Bezerros machos desnutridos, eutanásia negada a animais em sofrimento, amputação dos chifres sem alívio para dor e manutenção de vacas em gaiolas até os primeiros três meses de vida. Este é o cenário aterrador encontrado em uma fazenda da cadeia de fornecimento da Danone, gigante do setor alimentício.
Foi o que verificou uma investigação de 2023 da Sinergia Animal, organização internacional de defesa dos direitos dos animais. A averiguação gerou áudios e vídeos, que o Intercept Brasil publica agora com exclusividade.
Com sede na França, a Danone é hoje a terceira fabricante de iogurtes e derivados de leite do Brasil, atrás apenas da Lactalis (dona de marcas como a Parmalat, Batavo e Itambé) e da Nestlé, a maior empresa de alimentos industrializados do mundo.
A fazenda em questão fica no sul de Minas Gerais, região que concentra todos os produtores parceiros da Danone no Brasil e onde estão localizadas duas de suas fábricas. No momento da apuração, o local abrigava quase 1,9 mil vacas, das quais 760 em lactação.
O nome da propriedade e do dono não serão divulgados, a pedido da Sinergia Animal, para preservar a segurança dos seus investigadores.
A informação de que a propriedade é uma das grandes provedoras da Danone no Brasil é confirmada pelo dono do lugar. “A gente é um dos grandes. Eles saíram daqui agora [os representantes da Danone]. Eles acabaram de sair daqui”.
Ouça o áudio:
Na fala, o fazendeiro dá a entender que na ocasião estava negociando um novo contrato. Para não deixar dúvida, um dos investigadores ainda pergunta se ele pretende continuar trabalhando com a Danone.
“Por enquanto, é. Mesmo sem contrato eu vou continuar com ela. Até que, sei lá, se ela não me pagar o desejável, aí eu vou para outra”.
Posteriormente, a ligação da Danone com esse fornecedor específico foi atestada pela própria assessoria de imprensa da companhia.
Maus-tratos a animais em fazenda desmentem propaganda da Danone
“Está comprovado que ‘vacas felizes fazem produtores felizes’: fazendas leiteiras com melhores padrões de bem-estar animal apresentam produção e qualidade de leite significativamente mais altas. Promover as melhores práticas agropecuárias possíveis faz sentido.”
O trecho acima foi retirado do documento Política de bem-estar animal da Danone, publicado em 2016 e atualizado em março de 2018. Mais recentemente, em novembro do ano passado, a gigante dos laticínios ainda anunciou o programa “Fazenda Tudo de Bem”, um aporte de R$ 3 milhões até 2025 para fomentar o bem-estar animal em sua cadeia leiteira.
“Para nós, é mais um compromisso do que apenas um programa”, declarou então Henrique Borges, diretor de compras da empresa.
Apesar da propaganda, no entanto, não se pode dizer que a multinacional esteja atenta às práticas das fazendas que lhe fornecem leite fresco.
Além de desmentir o que prega a própria Danone, o pecuarista investigado pela Sinergia Animal admitiu durante conversa, sem saber que estava sendo gravado, contrariar recomendações de órgãos nacionais e internacionais.
No frigorífico que recebe os bezerros da fazenda, há ainda vídeos que mostram que os animais são abatidos sem receber o necessário atordoamento, o que faz com que ainda estejam conscientes no momento em que são sangrados.
Fazenda faz descarte prematuro de bezerros
Um dos problemas apontados pela investigação da Sinergia Animal é o prematuro descarte de bezerros machos, que não têm valor comercial para a indústria leiteira. Eles são embarcados para um abatedouro com poucos dias de vida ou até mesmo horas após o nascimento.
Uma recomendação do então Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento diz que esse tipo de transporte só deve ser feito depois de os ruminantes estarem com o umbigo cicatrizado, o que geralmente acontece depois do sétimo dia de vida.
Antes disso, o Código Sanitário de Animais Terrestres da Organização Mundial de Saúde Animal também considera os recém-nascidos inaptos para viajar. Sem o umbigo cicatrizado, os animais ficam mais vulneráveis a infecções.
No entanto, ao ser questionado sobre o que fazia com os bezerros machos, o dono da fazenda respondeu: “Os machos, elimina novinho. Acabou de nascer, elimina”.
Ele prosseguiu: “Do ladinho da [rodovia] Fernão Dias ali, na entrada para São Gonçalo [do Sapucaí], tem um frigorífico. Esse pessoal aí pega os bezerros para… Usar a carne dele lá. Agora para que é, eu não sei”.
Mais à frente na conversa, o proprietário estima o tempo que os bezerros demoram para serem levados até o abatedouro: “É, ele já leva em dois, três dias, no máximo”.
