O coronel Paulo José Ferreira de Souza Bezerra, diagnosticado com depressão profunda e transtorno de ansiedade em 2017, passou cinco anos em funções de menor importância na PM do Distrito Federal. Até que, em setembro de 2022, tornou-se o sub-comandante do Departamento de Operações da corporação, depois de ser surpreendido por um convite do então comandante, coronel Jorge Naime. Um ano e meio depois, Paulo José, Naime e outros cinco PMs estão presos, acusados de diversos crimes nos atos terroristas de 8 de janeiro de 2023.
Hoje, Paulo José diz ter percebido que a chance de ascensão era, na verdade, uma armadilha. Preso desde agosto de 2023, o coronel alega ser vítima de uma armação. Segundo ele, uma operação desenhada por colegas coroneis – entre eles, o próprio Naime – está em pleno funcionamento e com um objetivo principal: livrar a cúpula da PMDF de punições relacionadas aos eventos de 8 de Janeiro, transferindo a ele a única e exclusiva responsabilidade pelos erros e omissões da corporação na tentativa de golpe de estado.
A existência de um conluio chegou a ser ventilada pelo presidente da CPI dos Atos Antidemocráticos da Câmara Legislativa do DF, Chico Vigilante, do PT, ainda em setembro do ano passado. Mas o caso chamou pouca atenção. “O coronel Paulo José chegou aqui na CPI como figura central no desenrolar dos eventos ocorridos na esplanada em 8 de janeiro. Seu depoimento foi esclarecedor, levando-me a concluir que tudo foi meticulosamente planejado para incriminá-lo”, disse o deputado distrital.
Agora, o Intercept Brasil obteve documentos que reforçam a tese de um possível conluio para enganar a justiça. Trocas de mensagens inéditas entre os coroneis da Polícia Militar do DF envolvidos no caso demonstram que o Departamento de Operações, o DOP, cuja chefia interina caiu nas mãos de Paulo José dias antes do 8 de Janeiro, foi esvaziado de forma proposital antes dos atos, com a ciência dos comandantes da corporação; e que Paulo José foi isolado do planejamento da segurança – o que, agora perante a justiça, seus colegas negam, atribuindo a ele a responsabilidade da operação.
Entre os materiais sigilosos obtidos pela reportagem, além de diversas mensagens de WhatsApp, há ainda uma série de documentos que demonstram que Paulo José teve o conteúdo de sua defesa judicial no STF compartilhada com aquele que se tornaria um de seus principais algozes: o coronel Marcelo Casimiro, do 1º Comando de Policiamento Regional da Polícia Militar, responsável pela segurança da região da Esplanada dos Ministérios.
O início do fim de Paulo José
Segundo o relato de Paulo José, o ambiente tenso que ele encontrou na nova nova função no DOP, logo que assumiu, em 22 de setembro de 2022, agravou seu estado de saúde mental. José, então, procurou o médico psiquiatra da Polícia Militar, que achou melhor que ele se aposentasse, passando à reserva remunerada da corporação. Seu último dia como coronel e coronel na PM foi agendado: 13 de janeiro de 2023.
Antes disso, como ainda tinha dias de férias para cumprir, Paulo José se afastou da corporação, exatos dois meses depois de chegar ao DOP, em 22 de novembro de 2022. Ele deveria retornar em 22 de dezembro, mas foi orientado por outro coronel do setor, Cléber Antunes, a voltar depois da posse do presidente Lula, no dia 1º de janeiro de 2023. A orientação foi ratificada dias depois pelo seu chefe, o Coronel Jorge Naime.
Paulo José concordou em tirar dias de licença-recompensa, uma modalidade de afastamento que faz parte do regulamento policial. Dessa forma, foi dispensado da operação de segurança da posse de Lula.
O coronel, então, foi orientado a retornar em 3 de janeiro de 2023 para cumprir seus 10 últimos dias de serviço, o que, segundo ele, seria uma oportunidade para se despedir dos colegas de profissão.
