Na noite do dia 28 de janeiro de 1985, 37 super astros do pop norte-americano saíram às pressas da cerimônia do American Music Awards, em Los Angeles, diretamente para um estúdio. A missão era uma só: aproveitando o encontro, gravar uma música beneficente para a ONG USA For Africa, que visava arrecadar recursos para combater a fome no continente africano.
Após a madrugada inteira de trabalho, estava pronta We Are The World, música que vendeu mais de 7 milhões de discos e uniu de forma inédita as vozes de Michael Jackson, Cyndi Lauper, Stevie Wonder, Tina Turner, Bob Dylan, Ray Charles e outras dezenas de artistas.
Quando a maratona de gravações chegou ao fim, às 8h da manhã, Diana Ross continuava no estúdio. “Não queria que isso acabasse”, dizia ela aos prantos. A história é contada ao final de A Noite Que Mudou o Pop, documentário sobre os bastidores do hit dos anos 1980. Em alta no Netflix, o filme reacendeu o interesse pela canção. As buscas pela música no Google atingiram o seu ápice nos últimos dez anos. O problema é que, em vez de apontar de forma crítica o cunho racista e colonialista da empreitada, o filme promove uma ode nostálgica ao star system americano. Como na imagem de Diana Ross, limita-se ao deslumbramento do “encontro mágico das celebridades” e ignora as problemáticas implicadas nas iniciativas “salvadoras” do Ocidente diante de África.
Embora tenha vendido como água no deserto, We Are The World foi alvo de críticas contundentes desde o seu lançamento. Na mesma época em que a faixa estava sendo escrita, os compositores Michael Jackson e Lionel Ritchie estreavam comerciais da Pepsi. O crítico Greil Marcus apontou que a canção assemelhava-se à trilha de comerciais do refrigerante, especialmente o tão repetido verso “there’s a choice we’re making” (“um escolha que estamos fazendo”), que ecoa o slogan da marca, “the choice of a generation” (“a escolha de uma geração”).
Em um famoso ensaio publicado em 1985, Marcus afirmou que a música “tem menos a ver com a Etiópia do que com a Pepsi — e o verdadeiro resultado provavelmente não será que os etíopes viverão ou viverão um pouco mais, mas sim que a Pepsi terá o slogan da sua campanha publicitária cantada de graça por Ray Charles, Stevie Wonder, Bruce Springsteen e outros”.
A questão não é somente a referência a determinada marca, mas um conjunto de valores e ideologias que constituem a música. Combinando prazer musical, celebridades e linguagem da publicidade de massa, We Are The World promoveu uma concepção de mundo norte-americana, em que os valores da democracia, liberdade individual e poder de escolha via consumo afirmavam-se como universais.
Para Jaap Kooijman, professor de Media Studies e American Studies da Universidade de Amsterdã, a música é um dos maiores exemplos da hegemonia e do imperialismo cultural norte-americano, que ele descreve como Coca-Colonização. “We Are the World não é apenas um disco pop de caridade para aumentar a consciência ocidental sobre a fome na Etiópia e arrecadar dinheiro para ajudá-la, mas é acima de tudo uma vitrine de superestrelas americanas que funcionam como embaixadores ideológicos dos valores americanos”, escreve ele no livro Fabricating the Absolute Fake.
A África precisa ser salva? De quem?
Um dos principais articuladores de We Are The World foi o cantor e ativista irlandês Bob Geldof, que aparece em A Noite Que Mudou o Pop antes da gravação da música, relatando aos demais artistas os horrores humanitários que viu na Etiópia. Meses antes, Geldof esteve à frente de outras iniciativas similares, como o show beneficente Live Aid, que reuniu Phill Collins, David Bowie, Queen, U2, Elton John e outros no estádio de Wembley, em Londres.
Há tempos Bob Geldof admitiu que as músicas dessas campanhas não são lá grandes maravilhas. “Eu sou o responsável por duas das piores músicas da história. Uma é Do They Know It’s Christmas? e a outra é We Are The World“, afirmou em 2010. Mas isso não o impediu de reunir One Direction, Coldplay, Bono e Ed Sheeran para regravar Do They Know It’s Christmas (pela quarta vez!) em 2014, em resposta à epidemia do vírus ebola na África Ocidental.
Quando a música foi ao ar, intelectuais e ativistas de diversos países africanos criticaram a faixa, afirmando que havia ali um complexo messiânico e de salvador branco. A mensagem tão propagada de que a África precisa ser salva — e que para tanto precisamos de união, conduzida pelas celebridades do Ocidente — está fundamentada na ideia racista de que os africanos não possuem agência ou capacidade de organização política e cultural. E assim, perpetuam-se as tendências políticas paternalistas do Ocidente em relação à África.
A mensagem de que a África precisa ser salva está fundamentada na ideia racista de que os africanos não possuem agência ou capacidade de organização política.
O analista político Abdullahi Halakhe, do Quênia, ressaltou que iniciativas desse tipo geram uma imagem estereotipada do continente africano, visto como entidade única e desprovida da capacidade para lidar com os problemas do seu território. “A Nigéria e o Senegal tiveram surtos de ébola e lidaram com eles de forma eficaz. A República Democrática do Congo teve alguns surtos do vírus e conseguiu lidar com eles. Mas isto dificilmente é mencionado na reportagem alimentada pela histeria midiática”, comentou naquela ocasião em depoimento à Al Jazeera.
Em seu aniversário de 25 anos, We Are The World também foi regravada. O terremoto no Haiti foi a deixa perfeita para capitalizar sobre a tragédia, atualizando a música com as vozes de Justin Bieber, Tony Bennett, Akon, Miley Cyrus, T-Pain e outros tantos.
O que os remakes dessas músicas — e documentários celebrativos, como A Noite Que Mudou o Pop — continuam ignorando é o papel dos Estados Unidos e demais potências ocidentais na perpetuação das mazelas sociais em África. Lamentam-se os conflitos étnicos, guerras civis, fome, desastres naturais, epidemias e ditadores. Mas não há nenhuma palavra dos grandes popstars sobre como seus países lucraram com conflitos no solo africano.
Ninguém parece lembrar que a Etiópia foi invadida pela Itália fascista sob o silêncio dos Estados Unidos e da Liga das Nações, em 1935. Nenhuma menção ao fato de que as décadas de guerra civil em Angola, entre 1975 e 2002, foram desdobramentos da Guerra Fria. Nenhum comentário sobre como as medidas de contraterrorismo pós-11 de setembro foram cruciais para o agravamento da fome na Somália. E agora, no Congo, não é por acaso que a população acusa os Estados Unidos e a Europa de conivência com ao genocídio em progresso no Kivu do Norte. Eis o espelho que Narciso recusa-se a encarar.
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