O Intercept questionou a Danone sobre esse descarte prematuro e perguntou, objetivamente, com quanto tempo de vida a companhia considera razoável que um animal macho de suas fornecedoras seja enviado para abate.
Sem responder à segunda pergunta, a empresa afirmou o seguinte:
“A Danone esclarece que opera com fazendas parceiras no fornecimento de leite. E que estabelecer e difundir as melhores práticas de manejo, em todo o ciclo de vida animal, fazem parte dos objetivos da companhia com o seu compromisso público de Bem-estar Animal e com o programa ‘Fazenda Tudo de Bem’, lançado em novembro deste ano”.
Falta de estrutura do abatedouro e desnutrição
No abatedouro, foram identificados outros problemas, a exemplo da falta de estrutura adequada para sacrificar os animais. Por isso, os bezerros ficam “soltos” e conseguem se mexer, o que dificulta o necessário atordoamento. Isso significa que eles estão conscientes quando são sangrados, como também mostram as imagens.
O descaso contraria totalmente a portaria 365/2021, do então Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, que regulamenta as técnicas de abate no Brasil.
Durante a investigação, o pecuarista admitiu que os bezerros machos não costumam receber em quantidades adequadas o chamado colostro, que é o primeiro leite da mãe, e deveria ser ministrado aos animais antes de eles completarem as primeiras seis horas de vida. O colostro é considerado “a primeira vacina” para o gado.
Em sua Política de Bem-Estar Animal, de 2016, a Danone afirma que um dos seus critérios para a admissão de fazendas fornecedoras é o fornecimento de colostro “para todos os bezerros o mais rápido possível após o nascimento”.
Ao contrário do que dizem as recomendações, o proprietário explica que, na maioria das vezes, o colostro é dado “só para as fêmeas”. “Os machos bebem também, as sobras. Até o dia que o cara [do frigorífico] leva embora, né?”
Um funcionário da fazenda também confirmou o descaso com a alimentação dos bezerros machos: “Só se tiver sobrando dá mãe, a gente dá”.
Sem essa nutrição, a imunidade dos novilhos fica comprometida, deixando os animais mais sujeitos a contrair infecções.
Vacas presas em gaiolas na fornecedora da Danone
Outro ponto levantado pela investigação da Sinergia Animal é o fato de as bezerras fêmeas passarem até três meses trancafiadas em gaiolas, o que desmente os princípios que a Danone diz seguir. O excesso de tempo que os animais passam confinados prejudica o seu desenvolvimento ósseo e muscular.
Em sua Política de Bem-estar Animal, a empresa aponta como um de seus critérios para fazendas de leite que os bezerros desfrutem de espaço suficiente em todas as idades e sejam abrigados em grupo ou aos pares, para poderem interagir e manifestar seus comportamentos naturais.
Não é o que acontece na fazenda de Minas Gerais. No vídeo abaixo, um animal aparece isolado, se debatendo em uma gaiola que serve de morada.
Na União Europeia, onde fica a sede da Danone, uma lei determina que nenhum bezerro deve ser confinado em uma gaiola ou baia individual após oito semanas de vida.
“Se eles não podem fazer isso lá, por que podem fazer no Brasil?”, pergunta Carolina Galvani, fundadora e diretora executiva da Sinergia Animal. “Não existe nenhum motivo pros animais serem maltratados aqui”.
Questionada a esse respeito pelo Intercept, a multinacional respondeu: “A Danone esclarece que, em todos os países de atuação, possui rigorosas práticas de manejo e bem-estar animal, respaldadas em evidências científicas, e baseadas nos principais protocolos nacionais e internacionais. No Brasil, as práticas também estão de acordo com a legislação brasileira”.
Em seu documento de 2016, porém, a empresa alega estar sempre disposta a fazer mais do que exigem determinadas legislações para arcar com as promessas que faz ao público consumidor.
Um trecho do texto registra: “O ambiente jurídico de hoje está evoluindo para refletir uma maior preocupação com o bem-estar animal, mas tanto o ritmo quanto o escopo das mudanças legislativas são frequentemente insuficientes. Para dar apenas um exemplo, o corte de cauda das vacas ainda não foi proibido em todos os países. É por isso que estamos comprometidos em ir além dos regulamentos quando necessário, para cumprir nossos princípios orientadores”.
Animais muito machucados ou doentes não recebem eutanásia
A Danone ainda prevê, em sua Política de bem-estar animal, que animais machucados ou doentes, incapazes de ficar em pé, não devem ser transportados. Nesse caso, a empresa determina que eles sejam submetidos à eutanásia de emergência, na própria fazenda, para evitar sofrimento desnecessário.