Paulo José relata que, quando retornou ao trabalho no DOP, no entanto, percebeu algo de estranho. Seu chefe, o Coronel Naime, e os outros dois coroneis que integravam o departamento não estavam indo trabalhar. Naime estava afastado de licença médica, com a justificativa de que teria que realizar exames em função de um quadro de pré-diabetes.
“Eu tirei férias em novembro de 2022. O coronel Cleber, responsável pelas operações, me pediu para não retornar e ficar em casa. Me mandou voltar somente depois de 2 de janeiro. Quando eu voltei, o núcleo do DOP estava todo afastado. Três coronéis do núcleo operacional não estavam lá. O comum seria que se um se afasta, dois ficam. Aquilo não foi normal”, disse Paulo José em setembro à CPI da Câmara Legislativa do DF.
Ainda segundo seu relato, afastado das comunicações e das atividades do Departamento de Operações, Paulo José afirma ter voltado ao trabalho sem informações de inteligência ou relatórios e informes oficiais sobre os atos antidemocráticos que ocorreram em 12 de dezembro de 2022, tampouco sobre os acampamentos golpistas em frente ao Quartel-General do Exército, que seguiam em funcionamento nos primeiros dias do governo Lula.
‘Muito barulho e pouca ação’
Trocas de mensagens entre Paulo José e o Coronel Marcelo Casimiro, do 1º Comando de Policiamento Regional da Polícia Militar, responsável pela segurança da região da Esplanada dos Ministérios, indicam que Casimiro minimizou as ameaças golpistas e tentou evitar que outros policiais atuassem no caso.
Em um dos diálogos, Casimiro diz a Paulo José que a expectativa de “desordem no Congresso Nacional” é injustificada: “Acho que é muito barulho e pouca ação”. Na mesma conversa, pouco antes, Casimiro pede que Paulo José não envie o coordenador-geral de policiamento da PMDF à Esplanada dos Ministérios e suplica: “Confie em mim”.
Ao Intercept Brasil, o advogado de Casimiro, Mário de Almeida Costa Neto, nega qualquer tipo de conluio. Segundo ele, apesar de citar nominalmente Paulo José na CPI, Casimiro visa a responsabilização do DOP, não de seu colega.
Costa Neto defende a ideia de que Casimiro, assim como Paulo José, também seria um “boi-de-piranha”. “O Casimiro não é político, ele não é bolsonarista”, diz o advogado. Um relatório da Procuradoria-Geral da União, no entanto, mostra que o coronel compartilhou conteúdo de cunho golpista, questionando as urnas, com o comandante-geral da PM e outros policiais. “Casimiro tinha a expectativa de que a difusão de mensagens fraudulentas poderia insuflar os ânimos de parte da população, em momento de instabilidade institucional”, disse a PGR.
As mensagens de Paulo José se somam a outros elementos que indicam um isolamento deliberado do coronel nas atividades de policiamento do 8 de Janeiro. José afirma, por exemplo, que não foi convocado para reuniões da PM com a Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal e com a Polícia Federal que discutiram o esquema de segurança para as manifestações.
Nos dois encontros, os representantes da PMDF foram o Coronel Marcelo Casimiro e o Major Leonardo Alves, membro do DOP. Paulo José afirma desconhecer a presença de seu subordinado na reunião – àquela altura, José chefiava interinamente o departamento em função da ausência do Coronel Naime.
Em depoimento à CPI da Câmara do DF, em junho, Casimiro disse que a orientação para que ele fosse à reunião foi do então comandante-geral da PM. “O coronel Fábio Augusto, ele que me mandou na reunião lá da Secretaria de Segurança. Ele falou assim: ‘Amanhã, às 10h, tem uma reunião na SSP para tratar de manifestação. Se você puder ir’. [Mas] O comandante-geral não pede, ele manda, né?”, relatou.
