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Indústria de ultraprocessados quer se blindar de impostos obrigando governo a criar uma lei para cada alimento

Veja com exclusividade o pré-projeto de lei que a indústria de ultraprocessados e outros setores mirados pelo imposto seletivo querem emplacar no governo federal.

Junto a nova frente parlamentar formada nos moldes da bancada ruralista, indústria alimentícia age para poupar ultraprocessados do novo imposto seletivo.

Fome de quê?

Parte 1

Investigações sobre como a indústria e o agronegócio prejudicam o acesso à alimentação de qualidade no Brasil – embora façam propaganda do contrário.


A indústria de alimentos ultraprocessados está trabalhando dobrado nos corredores do Congresso para combater uma mudança trazida pela Reforma Tributária: o temido imposto seletivo. Representantes do setor já costuraram com a Frente Parlamentar do Empreendedorismo uma minuta de projeto de lei para conter os efeitos do chamado “imposto do pecado”.

O Intercept Brasil teve acesso com exclusividade ao PL da indústria. O imposto seletivo, proposto pelo governo, aumentará os tributos sobre a produção, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais ao ambiente ou à saúde – caso dos alimentos ultraprocessados.  

A indústria defende que, em vez de o governo federal enviar uma proposta de imposto para o setor como um todo, seja preciso criar uma lei específica para cada tipo de ultraprocessado. 

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Na prática, querem uma lei para o iogurte, outra para o requeijão, outra para a salsicha, outra para o refrigerante, outra para a lasanha congelada e assim por diante. A minuta defende que cada proposta elaborada pelo governo seja submetida ao Congresso para discussão e votação, seguindo para sanção presidencial. 

Levando em conta o sem número de alimentos ultraprocessados oferecidos nos supermercados, não é difícil entender como a proposta da minuta pode esvaziar os efeitos do imposto seletivo para facilitar a interlocução entre empresas e Congresso.

Com a minuta e a mobilização em torno do parlamento, os setores afetados pretendem se antecipar em relação ao governo federal, estipulando como vai funcionar essa cobrança, em todos os detalhes, desde o valor da alíquota que será aplicada, até o elo da cadeia em que incidirá, de que forma e sobre quais produtos.

De seu lado, o governo trabalha internamente no conjunto de propostas para regulamentar a lei e pretende enviar esses projetos para avaliação do Congresso entre março e maio. A correria, portanto, tem o objetivo de acelerar um posicionamento sobre o assunto e mostrar para o governo o que cada setor pensa.

A minuta a que o Intercept teve acesso estipula ainda que a extração mineral seja excluída da cobrança seletiva, devido a seu “caráter de essencialidade”. Isso incluiria itens como a água mineral, além de minerais considerados “estratégicos para transição energética sustentável” e os fertilizantes, requisito incluído pela bancada do agronegócio.

“Para cada um dos produtos passíveis de incidência deverá ser elaborada uma lei complementar específica pelo poder executivo, que irá definir as alíquotas e as demais regras da cobrança do imposto para aquele determinado produto”, afirma o texto.

O pré-projeto prevê que o imposto seletivo seja cobrado em um único momento da cadeia produtiva, podendo ocorrer na extração, na produção ou na venda do produto final, conforme os critérios da lei complementar específica. 

Estipula, ainda, que a cobrança não terá caráter arrecadatório para o governo. Deve, em vez disso, ser destinada a um fundo específico, com o propósito de mitigar os impactos das atividades nocivas à saúde e ao meio ambiente, incluindo ações de prevenção e conscientização.

A minuta defende que cada proposta elaborada pelo governo seja, depois, submetida ao crivo do Congresso, para que seja discutida e votada, seguindo para sanção presidencial. 

“Acreditamos que a participação social não encontra melhor representação que não seja a do Congresso Nacional. Nesse sentido, a condução da reavaliação por uma comissão mista especial do Congresso Nacional e a posterior aprovação pelo plenário do Congresso Nacional em regime de urgência garantem a participação do legislativo na revisão e ajuste do imposto seletivo”, lê-se no texto.