Essa é também a recomendação do Guia Brasileiro de Boas Práticas para a Eutanásia em Animais, do Conselho Federal de Medicina Veterinária. Mas não é o que acontece. Pelo menos, não no caso investigado.
O dono da fazenda no sul de Minas Gerais não deixa dúvida ao ser questionado sobre o que é feito com animais fraturados ou que não conseguem mais produzir.
“Aí é para corte, vai para o frigorífico”, contou. “Todo animal lesado, está com a perna ruim, está com o pé ruim, tem um problema de mamite, tem um problema de reprodução, é, o que mais? Qualquer problema sério. Diminuiu a produção de leite, ainda não está prenha ou, sei lá, abortou e ainda não recuperou o leite. Enfim, esses animais são, todos eles, descartados, né. Aí o cara vem e coleta. A gente pesa. E faz uma precificação e ele paga”.
O investigador ainda insiste: “Não matam aqui?”.
“Não, vai para o frigorífico”, ouve como resposta.
Durante a apuração, a Sinergia Animal ainda verificou que, dependendo do caso, animais fraturados continuam a ser explorados pela fazenda, obrigados a produzir leite.
Esse tipo de procedimento vai de encontro ao que diz a Lei 22.231/2016, do estado de Minas Gerais. Entre outros pontos, ela define como maus-tratos aos animais, explicitamente, “obrigar o animal a realizar trabalho excessivo ou superior às suas forças ou submetê-lo a condições ou tratamentos que resultem em sofrimento”.
Recém-nascidos têm chifres extraídos sem anestesia
A Danone afirma que seus fornecedores devem evitar a descorna ou mochação, que consiste em extrair ou impedir o crescimento dos chifres nos recém-nascidos. Ou, no mínimo, usar algum tipo de anestesia ou analgesia no procedimento.
Na mesma toada, a resolução 877, de 2008, do Conselho Federal de Medicina Veterinária diz que é obrigatório o uso de anestesia local para a descorna de ruminantes de até seis meses de idade.
Na fazenda investigada pela Sinergia Animal, constatou-se que a descorna é feita com uma pasta cáustica e corrosiva que, segundo o estudo, pode causar ainda mais dor do que o método do ferro quente, mais comum.
Ao ser perguntado sobre a técnica, em nenhum momento o pecuarista menciona qualquer método que possa minimizar o sofrimento dos bezerros.
“Você corta ali onde tem o botão do chifre, você corta o cabelinho, escarifica um pouquinho com uma tesoura, dá uma escarificadinha e aí pincela a pasta ali. O processo é esse”, explicou.
“Nada desagradável. Sem problema. E se der uma coisinha ali, lesãozinha, uma descascadinha, aí você passa um unguento. Uma pomada, né? Aquelas unguento. Passa um pouquinho ali, acabou”.
Cadeia da Danone tem histórico de maus-tratos a animais
Não é a primeira vez que a Sinergia Animal descobre irregularidades e maus-tratos a animais em fazendas fornecedoras da Danone.
De dezembro de 2020 até outubro de 2022, a organização examinou outras duas propriedades ligadas à empresa e encontrou problemas semelhantes, como o abandono de animais machucados ou doentes, o descarte prematuro de bezerros machos e a remoção de chifres com ferros quentes, sem o uso de anestesia ou analgesia.
Essa primeira investigação também rendeu áudios e imagens, que foram anexados a uma representação feita pela Sinergia Animal ao Ministério Público de Minas Gerais, em março de 2023.
Antes disso, em maio de 2022, a Sinergia Animal já havia entrado em contato com a Danone, avisando que iria promover uma ação pública com base no material coletado.
Na ocasião, os dirigentes da empresa teriam dito que os casos eram de difícil resolução, por as irregularidades serem um problema sistêmico da cadeia leiteira.
“O que eles nos disseram na época é que não tinham como resolver sozinhos um problema que era do setor [leiteiro]”, conta Carolina Galvani. “Mas mudanças setoriais começam com líderes. Principalmente, líderes que já adequaram suas práticas em outros lugares, como a Danone fez na União Europeia”.
O Intercept indagou diretamente a Danone sobre a posição que os dirigentes da companhia teriam manifestado anteriormente, em conversas informais com a Sinergia Animal. Em nenhum momento, a resposta desmentiu o relato feito por Galvani.
A vistoria nas duas propriedades foi realizada pelo Instituto Mineiro de Agropecuária, uma autarquia vinculada à Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
Em julho de 2023, o órgão encaminhou um memorando ao Ministério Público, garantindo não ter encontrado irregularidades nas fazendas. A essa altura, elas também já estavam fornecendo para outra empresa.
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