Na reunião, não houve uma decisão de enquadrar a manifestação de 8 de Janeiro como um “grande evento”, o que faria o DOP assumir a operação. Assim, a responsabilidade pela segurança seria do Comando de Policiamento Regional da região Esplanada, chefiado por Casemiro.
A subsecretária de Operações Integradas, coronel Cíntia Queiroz de Castro foi a líder da reunião. Em uma gravação do encontro, obtida pela Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara Legislativa do Distrito Federal, a coronel diz que Alves era o “planejador” do DOP e que o chefe do departamento estava de férias.
Paulo José sequer foi mencionado no encontro.
O boi-de-piranha
A tentativa de incriminar Paulo José como principal e único responsável pelos erros e pela omissão da PMDF no 8 de Janeiro fica evidente nos depoimentos, à CPI da Câmara do DF, à Polícia Federal e à Corregedoria da PM, concedidos pelos coroneis que formavam a cúpula da corporação: Fábio Augusto Vieira, Klepter Rosa, Marcelo Casimiro e Cintia Queiroz de Castro, esta última alocada na SSP-DF.
Se a estratégia antes dos ataques aos prédios públicos foi alijar Paulo José do esquema de segurança do 8 de Janeiro, depois dos atos o caminho foi o oposto: a cúpula da Polícia Militar do DF foi uníssona em apontá-lo como o responsável. Mas nem sempre foi assim – o que mostra a inconsistência da estratégia dos coroneis da PMDF.
Preso em janeiro, o coronel Fábio Augusto, então comandante-geral da PM, disse, em sua audiência de custódia, que o responsável pelo planejamento e pela execução do policiamento no dia 8 de Janeiro era o coronel Marcelo Casimiro.
Semanas depois, em março, em depoimento à Corregedoria, Fábio Augusto começou a mudar a versão. Ele disse que, no dia 7 de janeiro, procurou Paulo José pedindo reforço de policiamento e o emprego total dos grupos especializados, como a Tropa de Choque e a Cavalaria. Mas afirmou que a resposta de Paulo José “não foi satisfatória”.
Em maio, Fábio Augusto deixou a intenção ainda mais clara. Segundo ele, Paulo José seria responsável não só pelo baixo efetivo, como também pela ausência de um planejamento por escrito para a segurança da manifestação.
“Eu entendo que a falha é a falta de um planejamento operacional que deveria ter sido feito pelo DOP. Não ficou esclarecido para mim, se o coronel Paulo José havia atribuído [a missão de fazer o planejamento] ao comando do Primeiro CPR, por exemplo, que é subordinado a ele”, disse.
A mesma versão foi adotada por Casimiro, em junho, ao ser questionado pelo deputado distrital Chico Vigilante, presidente da CPI da Câmara do DF, sobre quem teria dado a ordem de abrir a Esplanada dos Ministérios para ingresso dos manifestantes bolsonaristas: “Recebi essa orientação via Departamento Operacional. Foi o Coronel Paulo José”.
Klepter Rosa, então sub-comandante da PMDF, também foi enfático, em depoimento concedido à mesma CPI, ao dizer que o responsável pelo emprego do baixo efetivo de policiais no 8 de Janeiro seria Paulo José: “O efetivo empregado foi aquele que o DOP determinou, chefiado pelo Coronel Paulo José. Ele é o responsável”, declarou.
No depoimento, Klepter foi questionado sobre as acusações de que a PM não deixou a tropa de prontidão nos quarteis – e sim, de sobreaviso, ou seja, quando os militares ficam em casa e só depois são acionados. Ele responsabilizou a o DOP e Paulo José pela decisão e admitiu que teria dado essa determinação “se soubesse o que ia acontecer”.
Uma troca de mensagens, porém, demonstra que Klepter foi enfático – e até relativamente grosseiro – com Paulo José diante da pergunta se deveria deixar a tropa de prontidão. “Não, meu amigo. SOBREAVISO”, escreveu, com letras maiúsculas.
