A eleição das advogadas Patrícia Peck Pinheiro e Juliana Abrúsio Florêncio para duas das três cadeiras da sociedade civil no Comitê Nacional de Cibersegurança tem causado revolta em defensores de direitos digitais. Apesar de serem ligadas a entidades empresariais, as advogadas disputaram vagas destinadas à sociedade civil – e não à empresas. Por isso, alegando desvio de finalidade e conflito de interesses, entidades pedem que eleição seja anulada.
O CNCiber, ligado ao Gabinete de Segurança Institucional, o GSI, foi criado em dezembro do ano passado, como parte da Política Nacional de Cibersegurança. É seu papel formular, por exemplo, políticas para prevenir ataques em infraestruturas críticas, desenvolver produtos e políticas de fiscalização e controle, garantindo o cumprimento de direitos fundamentais na internet. O comitê tem 25 membros nomeados pelo GSI: 16 do Executivo Federal, três da sociedade civil, três de instituições acadêmicas e três do setor empresarial.
A lista dos escolhidos, no entanto, mostrou que as empresas não se contentaram apenas com as vagas que lhes foram reservadas. Uma das escolhidas para ocupar a cadeira de sociedade civil é Juliana Abrúsio Florêncio, diretora jurídica da Federação das Indústrias de São Paulo, a Fiesp, desde 2023. Ela também é sócia do escritório Machado Meyer, que tem entre os seus clientes grandes empresas de tecnologia, como iFood Benefícios, Pagseguro e Paypal.
Antes, Florêncio acumulou 11 anos de experiência como sócia de outro escritório de direito e também atuou como executiva no campo da educação digital. Embora não haja registros em seu perfil no LinkedIn sobre atuação em organizações da sociedade civil, sua candidatura recebeu apoio do Instituto dos Advogados de São Paulo.
Em um trecho de seu comunicado celebrando sua indicação no CNCiber, Juliana Abrúsio Florêncio comprometeu-se a “trabalhar arduamente para garantir que as vozes e preocupações dos cidadãos sejam ouvidas e consideradas nas políticas de cibersegurança do país.”
A escolha de Florêncio não foi a única que levantou críticas por parte de entidades da Coalizão Direitos na Rede, que reúne 56 organizações do campo. A outra escolhida foi Patrícia Peck, CEO do escritório Peck Advogados – que atende a mais de 500 clientes empresariais.
A candidatura de Peck recebeu apoio de entidades ligadas ao setor tecnológico e educacional, incluindo o seu próprio Instituto Peck de Cidadania Digital e a Associação Brasileira de Mantenedoras de Instituições de Educação Superior do Brasil.
O edital que determina a escolha dos representantes do CNCiber foi publicado em 12 de janeiro. Apesar de listar critérios como a apresentação do currículo dos indicados e a comprovação atuação da organização no campo da defesa de direitos digitais, o regulamento não atribui pontuação a cada um dos itens. E dá a palavra final da escolha ao ministro-chefe do GSI – no caso, o general Marcos Antônio Amaro.
Ao Intercept Brasil, Peck afirmou que ficou “muito honrada” e que “atende completamente os requisitos de notório saber exigidos, assim como a intenção de trazer pluralidade e diversidade para a formação do conselho”. Segundo ela, não há nada no edital, ou mesmo no aspecto legal, que impossibilite sua nomeação.
No ano passado, mostramos que a advogada também levantou críticas ao ser escolhida para compor o conselho da Agência Nacional de Proteção de Dados, a ANPD. Peck ocupou uma vaga da sociedade civil após indicação da Abrafarma, a Associação Brasileira das Redes de Farmácias e Drogarias, que tinha interesse direto nas discussões sobre proteção de dados pessoais em curso na agência.
A eleição de Florêncio e Peck ocorreu em detrimento de outras organizações reconhecidas pela atuação na garantia de direitos fundamentais no ambiente digital, como a Data PrivacyBR e o Instituto de Pesquisa e Tecnologia do Recife, que também lançaram candidatura.
Nesta quinta-feira, 22, a Coalizão Direitos na Rede publicou um comunicado demonstrando preocupação com a deturpação do caráter multissetorial do CNCiber. A carta aberta, encaminhada ao GSI, destaca que a inclusão de representantes do setor empresarial para vagas destinadas à sociedade civil viola os requisitos dos editais e desvirtua as bases multissetoriais do Comitê. Para a Coalizão, é preocupante o fato de as representantes atuarem publicamente no setor empresarial e, por consequência, defenderem os interesses de seu setor.
“Não há paridade de armas entre setor empresarial e sociedade civil. Espaços de participação e representação como o Comitê Nacional de Cibersegurança são essenciais para garantir alguma voz da sociedade civil em espaços decisórios. Por isso, é preocupante que nem esses espaços estejam devidamente salvaguardados”, afirmou a CDR.
Agora, a CDR quer “a nulidade da inclusão de representantes alheios à sociedade civil para as vagas deste setor, tendo em vista o descumprimento dos requisitos dos editais, desvio de finalidade e conflito de interesse que desvirtua as bases multisetoriais que fundamentam a atuação do CNCiber”.
O Intercept questionou o GSI sobre a eleição de Florêncio e Peck em cadeiras destinadas à sociedade civil e se o órgão pretende apurar possíveis desvios nos requisitos do edital. Também enviou perguntas à Florêncio. Até o momento, não houve resposta. O espaço segue aberto para manifestações.
Correção: sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024
O comitê tem três membros da sociedade civil, e não nove, como estava anteriormente descrito. O número total de membros é 25. O texto foi corrigido.
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