A Marinha do Brasil acabou de escolher a empresa responsável por fornecer tecnologia para monitoramento e vigilância do território marítimo brasileiro. A vencedora da licitação é a Siatt, uma empresa ligada ao Edge, um conglomerado estatal de defesa dos Emirados Árabes Unidos.
O negócio foi fechado em novembro, já no governo Lula. Mas foi articulado por Marcos Degaut, ex-secretário de Produtos de Defesa do governo de Jair Bolsonaro. Ao sair do governo, Degaut foi para a iniciativa privada – justamente liderar a operação do próprio grupo Edge na América Latina, como CEO do escritório regional. Foi ele quem deu início à parceria com a empresa quando ainda estava no governo.
O envolvimento da empresa dos Emirados Árabes Unidos com o governo brasileiro suscita preocupações. Nos últimos anos, o Grupo Edge foi associado a sistemas de espionagem, como o BeamTrail, o Digital14 e o DarkMatter, com capacidade de invadir redes e sistemas e utilizados por ditaduras para monitorar opositores.
A contratação da Marinha está relacionada ao Sistema de Gerenciamento da Amazônia Azul, o Sisgaaz. A Siatt venceu a licitação contra concorrentes importantes do setor, como a italiana Leonardo, a israelense Elbit e até a brasileira Embraer Defesa. O sistema, que será operado conjuntamente pela Siatt e pelo grupo Edge, tem o papel de proteger e monitorar vastas áreas costeiras do Brasil, representando cerca de 67% do território nacional. A primeira torre de comunicações do sistema será instalada nos próximos meses em Arraial do Cabo, no Rio de Janeiro.
A Amazônia Azul não apenas abriga recursos marinhos vitais, mas também é responsável por uma grande parcela do tráfego marítimo global. O objetivo do projeto é monitorar e proteger todas as áreas marítimas de interesse e águas interiores, incluindo recursos marinhos vivos, portos, embarcações e infraestrutura marítima.
A Siatt, vencedora da concorrência, é uma empresa brasileira. Foi fundada em 2015 como uma dissidência da Mectron – empresa do setor gerida pela Odebrecht, que entrou em recuperação judicial colapsou com após o avanço das investigações da Operação Lava Jato. Em setembro deste ano, no entanto, o Grupo Edge comprou 50% das ações da Siatt.
A licitação não foi o único negócio do grupo dos Emirados com a Marinha: o conglomerado afirma ter aportado US$ 120 milhões para tocar, junto com a Marinha, a construção de um míssil antinavio de longo alcance. Hoje, a Marinha já tem tecnologia de até 70 km, mas a ideia é desenvolver um novo modelo capaz de alcançar um alvo em até 200 km e competir com o Exocet, fabricado pela francesa MBDA.
CEO da Edge articulou parceria quando ainda estava no governo Bolsonaro
Enquanto esteve no Ministério da Defesa como secretário de Produtos de Defesa, Marcos Degaut criou um “grupo de trabalho” entre as duas partes. A existência do mecanismo só foi revelada depois que a Defesa divulgou uma portaria mostrando que integrantes da pasta usaram uma reunião com a empresa dos Emirados Árabes Unidos como justificativa para uma viagem ao país.
Oficialmente, ainda sob Bolsonaro, em resposta a um pedido de acesso à informação, a pasta afirmou que a proposta de criação do GT surgiu em 3 de agosto de 2021, por meio de uma carta enviada por Degaut ao presidente da divisão de Mísseis e Foguetes do Grupo Edge.
No documento, o então secretário de Produtos de Defesa do governo brasileiro convidou uma delegação do grupo estatal para uma visita técnica às empresas da Base Industrial de Defesa brasileira. A visita ocorreu de 29 de agosto a 4 de setembro de 2021, com passagens pelo Distrito Federal e cidades de Jacareí, Piquete e São José dos Campos, no estado de São Paulo.
Curiosamente Eduardo Bolsonaro não publicou fotos ou fez menção ao encontro.
De acordo com o governo brasileiro, durante o encontro, “foi aventada então a proposta de criação de um Grupo de Trabalho conjunto entre o Ministério da Defesa e o Grupo Edge”. De acordo com a justificativa oficial, o GT serve para estreitar as relações bilaterais entre os dois países “na área de Produtos de Defesa”.
A segunda reunião do GT ocorreu entre os dias 19 e 20 de fevereiro de 2022, em Abu Dhabi, capital dos Emirados. O encontro foi a sequência da participação na comitiva de Bolsonaro que se encontrou com o presidente russo, Vladimir Putin, poucos dias antes da deflagração do conflito entre Rússia e Ucrânia.
Em maio de 2022, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, do PL paulista, também participou de uma reunião na sede do Grupo Edge, em Abu Dhabi. O filho do ex-presidente integrou uma delegação diplomática, militar e comercial do Brasil na visita à empresa. A reunião também teve a presença do então secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência, Flávio Rocha, entre outras autoridades.
Mesmo sendo quase um influencer nas redes sociais, curiosamente Eduardo Bolsonaro não publicou fotos ou fez menção ao encontro. A reunião só veio a público depois que foi registrada pela agência de notícias local Emirates News Agency. No Brasil, o compromisso foi noticiado apenas pelo site especializado LRCA Defense Consulting.
Governo se recusou a divulgar atas ou conteúdos dos encontros
Assim como na reunião com Eduardo Bolsonaro, o conteúdo das reuniões do grupo de trabalho criado por Degaut com o Grupo Edge não se tornou público. O Ministério da Defesa decretou sigilo nas atas de reunião entre o governo federal e a estatal. A classificação de sigilo consta em resposta a um pedido de acesso à informação feito por mim.
“Os temas tratados nessas reuniões foram qualificados de alta sensibilidade e acesso restrito, a fim de evitar prejuízos às negociações e às cooperações nacionais na área de defesa, em andamento, conduzidas no âmbito desse GT”, diz um dos trechos da resposta do Ministério da Defesa.
A pasta alegou que a decisão é resguardada por um inciso da Lei de Acesso à Informação que permite o sigilo de informações que tenham potencial de “prejudicar ou pôr em risco a condução de negociações ou as relações internacionais do país ou as que tenham sido fornecidas em caráter sigiloso por outros Estados e organismos internacionais”.
O Intercept procurou o Grupo Edge, o Comando da Marinha e o Ministério da Defesa para questionar um possível conflito de interesses na atuação de Marcos Degaut e solicitar mais detalhes sobre a negociação. A empresa dos Emirados respondeu, em nota, que “todos os procedimentos e regulamentos legais estabelecidos pelos órgãos relevantes envolvidos na licitação foram respeitados”.
A Marinha negou qualquer influência de Marcos Degaut. Disse que a licitação para contratação da Siatt “foi pública e impessoal” e que “as empresas interessadas em participar do chamamento público, contido no D.O.U. de 18 de julho de 2023, precisavam apenas atender às demandas e requisitos”.
O Ministério da Defesa, por sua, vez, afirmou que Marcos Degault foi exonerado do cargo de secretário de Produtos de Defesa em 8 de agosto de 2022 e que, como o acordo com a Siatt e o Grupo Edge ocorreu após o período de 180 dias de quarentena recomendado a funcionários públicos da alta administração federal, “a situação não se enquadra no conceito de conflito de interesses, conforme art. 3, I, da Lei n. 12.813, de maio de 2013”.
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