Frente seguiu o modelo de lobby da bancada ruralista 

Para emplacar seu projeto de lei, a indústria de ultraprocessados conta com a Frente Parlamentar do Empreendedorismo, grupo criado nos moldes da bancada ruralista para facilitar a interlocução entre empresas e Congresso.

A FPE foi criada em fevereiro do ano passado e hoje é presidida pelo deputado Joaquim Passarinho, do PL paraense. Hoje, ela soma 181 deputados entre os 513 membros da Câmara, e 35 senadores, do total de 81 nomes da Casa. 

Um dos principais apoiadores da frente e que foi palco de sua criação é o Instituto Unidos Brasil, fundado em 2020 com a missão de atuar na “promoção de proposições legislativas respaldadas pela iniciativa privada”. 

Liderado pelo empresário Nabil Sahyoun, presidente da Associação Brasileira de Lojistas de Shopping, o instituto afirma ter uma posição “apolítica” e voltada para o livre mercado. Entre suas centenas de membros estão empresários de companhias como Coco Bambu, Habib’s, JBS, Madero, Mc Donald’s e Grupo Carrefour.

Na FPE, as discussões têm sido lideradas por João Henrique Hummel, um consultor e agrônomo que foi responsável pela criação do Instituto Pensar Agro em 2011. 

Hummel tem experiência no setor: foi responsável pela da estruturação da Frente Parlamentar Agropecuária – também conhecida como bancada ruralista – em 2008, sendo diretor-executivo das duas instituições até 2021.

Elel foi, ainda, consultor da Aprosoja no Mato Grosso, de 2005 a 2021, e da Associação Brasileira de Biotecnologia de 2006 a 2020. 

Presidente da Abia ignora ciência e diz que ultraprocessados não fazem mal à saúde

Na arena dos ultraprocessados, outro lobista que tem se destacado na representação do setor e atuado ao lado dos parlamentares para elaborar uma proposta que atenda à indústria é João Dornellas, presidente-executivo da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos, a Abia. 

Dentro da Abia, estão praticamente todos os grandes nomes desse tipo de alimento, uma lista com 94 gigantes da alimentação mundial que inclui companhias como Nestlé, Vigor, McDonald’s, Nissin, Pepsico, Danone, Seara e BRF.

Além da Abia, outras três associações têm puxado a pressão contra a taxação: a Associação Brasileira da Indústria de Chocolates, Amendoim e Balas, a Abicab; a Associação Brasileira das Indústrias de Biscoitos, Massas Alimentícias e Pães & Bolos Industrializados, a Abimapi; e a Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e de Bebidas não Alcoólicas, a Abir.

João Dornellas não atua somente junto ao Congresso. Com um pé no governo federal, ele também integra o Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, grupo que reúne dezenas de ministros e representantes de várias indústrias.

Nas discussões sobre a cobrança de um imposto seletivo dos ultraprocessados, Dornellas parte do princípio de que seu setor sequer deveria ter sido incluído entre aqueles que devem pagar pelo novo imposto. 

Segundo ele, não há provas efetivas de que os produtos ultraprocessados fazem mal à saúde, a despeito de todas as comprovações científicas já colhidas sobre o assunto.

Dornellas também costuma criticar o conceito de ultraprocessados. “Cabe tudo dentro desse conceito. Não tem sentido”, afirmou ele, na última sexta-feira, 1º de março, durante uma audiência pública na Câmara

No mesmo encontro com representantes de outros setores, Dornellas criticou um estudo sobre o tema coordenado pelo professor Carlos Monteiro, do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo, que baseia o Guia Alimentar para a População Brasileira.

Ao discorrer sobre o porte do setor, o executivo afirmou que a cadeia produtiva de alimentos e bebidas não-alcoólicas representa 2 milhões de empregos formais e diretos no país, 38 mil indústrias, processamento de 61% de tudo que é produzido no campo e 270 milhões de toneladas de alimentos e bebidas por ano. 

