa informação.
Na nota da Superintendência Executiva de Finanças que avaliou a ação dos intermediadores de venda de fretes, técnicos dos Correios propuseram, entre outras medidas, a proteção da marca Correios, a criação de um termo de adesão para pessoas físicas e uma revisão nas regras de postagens industriais. Nada disso foi oficialmente implementado.
A direção dos Correios, em nota, afirmou o documento citado “é um estudo acadêmico, que foi inscrito em um concurso interno realizado em novembro, por empregados e empregados”, para a Superintendência de Finanças, com o objetivo “de discutir ideias” e os dados e informações que constam das minutas “não são corporativos e não foram validados pela direção da empresa”.
A empresa também afirmou que o prejuízo de R$ 824 milhões é atribuído, entre outros motivos, à deterioração do relacionamento da empresa com os seus maiores clientes (“marketplaces que que acabaram criando sua própria logística e se tornaram concorrentes dos Correios”), no governo Bolsonaro. Também “à falta de projetos estratégicos que possibilitariam à empresa ter alternativas para compensar a queda do volume de postagens do segmento postal, que ocorre no mundo todo”, entre outras razões.
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