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‘We are the world’: De quem a África realmente precisa ser salva?

Deslumbrado, documentário 'A noite que mudou o pop' ignora os problemas das iniciativas 'salvadoras' do Ocidente diante da África.


The Greatest Night in Pop. Cr. Courtesy of Netflix © 2024
‘A noite que mudou o pop’ promove uma ode nostálgica ao star system americano – e ignora o cunho racista e colonialista da empreitada beneficente. Foto: Reprodução/ Netflix

Na noite do dia 28 de janeiro de 1985, 37 super astros do pop norte-americano saíram às pressas da cerimônia do American Music Awards, em Los Angeles, diretamente para um estúdio. A missão era uma só: aproveitando o encontro, gravar uma música beneficente para a ONG USA For Africa, que visava arrecadar recursos para combater a fome no continente africano. 

Após a madrugada inteira de trabalho, estava pronta We Are The World, música que vendeu mais de 7 milhões de discos e uniu de forma inédita as vozes de Michael Jackson, Cyndi Lauper, Stevie Wonder, Tina Turner, Bob Dylan, Ray Charles e outras dezenas de artistas. 

Quando a maratona de gravações chegou ao fim, às 8h da manhã, Diana Ross continuava no estúdio. “Não queria que isso acabasse”, dizia ela aos prantos. A história é contada ao final de A Noite Que Mudou o Pop, documentário sobre os bastidores do hit dos anos 1980. Em alta no Netflix, o filme reacendeu o interesse pela canção. As buscas pela música no Google atingiram o seu ápice nos últimos dez anos. O problema é que, em vez de apontar de forma crítica o cunho racista e colonialista da empreitada, o filme promove uma ode nostálgica ao star system americano. Como na imagem de Diana Ross, limita-se ao deslumbramento do “encontro mágico das celebridades” e ignora as problemáticas implicadas nas iniciativas “salvadoras” do Ocidente diante de África.

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Embora tenha vendido como água no deserto, We Are The World foi alvo de críticas contundentes desde o seu lançamento. Na mesma época em que a faixa estava sendo escrita, os compositores Michael Jackson e Lionel Ritchie estreavam comerciais da Pepsi. O crítico Greil Marcus apontou que a canção assemelhava-se à trilha de comerciais do refrigerante, especialmente o tão repetido verso “there’s a choice we’re making” (“um escolha que estamos fazendo”), que ecoa o slogan da marca, “the choice of a generation” (“a escolha de uma geração”).

Em um famoso ensaio publicado em 1985, Marcus afirmou que a música “tem menos a ver com a Etiópia do que com a Pepsi — e o verdadeiro resultado provavelmente não será que os etíopes viverão ou viverão um pouco mais, mas sim que a Pepsi terá o slogan da sua campanha publicitária cantada de graça por Ray Charles, Stevie Wonder, Bruce Springsteen e outros”.

A questão não é somente a referência a determinada marca, mas um conjunto de valores e ideologias que constituem a música. Combinando prazer musical, celebridades e linguagem da publicidade de massa, We Are The World promoveu uma concepção de mundo norte-americana, em que os valores da democracia, liberdade individual e poder de escolha via consumo afirmavam-se como universais. 

Para Jaap Kooijman, professor de Media Studies e American Studies da Universidade de Amsterdã, a música é um dos maiores exemplos da hegemonia e do imperialismo cultural norte-americano, que ele descreve como Coca-Colonização. “We Are the World não é apenas um disco pop de caridade para aumentar a consciência ocidental sobre a fome na Etiópia e arrecadar dinheiro para ajudá-la, mas é acima de tudo uma vitrine de superestrelas americanas que funcionam como embaixadores ideológicos dos valores americanos”, escreve ele no livro Fabricating the Absolute Fake.

Não há nenhuma palavra dos grandes popstars sobre como seus países lucraram com conflitos no solo africano. Reprodução: YouTube

A África precisa ser salva? De quem?

Um dos principais articuladores de We Are The World foi o cantor e ativista irlandês Bob Geldof, que aparece em A Noite Que Mudou o Pop antes da gravação da música, relatando aos demais artistas os horrores humanitários que viu na Etiópia. Meses antes, Geldof esteve à frente de outras iniciativas similares, como o show beneficente Live Aid, que reuniu Phill Collins, David Bowie, Queen, U2, Elton John e outros no estádio de Wembley, em Londres. 

Há tempos Bob Geldof admitiu que as músicas dessas campanhas não são lá grandes maravilhas. “Eu sou o responsável por duas das piores músicas da história. Uma é Do They Know It’s Christmas? e a outra é We Are The World“, afirmou em 2010. Mas isso não o impediu de reunir One Direction, Coldplay, Bono e Ed Sheeran para regravar Do They Know It’s Christmas (pela quarta vez!) em 2014, em resposta à epidemia do vírus ebola na África Ocidental.

Quando a música foi ao ar, intelectuais e ativistas de diversos países africanos criticaram a faixa, afirmando que havia ali um complexo messiânico e de salvador branco. A mensagem tão propagada de que a África precisa ser salva — e que para tanto precisamos de união, conduzida pelas celebridades do Ocidente — está fundamentada na ideia racista de que os africanos não possuem agência ou capacidade de organização política e cultural. E assim, perpetuam-se as tendências políticas paternalistas do Ocidente em relação à África.

A mensagem de que a África precisa ser salva está fundamentada na ideia racista de que os africanos não possuem agência ou capacidade de organização política.

O analista político Abdullahi Halakhe, do Quênia, ressaltou que iniciativas desse tipo geram uma imagem estereotipada do continente africano, visto como entidade única e desprovida da capacidade para lidar com os problemas do seu território. “A Nigéria e o Senegal tiveram surtos de ébola e lidaram com eles de forma eficaz. A República Democrática do Congo teve alguns surtos do vírus e conseguiu lidar com eles. Mas isto dificilmente é mencionado na reportagem alimentada pela histeria midiática”, comentou naquela ocasião em depoimento à Al Jazeera.

Em seu aniversário de 25 anos, We Are The World também foi regravada. O terremoto no Haiti foi a deixa perfeita para capitalizar sobre a tragédia, atualizando a música com as vozes de Justin Bieber, Tony Bennett, Akon, Miley Cyrus, T-Pain e outros tantos. 

O que os remakes dessas músicas — e documentários celebrativos, como A Noite Que Mudou o Pop — continuam ignorando é o papel dos Estados Unidos e demais potências ocidentais na perpetuação das mazelas sociais em África. Lamentam-se os conflitos étnicos, guerras civis, fome, desastres naturais, epidemias e ditadores. Mas não há nenhuma palavra dos grandes popstars sobre como seus países lucraram com conflitos no solo africano.

Ninguém parece lembrar que a Etiópia foi invadida pela Itália fascista sob o silêncio dos Estados Unidos e da Liga das Nações, em 1935. Nenhuma menção ao fato de que as décadas de guerra civil em Angola, entre 1975 e 2002, foram desdobramentos da Guerra Fria. Nenhum comentário sobre como as medidas de contraterrorismo pós-11 de setembro foram cruciais para o agravamento da fome na Somália. E agora, no Congo, não é por acaso que a população acusa os Estados Unidos e a Europa de conivência com ao genocídio em progresso no Kivu do Norte. Eis o espelho que Narciso recusa-se a encarar.

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