Segundo Dornellas, o Brasil tem hoje uma das maiores cargas tributárias sobre alimentos industrializados do planeta, com alíquota de 24,4%, enquanto a média mundial é de 7%.

“Falar de aumento imposto no Brasil sobre alimentos, nos parece que é fora de propósito. Imposto seletivo sobre alimentos, para nós, é uma questão que nem deveria ter sido colocada na mesa de debate. Querem taxar alimento por fazer mal ao meio ambiente e à saúde. Alimento não faz mal ao meio ambiente ou à saúde”, reclamou. 


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Ultraprocessados levam à morte de 57 mil brasileiros por ano

Em 1º de março, enquanto o setor de ultraprocessados se articulava no Congresso em torno da minuta contra o imposto seletivo, um grupo de médicos, cientistas e personalidades lançou um manifesto pedindo a taxação do segmento.

Entre os mais de 30 participantes estão pessoas como o médico Drauzio Varella; o ex-ministro da Saúde de Dilma Rousseff, Arthur Chioro; o epidemiologista Carlos Monteiro; a ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, Maria Emília Pacheco; e a ex-ministra de Desenvolvimento Social e Combate à Fome de Dilma, Tereza Campello. 

Assinam ainda o manifesto, nomes como Bela Gil e Rita Lobo, chefes de cozinha, e o ator Marcos Palmeira.

“Manifestamos nosso apoio para que os produtos ultraprocessados – fabricados com muitos aditivos cosméticos, excesso de açúcar, sal e gordura, como é o caso de refrigerantes, salsichas, salgadinhos de pacote, entre outros – sejam alvo do imposto seletivo, ao lado dos cigarros e das bebidas alcoólicas. Da mesma forma, esses produtos não devem receber qualquer tratamento fiscal favorável com alíquotas reduzidas”, diz o  manifesto.

Segundo o texto, pesquisas científicas têm demonstrado a associação de produtos ultraprocessados a doenças e mortes. Um estudo recente realizado pela ACT Promoção da Saúde revelou que 57 mil pessoas entre 30 e 69 anos morrem todos os anos, no Brasil, por causa do consumo desses produtos.

O manifesto destacou ainda que diversos estudos mostram como a tributação é a política pública mais eficaz para desestimular o consumo de produtos nocivos à saúde. 

“Mais de 55 países já adotaram uma tributação majorada sobre algum tipo de produto ultraprocessado ou bebidas adoçadas. A tributação de produtos nocivos à saúde conta com apoio de 94% da população, segundo pesquisa Datafolha de 2023”, afirma o documento.

A minuta que pretende, na prática, blindar os ultraprocessados do imposto seletivo, deve ser entregue pela Frente Parlamentar do Empreendedorismo ao governo federal nesta semana. Resta ver qual como a gestão Lula vai se equilibrar, entre o lado da ciência e da saúde pública e aquele defendido pelos gigantes da indústria.

ATUALIZAÇÃOApós a publicação desta reportagem, a Abia declarou, por meio de nota, que não teve participação no pré-projeto de lei e que suas manifestações sobre a reforma tributária “são transparentes, públicas e de longa data: defendemos que nenhum alimento pague mais imposto, porque isso significaria comida mais cara para todos os brasileiros”.

O texto costurado com a indústria, como mostra a reportagem, traz alguns dos principais pleitos requeridos pelo setor de ultraprocessados em relação ao imposto seletivo.

De acordo com a Abia, o alimento produzido no Brasil é um dos que mais paga impostos no mundo. “A média da carga tributária sobre os alimentos industrializados no País é de 24%, uma das mais altas do planeta. A média dessa carga tributária nos países da OCDE é de 7%. Alimentação é essencial e a reforma tributária é uma oportunidade para tornar a comida mais acessível. É constrangedor pedir aumento de impostos sobre qualquer alimento.”

Esta reportagem é parte da série Fome de quê?, que investiga como a indústria e o agronegócio prejudicam o acesso à alimentação de qualidade no Brasil, com o apoio do Instituto Ibirapitanga.

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