As primeiras escolas de samba do Rio de Janeiro nascem na década de 1920. Na ocasião, as comunidades afro-cariocas buscavam pavimentar caminhos de ascensão social, fortalecer sociabilidades e criar redes de proteção após a abolição da escravidão. O estado brasileiro, por sua vez, lidava com as manifestações culturais dos descendentes de africanos com ações que incluíam a criminalização, a repressão e tentativas de cooptação e controle.
As escolas de samba surgem na encruzilhada em que o desejo repressivo e regulador da República e a busca dos negros cariocas por legitimidade se encontram. Nesse sentido, as agremiações lidam o tempo todo com o conflito entre a vontade de expressar tradições e bens simbólicos e a necessidade de se relacionar com instâncias externas ao ambiente do samba: o poder instituído, o turismo, as mídias, o mercado, a contravenção, o crime.
As escolas de samba, portanto, nunca foram entidades de resistência inflexível às circunstâncias e elementos externos. Elas se inscrevem em um contexto mais complexo, cheio de sutilezas, marcado por episódios de resistência, adequação, confronto e negociação. As relações com o jogo do bicho não escapam disso.
O primeiro contraventor a ter ligação mais profunda com uma escola de samba foi Natal da Portela, um funcionário da Estrada de Ferro da Central do Brasil que, após perder um braço em um acidente, ficou desempregado. Sem conseguir um emprego formal, Natal foi trabalhar com o bicheiro Capitão Amorim e se transformou em um dos mais conhecidos bicheiros e sambistas da cidade. Oriundo de uma família envolvida com a Portela desde a fundação da escola, Natal não chega ao samba por causa do bicho; é o jogo que chega à Portela por causa dele.
A relação de domínio da atual cúpula do jogo do bicho com as escolas de samba se desenvolve a partir da década de 1970. A formação de um núcleo duro da contravenção ocorre em um momento em que a rentabilidade do jogo começa a cair; atingida pela expansão de loterias controladas pelo estado durante a ditadura instaurada com o golpe civil-militar de 1964.
A criação da loteria esportiva, especialmente, atingiu em cheio o jogo do bicho. Ancorada no coroamento da época de ouro do futebol brasileiro, com a conquista da Copa do Mundo de 1970, a esportiva gingava no campo simbólico da relação entre o povo brasileiro e o futebol, mexia com o imaginário da sorte e do azar e abria a possibilidade da realização de apostas baratas, como as do bicho, acessíveis aos mais pobres.
LEIA TAMBÉM
- Carnaval, marketing e pobreza: depois da pandemia, voltamos à festa e às apoteoses da desigualdade
- Escolas de samba sempre deram jeitinho na crise econômica
- O Brasil não combate a pobreza; nosso país combate o pobre
Há suspeitas, expressas em diversas investigações e inquéritos policiais, de que a queda de faturamento do jogo do bicho teria sido um dos fatores que levaram a cúpula que se formava naquele momento a apostar em uma virada estratégica: o capital precisava circular em atividades diversificadas, como contrabando, lavagem de dinheiro, comércio ilegal de armas, extorsão etc. Para piorar a situação, disputas pelos territórios envolvendo o espólio de velhos bicheiros traziam mais instabilidade para a empresa do jogo.
Nesse processo, foram costurados acordos que envolveram a demarcação de territórios, com o intuito de promover uma pacificação favorável aos negócios. Ocorre aí também o aprofundamento da relação entre os contraventores e algumas escolas de samba, num contexto em que a ausência de políticas públicas de apoio efetivo ao carnaval deixavam, muitas vezes, escolas menores à míngua e sob risco concreto de acabar.
Os casos mais notáveis dessa nova ordem envolvem três bicheiros e escolas de samba que, até então, eram consideradas de pequeno e médio porte: Anísio Abraão David e a Beija-Flor (a ligação afetiva de Anísio com a escola de Nilópolis era mais antiga que os interesses do jogo); Luiz Pacheco Drummond e a Imperatriz Leopoldinense, e Castor de Andrade e a Mocidade Independente de Padre Miguel. Um pouco depois, Miro Garcia se tornou o mecenas do Salgueiro e o Capitão Guimarães se aproximou da Vila Isabel.
Patrocinar escolas de samba abriria para os contraventores ao menos duas frentes para os negócios: o maior controle do território em que a agremiação está situada e uma espécie de lavagem de imagem capaz de transformar os bicheiros em personagens midiáticos, com círculos de amizades que envolvem agentes públicos, artistas, barões da imprensa, empresários e similares.
O cenário atual aponta para indefinições em relação ao que vem por aí. As milícias que avançam no controle de territórios da cidade buscam controlar as escolas de samba fincadas nesses territórios; da mesma forma que o tráfico já tentou e, eventualmente, conseguiu. Como essa equação entre o bicho, a milícia e tráfico vai se encaminhar, e de que forma isso repercutirá no carnaval, é uma questão em aberto. Da conciliação ao confronto, as hipóteses são variadas.
As escolas de samba, portanto, nunca foram entidades de resistência inflexível às circunstâncias e elementos externos.
As escolas de samba, por sua vez, continuam exercendo um papel de vanguarda na cultura carioca, com a realização de um espetáculo simultâneo de manifestações artísticas raras no mundo. Ressaltar o protagonismo daqueles que as criaram – os afro-cariocas e seus descendentes – e reconhecê-las, inclusive do ponto de vista das políticas públicas, no que elas têm de arte, força, legitimidade, potencial educativo, relevância cultural, talvez seja o caminho mais firme para que elas adquiram autonomia e possam, soberanas, continuar dando sentido à vida de milhares de cariocas historicamente reprimidos por projetos de poder que, mesmo que delas se aproximem, parecem não ser capazes de perceber toda a sua grandeza ancestral.
Cem anos depois da criação da Portela, todas as nuances, complexidades e contradições que marcam as relações entre as agremiações e as circunstâncias em que elas se estruturam, escancaram algo que grita desde os idos de 1923: as escolas de samba nunca foram problemas para a cidade e sua gente, mas solução.
Por isso tantas instâncias – da contravenção ao mercado, passando pelas esferas legais do poder – tentam cooptá-las. Que no futuro elas possam ser conduzidas pelos herdeiros dos que as criaram como forma sofisticada e soberana de inventar o mundo.
Você sabia que...
O Intercept é quase inteiramente movido por seus leitores?
E quase todo esse financiamento vem de doadores mensais?
Isso nos torna completamente diferentes de todas as outras redações que você conhece. O apoio de pessoas como você nos dá a independência de que precisamos para investigar qualquer pessoa, em qualquer lugar, sem medo e sem rabo preso.
E o resultado? Centenas de investigações importantes que mudam a sociedade e as leis e impedem que abusadores poderosos continuem impunes. Impacto que chama!
O Intercept é pequeno, mas poderoso. No entanto, o número de apoiadores mensais caiu 15% este ano e isso está ameaçando nossa capacidade de fazer o trabalho importante que você espera – como o que você acabou de ler.
Precisamos de 1.000 novos doadores mensais até o final do mês para manter nossa operação sustentável.
Podemos contar com você por R$ 20 por mês?