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Já faz um ano que assistimos às cenas de barbárie em Brasília, causadas pela turbamulta de apoiadores de Jair Bolsonaro que invadiu e depredou prédios do governo federal. Mas existe um detalhe fundamental nessa história que foi pouco explorado desde então: o que os golpistas realmente desejavam?
Falo do povo mesmo, não dos setores que efetivamente comandaram o movimento.
E não me pergunto isso mirando o aspecto mais superficial desse desejo, a sua forma, a sua estética. Afinal, sabemos bem o que eles queriam à profundidade da pele: que o país seguisse governado por Jair Bolsonaro e seus asseclas. Mas o que há por debaixo dessa superfície? E o que isso diz sobre o Brasil e seus males?
De princípio, é necessário dizer algo que talvez seja contraintuitivo: não há nada de historicamente excepcional no 8 de Janeiro. Nem no movimento, nem na sua pauta. E compreendo genuinamente o seu estranhamento lendo isso e se lembrando da destruição na Praça dos Três Poderes.
Afinal, quando foi que vimos algo semelhante?
E este talvez seja o nosso primeiro ponto crucial: o que assistimos no 8 de Janeiro foram “apenas” cenas, imagens, o aspecto mais superficial de um evento cujas raízes estão plantadas no centro da nossa própria ideia de nação. Dito de outra forma: apesar de toda aquela selvageria, não havia nada de novo ali. Foi “apenas” o de sempre.
Mas vamos por partes.
Primeiro, acredito que Bolsonaro e seus apoiadores fora de controle também não podem ser tratados como aspectos descolados do seu tempo, isto é, como se representassem um desvio sombrio na marcha civilizacional brasileira. Uma marcha que supostamente se reinicia – vejam só – com o fim da ditadura, se consolida com a eleição de Fernando Henrique Cardoso e atinge o seu ápice durante os governos do PT, em especial durante o governo Lula.
E digo que não podem ser tratados dessa forma por dois motivos. O mais óbvio: tratá-los assim reforça as paixões que mobilizaram e ainda mobilizam os movimentos de extrema direita no país. Afinal, eles também se imaginam como uma resposta à suposta marcha progressista, tida por eles como um projeto de destruição dos valores nacionais e de degeneração da ordem.
Não é por coincidência que os golpistas de Brasília respondiam que não se tratava de uma tentativa de um novo golpe militar, mas de uma “intervenção militar para restauração da ordem”.
E devemos levar essa frase a sério, pois não é um simples eufemismo para disfarçar a natureza criminosa da tentativa de golpe. Até porque pessoas capazes de se filmar invadindo e depredando prédios do governo não estão particularmente preocupadas em esconder seus crimes. Mas digo isso lembrando que o golpe de 1964 também foi pensado dessa forma, como um movimento pela restauração da ordem.
Aqui, atingimos o segundo ponto: tanto em 1964 quanto agora, os movimentos conservadores se imaginavam como os últimos defensores de uma nação em declínio moral.
Mas será que essa percepção corresponde à realidade? Quando olhamos para o contexto político que antecede 1964 e para aquele que antecede 2023, percebemos outros pontos em comum, como uma campanha de terror promovida por veículos de comunicação (e hoje por meio das redes), pânico moral e notícias falsas sobre o que poderia acontecer se a “esquerda” continuasse no poder.
Lembrando que o conceito de “esquerda” que mobiliza essas pessoas provavelmente não é igual ao seu e certamente não é igual ao meu.
Não por coincidência, João Goulart é deposto antes mesmo que pudesse implementar as chamadas “reformas de base” que prometiam revolucionar as estruturas sociais. “Prometiam”, essa é palavra chave aqui. Pois o fato histórico é que, apesar do apoio popular, Jango não tinha apoio político para implementá-las.
O apoio popular ao golpe de 1964 se constrói pelo medo do que imaginavam que ele poderia fazer, e não pelo que efetivamente fazia. Afinal, os grupos políticos que se sentiam ameaçados pela sua presidência ainda estavam e permaneceram no poder.
Percebemos algo semelhante no contexto que antecede o 8 de Janeiro. A despeito de bons avanços em algumas áreas cruciais, como a distribuição de renda e o acesso aos serviços de saúde e educação, especialmente durante os governos do PT, a marcha que supostamente se reinicia com a redemocratização nunca foi capaz de cumprir as promessas de transformar o país efetivamente em uma democracia.
Seguimos com dispositivos herdados não apenas da ditadura,mas do próprio período colonial, como a estrutura racista da sociedade e as questões fundiárias.
Não por acidente, alguns dos avanços desse período, como a citada melhora na distribuição de renda, acabaram sendo rapidamente fagocitados por essa estrutura conservadora da sociedade brasileira, terminando por reforçá-la. Digo isso mirando o posicionamento político de boa parte da classe média que se formou durante os primeiros anos do governo do PT, especialmente no Sul e no Sudeste.
Na política institucional a situação é ainda pior. Grupos políticos conservadores e/ou oriundos da ditadura nunca estiveram longe do poder. Diria, inclusive o contrário.
O que os golpistas realmente desejavam? O Brasil de sempre.
Quando olhamos para a política nacional, percebemos que, ao longo das últimas décadas, os movimentos conservadores vêm aumentando consideravelmente a sua presença no Parlamento, tornando-se base de governos progressistas, como o próprio PT.
O golpe em 2016 é um sintoma desse movimento: a forma como o impeachment de Dilma Rousseff é aprovado sem grande resistência, inclusive com o apoio de ministros do próprio governo, demonstra como o país jamais se libertou dessa tal ordem conservadora.
A emergência do bolsonarismo e a eleição de Jair Bolsonaro são apenas uma consequência natural da permanência dessa estrutura. O 8 de janeiro também.
Eis mais um motivo para não concebê-los como movimentos extraordinários: seria uma postura negacionista, que ignora não apenas a permanência dessa estrutura, como o seu fortalecimento.
Aqui, atingimos o ponto nevrálgico de toda essa discussão.
A tal ordem que eles defendiam nunca esteve de fato ameaçada, muito pelo contrário, ela apenas cresce e se fortalece no país. De tal modo que hoje – tendência de algumas décadas –, um ano depois, até políticos e grupos que se consideram progressistas ou de esquerda não apenas propõem alianças pragmáticas com essa ordem conservadora, como defendem abertamente alguns de seus valores. Especialmente em áreas como a segurança pública ou a defesa dos interesses do agronegócio.
A tal ameaça à “ordem” que mobilizava os golpistas do 8 de Janeiro não passa de uma realidade alternativa, um pânico moral alimentado constantemente pela propaganda de setores que se beneficiam diretamente dessa mesma ordem, como os militares.
Setores que nunca foram de fato ameaçados. Por isso, repito: o que os golpistas realmente desejavam? O Brasil de sempre.
E isso nos ensina que, enquanto não houver uma ruptura efetiva com essa “ordem”, uma política que busque fugir dessa lógica antiga que rege o Brasil, veremos outros 8 de Janeiro se repetindo.
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