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Entrevista: ‘Política de cuidado é tirar a carga de trabalho das mulheres’, diz economista

A economista Luiza Nassif Pires defende que a política de cuidados inclua trabalhos em parte providos pelo governo, permitindo melhor qualidade de vida para as mulheres.

Mulheres seguram as mãos uma das outras em uma demonstração afetuosa de cuidado.

“O que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago”. É assim que a historiadora italiana Silvia Federici define há décadas o trabalho de cuidado realizado pelas mulheres. Quando ela esteve no Brasil em 2018, ocasião em que a entrevistei, qualquer conversa séria sobre o tema pareceria loucura.

Vivíamos os dias derradeiros do governo Michel Temer, que aboliu a Secretaria de Políticas para Mulheres e precedeu a sucessão de tragédias que viriam com Jair Bolsonaro, Damares Alves e seu Brasil dividido em azul e rosa – um país em que o papel das mulheres como cuidadoras foi enaltecido com palavras, mas absolutamente desvalorizado no plano das ações.

Ainda vivemos nesse Brasil que naturaliza a exploração do trabalho feminino dentro do lar e da família, colocando sobre suas costas 9,6 horas semanais de trabalho doméstico e de cuidado a mais do que sobre as dos homens. Mas as coisas podem começar a mudar de figura.

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Em 5 de novembro de 2023, os “desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil” foi tema da redação do Enem, um termômetro da lenta – embora existente – disseminação desse debate país afora. 

Apenas seis dias antes, o governo federal havia dado um passo enorme para enfrentar esses desafios: a publicação do Marco Conceitual da Política Nacional de Cuidados do Brasil, um documento aberto para consulta pública que será usado como base para a criação de uma futura política voltada à garantia do direito de cuidar e ser cuidado com dignidade.

O documento é de autoria da Secretaria Nacional de Cuidado e Família do Ministério do Desenvolvimento Social, criada no início do atual governo Lula e comandada pela socióloga Laís Wendel Abramo. A pasta tem como principais objetivos propor estratégias intersetoriais para instituir a Política Nacional de Cuidados, além de integrar políticas para atender “às demandas de cuidados e proteção social das famílias”.

Para você entender o que está em jogo, conversei com a economista Luiza Nassif Pires, professora do Instituto de Economia da Unicamp e diretora do Made-USP, o centro de pesquisa em macroeconomia das desigualdades da Universidade de São Paulo. A economia do cuidado e da reprodução social estão entre os principais temas de pesquisa de Nassif Pires.

Leia os principais trechos de nossa conversa.

Intercept Brasil – Qual a diferença entre trabalho doméstico e tarefas de cuidado?

Luiza Nassif Pires – O trabalho doméstico pode ser definido como um trabalho exercido dentro do lar. Ele tem esse recorte do ambiente, enquanto o cuidado é voltado para a garantia da reprodução e da continuidade da vida. Esse trabalho pode ser feito no lar ou não, de forma remunerada ou, mais frequentemente, assim como o trabalho do lar, de forma não remunerada.

Luiza Nassif Pires fala sobre política de cuidados. Foto: Felipe Felizardo.

O que é o Marco Conceitual da Política Nacional de Cuidado?

É um documento definindo o que a Secretaria Nacional de Cuidado e Família do Ministério do Desenvolvimento Social entende como cuidado e qual o seu papel na garantia dele. Essa pasta foi criada para que exista um órgão institucional responsável pela garantia desse direito e para que ele seja pensado como algo essencial. Ele tem três pilares: o de cuidar, de ser cuidado e de praticar o autocuidado. 

O marco define como essa secretaria entende a possibilidade de expansão dos serviços de cuidado, de modo que ele seja universalizado e hierarquizado para priorizar o cuidado daqueles que têm maior necessidade. 

No momento, isso está dissolvido em diferentes espaços. Uma parte do cuidado é garantida por meio dos serviços de saúde, uma pelos de educação e outra está pulverizada. O marco é uma tentativa de centralizar isso.

O que não pode ficar fora da futura Política Nacional de Cuidados?

A gente fala muito sobre direito ao cuidado e não pensa muito em quem cuida. Uma política de cuidado precisa estar muito focada nos direitos trabalhistas de quem cuida e na universalização do cuidado. Muitos dos nossos direitos estão atrelados à força de trabalho formal. O direito a uma licença, de você tirar um dia porque está doente, é garantido apenas ao trabalhador formal. A mesma coisa com a aposentadoria, que não deve ser apenas direito de quem trabalhou formalmente ou contribuiu. 

Outra questão muito colocada entre as economistas feministas é o fato de muitas mulheres donas de casa, que não têm um trabalho formal, terem seus direitos muito atrelados a um parceiro, que talvez seja formalizado. Devemos, ao menos, garantir o direito ao cuidado a quem cuidou a vida inteira, mas não foi vista como trabalhadora. 

