As análises sobre as eleições americanas e o retorno triunfal de Donald Trump costumam ter algo em comum: focar em seu carisma e seu controle sobre o partido Republicano. Mas não é daí que vem a força de Trump, tão avassaladora que parece tornar irrelevante o fato de ele estar metido em uma enxurrada de processos.
Seu poder vem dos cristãos brancos radicais e da guerra que travam nos Estados Unidos.
A leitura de que Donald Trump supera seus colegas de partido Ron DeSantis e Nikki Haley por eles serem uma espécie de “cópia imperfeita” de Trump – preferido pelos eleitores por ser o “original” – perde de vista a profundidade do problema das prévias republicanas.
DeSantis é muito mais combativo e tem muito mais para mostrar do que Donald Trump nas chamadas “pautas morais”, como aborto e direitos LGBTQIA+. Em política externa belicista e na “caça a terroristas”, Haley está quilômetros à frente de Trump.
Então, por que sequer os dois ameaçam a supremacia do ex-presidente junto aos eleitores republicanos?
Em primeiro lugar, Donald Trump está disposto a “deixar acontecer” muito mais do que diz que fará. Como descreveu o jornalista Tim Alberta, para os evangélicos brancos radicais, “os bárbaros estão às portas e precisamos de um bárbaro para mantê-los afastados”.
Claramente, Trump é um bárbaro que fará o impossível para proteger sua gente.
Outra explicação, apresentada por Sam Perry, sociólogo e pesquisador da Universidade de Oklahoma, é que “os evangélicos brancos, e especialmente os mais devotos, são partidários do tipo marchar ou morrer”. Eles estão convictos de que há uma guerra pela alma dos americanos em curso.
Para a maioria deles, Donald Trump fez sua parte quando nomeou três juízes conservadores para a Suprema Corte dos Estados Unidos, o que foi determinante para, por exemplo, derrubar a lendária decisão de Roe x Wade, que legalizou o aborto nos anos 1970, e a política de ação afirmativa no país.
Mas, para eles, a luta continua e é preciso ser ainda mais radical.
DeSantis e Haley poderiam agir com dureza e conservadorismo, mas também como chefes de estado. Mesmo que vença as eleições americanas, Donald Trump estará pouco preocupado com isso.
Ele prefere deixar agirem por si mesmos todos aqueles que desconfiam ou mesmo odeiam os imigrantes, as pessoas em situação de rua, as políticas de ação afirmativa, o voto dos negros, a Teoria Crítica Racial, os críticos do nacionalismo cristão, as políticas sociais e as pessoas trans.
Resposta ao anseio de ‘tomar a nação de volta’
A chegada de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos em 2016 só foi possível graças ao apoio maciço dos evangélicos brancos. Oito a cada 10 deles votaram em Trump.
Mas, até então, todas as análises se voltavam para a confiança demasiada de um público em um candidato que não tinha um passado político e, apesar de todas as falhas, assumiu um compromisso de cuidado com esse grupo – no Brasil, foram vistas semelhanças com o endosso cristão a Jair Bolsonaro.
Mas, quatro anos depois, Trump foi atravessado por notórias demonstrações de má gestão. No seu governo, a radicalização se intensificou, antigos grupos supremacistas brancos voltaram a mostrar a cara e outros tantos nasceram.
Ele foi pífio na condução do país durante a pandemia de covid-19. E seu último ato foi instigação de uma insurreição com características claras de terrorismo doméstico, no ataque ao Capitólio.
Consequentemente, Donald Trump agora é um homem que responde a vários processos, além de ter sido condenado por difamação e estar na mira da Suprema Corte. O tribunal pode tirá-lo da disputa eleitoral, caso entenda que ele infringiu a 14ª emenda da Constituição americana.
Tudo indicaria que os evangélicos dariam um passo atrás. Ainda que conservadores, acreditava-se que muitos daqueles oito entre 10 teriam algum apreço pela democracia e pela repulsa da violência política.
Mas não é bem assim. A conclusão parece óbvia: nunca houve esperança de um candidato que valorizasse os princípios cristãos e a igreja. Sempre foi sobre tomar “a nossa nação de volta” – grito de guerra de conservadores cristãos brancos que sentem que perderam espaço na sociedade diante das reivindicações dos ativistas pelos direitos civis e LGBTQIA.
Estratégia é vender Donald Trump como escolhido de Deus
“Trump é o Partido Republicano agora”, disse o sociólogo Sam Perry. Quando as primárias republicanas eram um esboço e havia muitos nomes na jogada, um pequeno número de evangélicos brancos ensaiou deixar Donald Trump para trás.
Mas, na medida que as primárias foram avançando e Trump se manteve na disputa, ficou nítido que nenhum candidato estaria disposto a cruzar tantos limites quanto ele em nome de um projeto nacionalista cristão.
Esse laço é tão forte que a equipe de Donald Trump apostou todas as fichas na veiculação de um clipe no qual ele é apresentado como o escolhido de Deus para “resgatar” o país. O vídeo “God Made Trump” [Deus Fez Trump] foi produzido por um grupo de mídia conservador.
Essa não é uma estratégia louca ou falha. É uma aposta total na conexão com aqueles que estão prontos para defender seu líder até o fim.
O nacionalismo cristão tem sido avaliado por especialistas nos Estados Unidos como a maior ameaça atual à democracia. E ele é parte fundamental da engrenagem de radicalização dos evangélicos brancos.
Um projeto de poder como esse não pode ser levado adiante sem que os lugares de acesso e manutenção do poder estejam ocupados.
Nesse sentido, Donald Trump, mais do que o próprio Partido Republicano, tem os cristãos nacionalistas totalmente a seu favor.
O atual presidente da Câmara americana, Mike Johnson, é um antigo conhecido de jornalistas e pesquisadores da direita cristã. Ele acredita, por exemplo, que “a separação entre igreja e estado é um equívoco”.
Em 2016, quando concorria à presidência do Congresso, discursou na Igreja Batista da Louisiana e afirmou ter sido “chamado para o ministério jurídico” e, por isso, esteve “fora da linha de frente da ‘guerra cultural’ que defende a liberdade religiosa, a santidade da vida humana e os valores bíblicos” – linha de frente que prometia assumir com o novo cargo.
Ao lado de Johnson, o deputado por Ohio Jim Jordan é outro importante braço de Trump no Congresso. Ele é o atual presidente do Comitê Judiciário da Câmara e tem uma reputação de longa data como agitador conservador.
Democratas o acusam de usar sua posição para proteger o ex-presidente na preparação para as eleições americanas de 2024.
Se Donald Trump for nomeado – e tudo indica que será –, Biden ou qualquer outro candidato democrata encontrará um adversário muito mais fortalecido, enfurecido e amparado por uma parcela da população obstinada em “tomar o país de volta”.
Em outras palavras, se Trump retornar à Casa Branca, não há dúvidas: é porque os evangélicos brancos o colocaram lá, muito mais decididos a vencer de uma vez por todas a “guerra cultural” que acreditam viver.
A força de Donald Trump está diretamente conectada com o projeto de poder cristão ultraconservador. Por isso, essas eleições americanas de 2024 não são sobre um projeto político de Trump.
São sobre o ataque do tipo “tudo ou nada” de um grupo de nacionalistas que estão convictos de que a identidade e a alma do que é ser americano estão ameaçados.
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