A Fundação Roberto Marinho aderiu a um compromisso de preservar o meio ambiente e garantir os direitos das comunidades tradicionais enquanto seu presidente, o bilionário José Roberto Marinho, continua sendo um dos principais investidores de um projeto de resort de luxo dentro de uma área de preservação ambiental na ilha de Boipeba, no sul da Bahia.
O empreendimento, segundo ambientalistas, causará danos irreparáveis, além de ameaçar a existência de comunidades quilombolas e pesqueiras locais. Um líder comunitário que se opôs à empreitada foi forçado a fugir de sua casa na Ilha de Boipeba, após receber ameaças de morte, como mostrou o Intercept Brasil em maio.
No compromisso, firmado durante a Conferência de Mudanças Climáticas da ONU, a COP 28, realizada este ano em Dubai, a Fundação Roberto Marinho foi uma das trinta organizações brasileiras que disseram reconhecer e valorizar “as comunidades indígenas e tradicionais”, o que inclui os quilombolas — de acordo com uma nota de rodapé – “e seus saberes para a conservação dos biomas, do patrimônio ecológico e para o desenvolvimento de soluções”.
A aparente contradição entre os investimentos de Marinho e as promessas da Fundação Roberto Marinho pode ser enxergada como um exemplo de greenwashing – a prática de apresentar uma fachada ambientalista que obscurece os danos ambientais que estão sendo cometidos.
Os irmãos Marinho, José Roberto, João Roberto e Roberto Irineu, possuem, juntos, a oitava maior fortuna do Brasil, de acordo com a Forbes. Eles são herdeiros de Roberto Marinho, morto em 2003, e fundador do Grupo Globo, maior conglomerado de mídia da América Latina. A organização, da qual José é vice-presidente, é uma grande apoiadora do agronegócio, exemplificada por sua ampla campanha de propaganda #AgroÉPop. O setor é o que mais desmata e emite de carbono no Brasil.
A Fundação Roberto Marinho é uma organização filantrópica que se mantém com parte da fortuna gerada pela Globo e está intimamente interligada com os veículos de mídia do grupo, com projetos e apoiando programas educativos.
A organização não divulga suas demonstrações financeiras e não respondeu às nossas perguntas sobre suas finanças e investimentos relacionados à proteção dos quilombos.
Compromisso climático inclui grandes desmatadores
Os assinantes do Compromisso Brasileiro da Filantropia sobre Mudanças Climáticas prometem “minimizar o impacto climático das nossas próprias operações”, “financiar, fortalecer e amplificar as vozes das comunidades na linha de frente” e promover “ações mais ambiciosas e concretas junto a nossos principais stakeholders“, que incluem seus financiadores e controladores. A ação é voluntária e não estabelece metas ou prazos concretos ou critérios de inclusão ou exclusão.
Para as organizações da Globo, a mudança climática é “algo que não só está presente nas telas, mas está bastante presente no nosso dia a dia”, disse João Alegria, secretário geral da fundação, a uma plateia em um painel que lançava a iniciativa durante a conferência da COP 28.
“A gente trabalha muito com educação de jovens e adultos, educação em quilombos, em comunidades e favelas do Rio de Janeiro”, completou Alegria, sendo muito aplaudido ao fim do discurso.
Outros signatários incluem o Fundo JBS pela Amazônia — cuja representante também participou do evento em Dubai mas, curiosamente, não citou o nome “JBS” na sua fala —, o Fundo Vale, o Instituto SLC, o Instituto Neoenergia, que são fundações financiadas por alguns dos maiores players brasileiros nos setores de pecuária, mineração, agronegócio e energia — justamente alguns dos principais causadores de danos ambientais e mudanças climáticas do país.
O compromisso é uma iniciativa do Grupo de Institutos, Fundações e Empresas, o Gife, uma organização nacional guarda-chuva que reúne 167 instituições filantrópicas privadas, familiares e corporativas que aportaram mais de R$ 4,8 bilhões em ações sociais em 2022.
Em nota, o Gife disse que não tem “a atribuição de fiscalizar ou certificar seus associados”. Mas destacou que cabe a todas as instituições associadas “realizar suas atividades conforme o nosso Código de Ética”.
O grupo disse ainda que, no Compromisso Brasileiro da Filantropia sobre Mudanças Climáticas, buscou “estimular as organizações signatárias a adotarem compromissos práticos e consistentes a partir de uma nova perspectiva de desenvolvimento, condicionado pela proteção ao meio ambiente”. E que uma das iniciativas “é o reconhecimento e a valorização de comunidades indígenas e tradicionais e seus saberes para a execução de soluções sustentáveis que respeitem e promovam a conservação dos biomas e do patrimônio ecológico”.
Um “checklist bastante sério” de danos socioambientais
“Esse compromisso, mesmo assim, implica em parar e se olhar enquanto organização, olhar para dentro e fazer uma revisão bastante séria, um checklist bastante sério do que nós não estamos fazendo”, disse Alegria em sua breve apresentação.