O trabalho doméstico remunerado no Brasil – que hoje em dia é feito majoritariamente por mulheres negras – também é uma parte desse serviço, como o das babás, também. Essa mão de obra tem uma taxa de contribuição à previdência muito baixa. 

Então, fica a pergunta: quem no futuro irá cuidar de quem cuidou a vida inteira? Uma política de cuidado precisa responder isso.

O cuidado com os idosos muitas vezes cria um ciclo vicioso para as mulheres: elas precisam se ausentar do mercado de trabalho para praticar esse cuidado e deixam de contribuir para a previdência, assim têm uma velhice financeiramente instável. Então, quem cuidou a vida inteira, acaba sendo cuidada por uma filha, perpetuando esse ciclo. 

Isso entra no que entendemos como uma crise do cuidado, desse modelo de privatização da responsabilidade do cuidado. A responsabilidade pelo cuidado é dada às famílias, mas não é dada a elas, necessariamente, a capacidade de cuidar. 

Aqui vou falar da pobreza de tempo. Nossa medida de pobreza vem muito da renda. Mas vamos pegar uma família nuclear típica, normativa, de um casal com um filho e uma filha, em que tanto o marido quanto a mulher trabalham, e têm uma renda per capita um pouquinho acima da linha da pobreza. Só que eles não têm absolutamente nenhum tempo para cuidar da mãe ou dos filhos. Eles vivem com um tempo que não possibilita transformar aquela renda em uma qualidade mínima de vida.

Devemos, ao menos, garantir o direito ao cuidado a quem cuidou a vida inteira, mas não foi vista como trabalhadora.

Essa família não tem a capacidade de contratar alguém para cuidar dos filhos, ou de comer fora. A mulher precisa cozinhar seus próprios alimentos, ela tem toda uma necessidade de trabalho dentro do lar. Se você comparar com uma família em que a renda per capita é exatamente igual, mas só o marido trabalha, você tem a mulher fazendo apenas os trabalhos do lar, que são trabalhos, mas dão qualidade de vida àquela família. 

A primeira família tem uma necessidade maior de serviços de cuidado prestados pelo estado do que a segunda. Mas, quando a gente olha para as famílias [por meio de pesquisas], não tem formas de distinguir isso. Em que cidades ou para que grupos demográficos é mais importante você ter serviço de cuidado com idosos e para quais é mais importante ter serviço de creche? É muito difícil a gente fazer essa diferenciação desse tipo de política hoje em dia, por falta de dados. 

Você falou em privatização do cuidado. Muitas pessoas não entendem por que seus impostos devem pagar pelo cuidado dos outros. Que papel o estado deve assumir nos cuidados?

O trabalho de cuidado nas famílias gera um valor para a sociedade como um todo. No momento que você cria crianças que serão adultos produtivos, [você gera] a produtividade da mão de obra, que é muito influenciada pelo trabalho de cuidado que foi feito no passado – frequentemente, de forma não remunerada. 

Quando a responsabilização do cuidado está na família, isso não é contabilizado no que é um salário justo e necessário, que fica mal distribuído na sociedade. Existe, do ponto de vista privado, um incentivo para você explorar essa mão de obra até o limite e pagar o mínimo possível. Mas o mercado tem um benefício do cuidado provido pela família.

Existe também uma tradição marxista de entender isso com uma crise do cuidado causada pela exploração da mão de obra, que não tem poder de barganha para garantir o cuidado. Por isso, seria necessário que o cuidado fosse provido pelo governo, já que a coisa mais essencial que existe é a reprodução da vida e não há incentivos de mercado para que isso seja feito.

Voltando à Política Nacional de Cuidados, temos experiências de outros países que possam nos servir de exemplo?

A Argentina tem feito um trabalho de remuneração de cuidadoras comunitárias. Por exemplo, de as [pessoas que trabalham nas] cozinhas comunitárias receberem algum tipo de salário. É tentar formalizar de alguma forma trabalhos que são feitos de maneira mais informal.

Lá também teve uma política de formalização da mão de obra doméstica remunerada, por meio de incentivos para os patrões, com objetivo de visibilizar esse trabalho. De entender quem é essa mão de obra e o que ela está fazendo. 

A nível municipal, Bogotá, na Colômbia, tem um trabalho interessante também. Eles criaram o sistema de manzanas de cuidado, que são quase como SESCs do cuidado: espaços em regiões periféricas em que você pode fazer natação, por exemplo, e vai ter alguém cuidando dos seus filhos enquanto isso ou lavando suas roupas. 