O Intercept questionou o advogado Newton Rubens, que atua na defesa do Coronel Klepter, se houve intenção no isolamento de Paulo José das ações de planejamento da segurança do dia 8. “Da parte do Coronel Klepter não houve qualquer determinação formal ou informal de afastar o Coronel Paulo Jose do planejamento da operação no dia 8”, respondeu.
O advogado também negou as acusações de que Paulo José é alvo de uma armação: “Não há que se falar em conluio”, ele disse. “A dinâmica de distribuição de competências para o planejamento e execução das operações é previsto no Regimento Interno e no PRTI, não é algo que o comando da corporação, ou mesmo qualquer dos seus membros de forma isolada, tenha criado naquele momento”, afirmou.
Quando sentou na mesa de depoentes da mesma CPI do DF, em setembro, Paulo José rebateu as declarações dos colegas. Depois de ser confrontado com vídeo em que Casimiro afirma que foi ele quem deu ordem para abrir a Esplanada dos Ministérios em 8 de janeiro, disse: “Coronel Casimiro merece o troféu Pinóquio, cara de pau do ano”.
Em agosto, depois de ter sido incriminado pelos ex-colegas, Paulo José resolveu trocar os advogados que tinha contratado para sua defesa, os brasilienses Danillo de Oliveira de Souza e Christiano Oliveira de Souza, este último ex-coronel da PMDF, já que eles estariam apoiando a equipe de defesa do Coronel Casimiro – o antagonista de Paulo José no caso.
Os atuais advogados de Paulo José dizem que Danillo e Christiano, que defendem Casimiro, tiveram acesso indevido à íntegra dos documentos com a estratégia de defesa. “Embora o processo seja único, nem todos documentos ficam visíveis aos advogados de outros acusados. Um exemplo é o relatório do celular do coronel Paulo José”, afirmou uma representante legal de Paulo José.
Na quinta-feira, 25, entrevistei Danillo, Christiano e Mário de Almeida Costa Neto. A equipe de defesa de Casimiro me recebeu na Caixa de Benefícios da Polícia Militar, a Cabe, uma associação privada de policiais e ex-policiais localizada no Guará, região administrativa de Brasília. A sede da instituição é um complexo com farmácia, salão de beleza, atendimento médico, jurídico e também um clube de tiro.
Na sala de reuniões, os advogados negaram as acusações, afirmando que o acesso à documentação aconteceu antes da comunicação oficial da destituição deles da defesa de Paulo José.
Costa Neto, por sua vez, diz que não registrou nenhum ato processual e que a sua inclusão como advogado de Paulo José não beneficiou Casimiro. A argumentação é que ele teria acesso ao mesmo conteúdo por ser advogado do outro corréu.
O advogado do coronel Fábio Augusto, ciente da publicação da reportagem, preferiu não se manifestar. O Intercept não conseguiu fazer contato com o advogado da coronel Cintia Queiroz de Castro. O espaço segue aberto para manifestação de todos os envolvidos.
Na Justiça, o caso já tem data agendada. O Supremo Tribunal Federal marcou para 9 de fevereiro o início do julgamento do recebimento da denúncia da PGR contra os sete integrantes da PMDF. O julgamento será virtual e, a princípio, não há discussão, apenas registro dos votos dos ministros pelo sistema do STF. Mas, se houver um pedido de destaque, a análise será levada ao plenário físico da Corte. Caso as denúncias sejam aceitas, eles responderão individualmente.
Os sete policiais presos foram denunciados pela PGR por omissão imprópria, pois teriam aderido “subjetivamente às ações delitivas praticadas por terceiros”, quando “deveriam e poderiam agir para evitar o resultado”. Para a PGR, “eles concorreram para a prática das condutas criminosas descritas, abstendo-se de cumprir os deveres de proteção e vigilância que lhes são impostos” pela Constituição Federal e pela Lei Orgânica da PMDF.
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