Se você pesquisar no Google “José Roberto Marinho quilombo”, os primeiros resultados detalharão um item urgente para colocar no checklist: o fato de que o chefe do Alegria é dono de 20% das ações da Mangaba Cultivo de Coco LTDA.
A empresa pretende transformar 1.651 hectares de uma Área de Proteção Ambiental — o que corresponde a um quinto da paradisíaca Ilha de Boipeba — em um playground dos ricos, com condomínios de luxo, duas pousadas, uma marina e pista de pouso. O terreno foi comprado de um empresário e ex-prefeito local que responde a um processo na justiça baiana por tomada de terra.
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O Ministério Público Federal já havia recomendado em 2019 “interromper o processo de licenciamento ambiental do empreendimento”, chamado Ponta dos Castelhanos, por questões sobre a legitimidade da posse. O MPF orientou que, antes de liberar o resort, deve-se priorizar a regularização de terras das comunidades quilombolas na região.
A posição do MPF, no entanto, foi solenemente ignorada pelas autoridades estaduais da Bahia quando deram a licença para o empreendimento de José Roberto Marinho. A licença prevê permissão para desmatar 2,9 hectares de vegetação nativa de Mata Atlântica.
Depois que o Intercept noticiou as irregularidades do projeto da Mangaba em março, a Superintendência do Patrimônio da União exigiu a suspensão da obra em três ordens consecutivas – a última ainda está vigorando.
“Esse empreendimento vai matar física e existencialmente as comunidades tradicionais e quilombolas, porque eles ou vão ter que sair de lá ou vão deixar de viver como sempre viveram, abrindo mão de suas tradições e costumes”, disse ao Intercept Miguel Accioly, biólogo e professor da Universidade Federal da Bahia.
A comunidade pesqueira Cova da Onça e o Quilombo Monte Alegre que ficam encostados no terreno reivindicado pela empresa de Marinho seriam transformados pelo empreendimento. Mais dois quilombos, Vila de Boipeba e Moreré — ambos recentemente reconhecidos pela Fundação Palmares — também seriam afetados.
“Isso vai gerar um transtorno para as espécies que vivem naquele ambiente”, explicou Accioly, que projeta que as obras e o trânsito aquático exterminem “a vida marinha que ali se desenvolve”.
Os danos socioambientais serão “irreversíveis” na avaliação do biólogo.
Nós procuramos a empresa Mangaba Cultivo de Coco LTDA que, por meio de nota, disse que o projeto “atende à legislação patrimonial vigente, bem como aos requisitos relativos ao licenciamento ambiental”.
A empresa disse ainda que o projeto em Boipeba trata-se de um “condomínio rural” e não de um resort – embora sem detalhar as diferenças que isso traz como impacto socioambiental.
Por fim, a Mangaba disse que sempre esteve aberta ao diálogo com a comunidade Cova da Onça e com os demais órgãos competentes para esclarecimentos.
Líder comunitário ameaçado a morte em Boipeba
O pescador Raimundo Esmeraldino, conhecido como Raimundo Siri, é uma das principais lideranças populares de Boipeba e tem se posicionado abertamente contrário ao complexo hoteleiro Ponta dos Castelhanos. Quando a obra foi embargada, Siri foi ameaçado de morte em mensagens que circularam em grupos de WhatsApp dos moradores de Cova da Onça.
De acordo com o Conselho Pastoral dos Pescadores, a CPP, entidade ligada à Igreja Católica, a empresa da qual Marinho é sócio contratou entrepostos que têm feito um trabalho forte de convencimento e cooptação dos moradores. Segundo os relatos, eles estariam prometendo mudança de vida, geração de emprego e circulação de dinheiro em Boipeba com a instalação do resort. O trabalho de persuasão fez parte da comunidade se voltar contra Siri. Assim que as ameaças começaram a surgir, ele fugiu da ilha.
Tais táticas são comuns em conflitos de terra que envolvem comunidades tradicionais e contribuem pelo fato de que o Brasil é o país que mais matou líderes ambientais no mundo na última década, de acordo com dados da ONG Global Witness.
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“Negociar compensação é negociar vidas”
Apesar dos danos que já tem causado, o resort de José Roberto Marinho tem se vendido na mídia baiana como um “vetor de desenvolvimento sustentável” e fala em condicionantes para atender as comunidades locais, como campo de futebol, instalação de equipamento esportivo, plano gestão de resíduos sólidos, gestão urbana e melhorias no saneamento básico, além de uma estação de tratamento de resíduos.
No Compromisso Brasileiro da Filantropia Sobre Mudanças Climáticas está acordado que é fundamental que as fundações e seus financiadores criem e promovam “mecanismos justos para compensação e reparação”.
Raimundo Siri diz não acreditar na justiça dessas compensações e, ainda que elas venham, não são suficientes para o tamanho da destruição causada pelo resort de luxo de José Roberto Marinho. “Só o volume de água que eles vão usar no empreendimento não tem como compensar. A quantidade de crimes ambientais e ameaças a espécies nativas também não serão compensadas com educação ambiental ou campo de futebol. Negociar compensação é negociar vidas”, disse Siri.
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