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É um espaço de lazer que tira um pouco o fardo do trabalho de cuidado das mulheres. Todo mundo fica “nossa, tem alguém para lavar a sua roupa”, porque isso está tão internalizado como uma coisa pessoal, que nem vemos como um trabalho de cuidado. 

O Ministério das Mulheres abriu um edital para financiar lavanderias públicas. Qual a importância disso?

É exatamente tirar um pouco da carga do trabalho não remunerado da mão de obra, sobretudo das mulheres. É uma política de redução da pobreza de tempo.

Como você avalia a gestão da Secretaria Nacional de Cuidado e Família?

Elas são o que há de melhor nesse governo. Eu tenho uma verdadeira admiração pelo trabalho que elas estão fazendo, porque é uma equipe pequena, mas  extremamente competente. O que me preocupa é que não depende só delas para as políticas saírem do papel, depende de outros ministérios. É importante que a secretaria tenha visibilidade para o resto do governo dar o espaço orçamentário e político de que elas precisam.

Você pode me falar alguns acertos da pasta esse ano?

A criação do Grupo de Trabalho Interministerial de Cuidados e o fato de ele contar com a participação da Fenatrad, a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas. A secretaria está considerando a questão do trabalho doméstico remunerado no Brasil como essencial para a discussão de políticas de cuidado e está pensando a questão da precarização desse trabalho. 

A responsabilidade pelo cuidado é dada às famílias, mas não é dada a elas, necessariamente, a capacidade de cuidar.

Elas também estão incansavelmente travando discussões com o IBGE para tentar melhorar a coleta de dados e tomaram a dianteira na discussão da pesquisa de uso do tempo. E é muito legal a abertura que elas têm tido para discutir com a sociedade, o fato de terem aberto o marco para consulta pública, e o quanto o trabalho delas é transparente.

O que não foi olhado este ano e seria bom ter como foco em 2024?

Não existe ainda a ideia de um Sistema Nacional de Cuidados, de isso ser uma coisa independente e com uma sigla orçamentária. Esse é o futuro necessário para a gente. Para a política de cuidados ser bem feita, também seria absolutamente essencial a pesquisa de uso de tempo como uma pesquisa independente. 

Seria uma pesquisa amostral em que as pessoas respondem com o que, ao longo da última semana elas usaram seu tempo. Isso não só mapearia todo o trabalho não remunerado de cuidado e de outras naturezas, como também o lazer. 

É mapear bem aquela questão da pobreza de tempo, para saber como o cuidado está mal distribuído dentro do lar ou a desigualdade do tempo gasto por mulheres e homens. Voltando ao ponto que você trouxe da lavanderia: a gente consegue fazer políticas que reduzam o tempo de cuidado necessário dentro do lar. Mas temos muita dificuldade de fazer políticas que redistribuam esse tempo de trabalho [entre mulheres e homens]. 

Quando você diminui o tempo do trabalho do lar, frequentemente você observa que isso é feito, indiretamente, tirando [tarefas] e dando mais tempo para o homem, e não para mulher. Se você não consegue criar um equilíbrio melhor de gênero, a política para. A capacidade de identificar que grupos demográficos têm uma distribuição maior de tempo, identificar o que determina uma distribuição mais desigual, é fundamental para desenhar políticas. 

O que a gente tem hoje é um módulo da PNAD chamado de outras formas de trabalho, no qual existe uma pergunta agregada de quanto tempo na semana passada você gastou fazendo diversas atividades. Existe uma discussão com o IBGE de tentar expandir esse módulo da pesquisa anual, e também de ter uma pesquisa independente sobre tempo a cada 10 anos. Eu gostaria de ver isso sair do papel.

Tem uma frase famosa da Silvia Federici que é “o que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago”. O que isso significa para você?

Muita gente se sente um pouco ofendida por essa frase. É também trabalho não pago. As pessoas podem amar seu trabalho e serem remuneradas por ele. O absurdo é você não poder ser remunerado e ser responsabilizado pelo amor. Precisamos alcançar o momento em que seja por amor e por dinheiro. É a única forma de resolver essa crise para que a sociedade não adoeça. 

Devemos, ao menos, garantir o direito ao cuidado a quem cuidou a vida inteira, mas não foi vista como trabalhadora.

Tem um artigo da economista Nancy Folbre que se chama “Por amor, por dinheiro ou ambos”. O título é uma referência a essa frase da Federici, que traz essa questão de uma forma mais radical: a remuneração do trabalho de cuidado, que as pessoas às vezes pensam que é uma mercantilização da vida, mas não é. 

A Federici está tentando simplesmente visibilizar a exploração da mulher não paga. Como essa exploração é invisível, a mulher não se dá conta dela e não reivindica seu fim. Para ter uma revolução feminista, precisa tornar essa exploração visível para pautar a socialização desse trabalho.

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